A
VIDA DA CRÔNICA E A CRÔNICA DA VIDA: de
Oliveira Rodrigues, Inara |
Resumo:
O
presente trabalho objetiva colocar em diálogo crônicas de autores de
reconhecida importância no cenário literário contemporâneo português e
brasileiro, a partir da temática da efemeridade das relações humanas em
consonância com a efemeridade enquanto uma das especificidades do gênero
narrativo em destaque. Procura-se evidenciar, aqui, as convergências e distanciamentos
das diferentes realidades sociais nas quais os textos selecionados como corpus
estão inseridos, afirmando-se a importância da crônica como expressão
híbrida entre o jornalismo e a literatura, visando-se, assim, contribuir com o
aprofundamento e atualidade dos estudos lusófonos.
Palavras-chave:
Crônica portuguesa e brasileira; efemeridade..
Introdução
No mundo contemporâneo, à modernista vertigem das horas, ao processo
de fragmentação do sujeito, ao polêmico colapso das metanarrativas, sobrepõe-se
novos e ainda indiscerníveis paradigmas que, por isso mesmo, tornam mais aguda
a fragilidade de qualquer idéia de permanência para os sentidos da existência.
Nesse processo, contudo, não cessa a necessidade humana de ficcionalizar novos
tempos e espaços, por meio das mais diversas expressões artístico-culturais, a
partir das quais, mais ou menos refratariamente, pode-se refletir sobre o
presente.
Em um tempo cotidianamente marcado pela falta de tempo; por espaços
fechados que se abrem em vastidões de concreto no movimento deslizante de
portas automáticas; pelas informações incessantes e caleidoscópicas, rápida e
facilmente acessadas/divulgadas por meios eletrônicos, e que acabam, de certo
modo, desafiando a própria comunicabilidade, a efemeridade das relações
afetivas torna-se um aspecto inquietante nesse contexto de virtuais e fugazes
possibilidades de encontro humano. Diante disso, parece cada vez mais
fundamental reconhecer a importância da literatura por permitir que, a partir
da criação de textos ficcionais, o homem consiga narrar-se e, assim, tecer (termo etimologicamente associado a
texto) fios capazes de revelarem imagens críticas sobre o mundo e sobre si
mesmo.
Gênero
narrativo de constituição híbrida entre a linguagem literária e a jornalística,
a crônica associa-se, como um de seus traços mais singulares, à narração do
curso mais ou menos imediato dos
acontecimentos humanos, propiciando uma leitura rápida, quase descartável, pois
seu meio tradicional de veiculação é o jornal ou periódico. Tal característica,
porém, não diminui sua importância, como observa Antonio Candido, já que ela “está sempre ajudando a estabelecer ou
restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. [...] [pegando] o miúdo,
mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas” (1992, p. 14). A partir do momento em
que é compilado em livro, contudo, tal gênero narrativo resgata sua perenidade
e perpetua-se, assumindo um caráter organizacional que permite, assim, uma
leitura mais atenta e profícua.
Diante dessas
considerações, afirmando-se a importância da crônica como tecido narrativo
capaz de instigar, em profundidade, reflexões sobre a realidade com a qual
dialoga, foram selecionados, para análise, textos do Livro de Crônicas
(1998), de António Lobo Antunes, bem como das obras A falta que ela
me faz (1980), de Fernando Sabino e Comédias da vida privada,
(1995), de Luis Fernando Veríssimo. A seleção foi realizada tendo-se em vista
contrapor duas realidades histórico-culturais: a portuguesa (com a escrita de
Lobo Antunes) e a brasileira, nas últimas décadas do século XX, pretendendo-se, dessa forma, discutir e
analisar a seguinte questão: se a crônica, gênero marcado pela brevidade e
aparente simplicidade, problematiza a realidade contemporânea em que as
relações humanas parecem se pautar pelo efêmero, como se dá essa
problematização nas diferentes realidades enfocadas que possuem, entretanto,
laços históricos e lingüísticos tão estreitos?
Será aqui
apresentada uma síntese das análises empreendidas, que constituíram três
artigos independentes, correspondentes a uma parte do trabalho desenvolvido,
iniciando-se com a abordagem de um dos textos que fazem parte do referido livro
de António Lobo Antunes, antologia publicada em 1998, reunindo crônicas
originalmente destinadas ao jornal O público (de 1993 a 1998).
Trata-se de “Os
meus domingos”, enfocado a partir da temática da efemeridade na vida
contemporânea. Para tanto, vai-se seguir as principais concepções de Jean
Baudrillard (1995) sobre o sentido do efêmero enquanto fenômeno sociocultural
marcadamente assentado na atual sociedade de consumo e, portanto, conseqüência
do capitalismo pós-industrial.
Torna-se necessário, nesse sentido e
antes de mais nada, explicitar que, por efêmero entende-se, aqui, a marca do
descartável e facilmente substituível, quer dos bens de consumo, quer dos
próprios relacionamentos humanos. Trata-se, como já mencionado, da realidade
mais imediata colocada em ação pela sociedade pós-industrial, na qual, segundo
Baudrillard (1995) “os homens (...) não
se encontram rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas mais por objetos.”
(p. 15 – grifo do autor). E continua o pensador francês: “O conjunto de suas
relações sociais já não é tanto o laço
com os seus semelhantes, quanto, no plano estatístico segundo uma curva
ascendente, a recepção e a manipulação de bens e de mensagens [...] (1995, p.
15).
Essa ausência “de uns aos outros” é um
ponto central da crônica de Lobo Antunes mencionada. Com um narrador
homodiegético, o texto dá voz a um homem que conta a sua rotina aos domingos,
quando ele sai com a família (a mulher Fernanda e o bebê Roberto Carlos),
encontra os sogros e vão todos passear em um dos “shoppings” da cidade (em um
Centro Comercial, como denominam preferencialmente os portugueses a esses
enormes conjuntos direcionados a centralizar o lazer e o consumo das pessoas).
Vestidos uniformemente de acordo com as tendências consideradas as mais
adequadas à classe média urbana, também se uniformizam os gestos das
personagens e automatizam-se as ações dos sujeitos transformados em objetos
vazios de sentido humano. De tal modo, que pouca diferença faz uma eventual
troca de pessoas por um descuidado desencontro no caminho entre as vitrines:
Como a Fernanda e a Dona Cinda param em
todas as montras de móveis e boutiques (...) acontece enganar-me e trocá-las
por outra sogra acrílica, outra mulher [de roupa] roxa e verde e outra criança
de laço, e sucede-me passar horas num banco, sem dar pela diferença, (...)
a planear as prestações de um microondas e de um frigorífico novo, seguir
para Alverca, jantar o frango da Casa de Pasto (...) de costume, e só na terça-feira,
quando vou a sair para a Junta, a minha esposa informa, envergonhada, que
mora em Loures ou na Bobadela, o Roberto Carlos se chama Bruno Miguel, e deu
pelo engano, há cinco minutos, porque a minha Última Ceia é de estanho e a
dela de bronze. Claro que corrigimos o erro no domingo seguinte, quando eu
volto para casa com uma Celeste e um Marco Paulo (...). (ANTUNES, 1998, p.
60).
Essa incapacidade
do estabelecimento de relações verdadeiramente humanas associa-se com a
perspectiva de Baudrillard de que, na ordem da vida moderna, “deixou de haver
espelho em que o homem se defronte com a própria imagem para o melhor ou para o
pior; existe apenas a vitrina – lugar geométrico do consumo [no qual se
deixa] absorver e abolir. O sujeito de consumo é da ordem dos sinais. (BAUDRILLARD,
1995, p. 206 – grifos do autor)
Diante desse contexto, compreende-se que
o narrador-protagonista da crônica de Lobo Antunes seja apenas capaz de esboçar
um certo cansaço com as trocas incontornáveis, preferindo ficar com a última
mulher, que cozinha melhor do que as outras que já teve, e o último filho do
mais recente domingo, até que ele se torne o sogro que será convidado a passear
no Centro Comercial: “Como nessa altura devo andar a dieta de sal por causa da
tensão qualquer peixe grelhado me serve” (ANTUNES, 1998, p. 60). Transformado
em autômato do consumismo, o homem reifica-se na impossibilidade de uma
existência alicerçada minimamente sobre o terreno das emoções humanas.
Já a efemeridade da vida humana e a
solidão que marca a trajetória da existência, nesse final de milênio, é tema da
crônica “Televisão para dois”, de Fernando Sabino. Com ironia e humor, o
cronista remete o leitor ao mundo do homem solitário, que ao retornar para
casa, ao final do dia, encontra um resquício de luz, de vida e de calor,
emanados do uso do aparelho de televisão por sua empregada doméstica. Ela
constitui-se, em verdade, na presença humana do apartamento já que, durante o
dia, ausenta-se o proprietário. A empregada,
ao tomar conta do cotidiano daquele espaço, atribui a ele um certo referencial:
sua marca, sua presença constante, cheia de vida. O ‘homem’, que retorna à casa, é conhecedor da rotina que se
repete: a luz acesa, a mesa para o jantar que será posta, o diálogo que sempre
acontece e há, curiosamente, neste espaço organizado, a quebra da rotina pelo
uso do aparelho de televisão, que exige uma preferência de programas, horários,
determinada pelo gosto do espectador.
A
empregada, ao assistir televisão, opta pelas novelas, programas de humor e o
patrão, por sua vez, declara-se incapaz de apreciar as telenovelas , “só se não
tenho nada melhor para fazer”, ao que a empregada concorda – “ também não
gosto, não senhor”. Ambos, no entanto, assistem e encontram nessa ação uma forma de estar em sintonia com o resto
do mundo, com a realidade da maioria dos brasileiros e consigo mesmos. O
desvelamento que a relação entre esses dois seres pontua, ao logo da crônica,
remete o leitor à situação reflexiva e crítica sobre a condição humana, às
diferenças sociais e aos dramas comuns vivenciados por grande parcela da população:
a solidão dos dias. De aparente simplicidade, esta crônica de Sabino serve-se
de inspiração e atende ao domínio das
leis específicas do gênero, que necessita recorrer e manter sua simplicidade e
leveza, sem contudo, diminuir a relevância da dimensão literária que o
caracteriza.
De Comédias da
vida privada: 101 crônicas escolhidas, livro de Veríssimo publicada em
1995, as crônicas trabalhadas são “Sala de espera”, “Homens” e “O encontro”,
que traçam um pequeno painel da busca por uma relação amorosa feliz e
duradoura, mas que se dissolve nas pequenas e tortuosas artimanhas da vida, ao
mesmo tempo em que espelha, sob certos aspectos, a própria condição humana na
atualidade.
De acordo com Gilles
Lipovetsky, na obra El crepúsculo Del deber – la ética indolora de los
nuevos tiempos democrático (2002), as questões que estão em voga na sociedade
de final de milênio e início de uma nova era se relacionam à ética e suas bases
de fundamentação e de parâmetros. De um lado, há a relativização da moral; de
outro, o decreto de sua decadência. Esses dois discursos contraditórios
revelam uma nova ordem que se instaura
na contemporaneidade: a ordem dos desejos imediatos, da felicidade intimista e
materialista: em suma, a paixão pelo ‘ego’. O que parece reger a nova sociedade
não é mais o dever, mas sim o bem-estar e a dinâmica dos direitos subjetivos. O
coroamento da nova sociedade recai sobre os direitos individuais de autonomia,
de desejo e de felicidade, quando, então, há o eclipse do dever austero e
rigoroso que vigorava.
Isto
posto, é interessante notar o quanto essas crônicas de Veríssimo realçam, ou
confirmam, este novo status que o individual e o efêmero assumem em
relação às tentativas de uma união amorosa, apontando, por um lado, para a fugacidade dos relacionamentos e, por outro, para
a busca constante pela segurança e felicidade de uma vida vivida a dois, com
base no amor e no respeito mútuo. Ao mesmo tempo em que todas as personagens
que povoam o universo ficcional das crônicas desse último autor enfocado buscam
o amor e sua concretização através de um relacionamento perene e tranqüilo,
tanto o homem quanto a mulher não abrem mão da sua individualidade e seu
bem-estar, apesar de, com esta postura, afastarem de si toda e qualquer
possibilidade de efetiva realização do sonho almejado: a felicidade de
compartilhar o sentimento amoroso em toda a sua plenitude.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao verificarem-se os pontos de convergência entre essas
diferentes expressões artístico-literárias enfocadas, desvela-se, por um lado,
a dimensão histórica da temática aqui privilegiada, na medida em que se revela
como uma questão extremamente contemporânea, ao mesmo tempo que se encontra no
solo comum das angústias ontológicas do homem, ao ultrapassar fronteiras
nacionais e regionais. Por outro, e conseqüência dessa última evidência, ao
tratar de problemas que possuem um profundo sentido humano, como é o caso da
fugacidade dos relacionamentos e/ou sua dissolução afetiva, afirma-se a
relevância deste gênero narrativo que, a princípio também destinado à
efemeridade, desvela sua dimensão de permanência diante da profundidade das
reflexões que propicia.
O paradoxo
que se percebe por meio das crônicas submetidas a este estudo apontam para a
dimensão perene de uma escrita que se forjou na efemeridade do caráter
meramente informativo. Mesmo mantendo o estilo rápido e simples, soube o
escritor-cronista substituir o elementar relato do cotidiano por imagens
construídas habilmente por meio da linguagem literária, polissêmica e
dialógica, próprias da arte poética. Por esse viés, atingem-se graus mais
elevados ao dar tratamento reflexivo a temas comuns que, muitas vezes, estão
eclipsados aos olhos distraídos do leitor.
Dessa
forma, a crônica deixa de ser leitura ‘leve’ ao propiciar um diálogo com o
leitor sobre os desejos de homens e mulheres, que podem ser decifrados como a
busca, no mais das vezes, frustrada, cética, ou desiludida, mas, ainda assim,
nunca abandonada, pelo encontro da segurança de um afeto, de uma companhia, de
um amor, ao expor, com maior ou menor ironia cortante, o embotamento dos
sentimentos e o efêmero das relações intrapessoais.
Percebe-se, portanto, que essa temática complexa,
colocada à tona por intermédio desse gênero bastante difundido e popular, faz
com que ele assuma um relevante papel: o de porta-voz da fragilidade
humana e seus relacionamentos, que estão intimamente ligados ao desejo
imperativo da época contemporânea, ou seja, o da liberdade individual, apesar
da flagrante utopia que esse desejo celebra. Dito de outra forma, enquanto a
crônica da vida é escrita sob o princípio da efemeridade, a vida da crônica
ganha outro rumo, pois que se reveste de perenidade ao discutir e revelar, de
forma mais ou menos sutil, os desencantos provocados por conta dos
(des)encontros afetivos fugazes, permitindo, por sua composição literária, que
se conjugue o “sempre”, o “eterno”, com a consciência lúcida do provisório.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANTUNES, António Lobo. Livro de crônicas. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1998.
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70,
1995.
CANDIDO, Antonio et al. A crônica
–
O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. São Paulo: Editora da
UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
LIPOVETSKY, Gilles. El crepúsculo del deber- la ética indolora
de los nuevos tiempos democrático. Trad. De Ja Bignozzi. Barcelona:
Editorial Anagrama, 2002.
SABINO, Fernando. A falta que ela me faz. 16 ed. Rio de Janeiro:
Record, 1995.