D. João VI no Brasil

Condensado de texto de Maria Beatriz Niza da Silva

Veja este site também em http://es.geocities.com/atoleiros

 

 

      D. João VI

 

 

 A chegada da Corte e a expansão urbana do Rio de Janeiro.

É difícil saber ao certo quantas pessoas aportaram ao Rio de Janeiro com o Príncipe Regente D. João. Um contemporâneo escreveu que toda a esquadra se compunha de 8 naus, 3 fragatas, 2 brigues, uma escuna e uma charrua de mantimentos, além de 21 navios comerciais, o que daria um total de 10.000 pessoas. 

Ao embarcarem em Lisboa com destino ao Brasil, a família real, criados do paço, a nobreza cortesã, os empregados públicos carregaram consigo o que podiam levar de mais precioso: pratas, jóias, louças, roupas, livros, manuscritos, mapas, etc.

Para alojar a família real e a criadagem, o paço da cidade, antigo palácio dos vice-reis, mesmo incorporando as acomodações da antiga cadeia e do Convento do Carmo, não era suficiente. Calcula-se em 300 pessoas aquelas que inicialmente ali se instalaram. 

O rico negociante Elias António Lopes pôs então à disposição do Príncipe Regente a sua chácara, a Quinta da Boa Vista, depois denominada Palácio de São Cristóvão. Algumas reformas foram ali feitas, primeiro por artistas portugueses (José Domingues Monteiro e Manuel da Costa) e mais tarde, por volta de 1816, por um inglês.

 

 
Mas D. João em breve começou a usufruir de outras residências temporárias nas ilhas da baía: Paquetá, ilha dos Frades, ilha do Governador. A propósito desta última comentava o funcionário da Biblioteca Real, Luís dos Santos Marrocos: "Tem ali um magnífico palácio de campo e uma formosa chácara com tapada e coutados extensíssimos". Permanências mais prolongadas fazia o Regente na Fazenda de Santa Cruz, antiga propriedade dos Jesuítas que distava 11 léguas da cidade.

Já D. Carlota Joaquina dividia o seu tempo entre o Paço da cidade e um sítio em Botafogo para "tomar ares e banhos" acompanhada das filhas menores. Em 1814 começou-se a preparar um palácio no sítio do Andaraí, distante duas léguas e meia da cidade, para sua residência, mas em 1815 ela preferiu ocupar o palácio que fora do conde das Galveias, em Mataporcos.

Enquanto a família real se acomodava com maior ou menor conforto, os problemas de moradia logo se fizeram sentir para os recém-chegados. O preço dos alugueres subiu muito e os próprios nobres se queixavam do que tinham de pagar pelas casas. 

No núcleo central da cidade tinham os mercadores e os artesãos suas lojas, morando muitas vezes no andar de cima. A elite local preferia morar nos arredores, em chácaras ou sítios dotados de maior conforto, e o mesmo fizeram os que acompanharam a Corte e os diplomatas que começaram a chegar ao Rio de Janeiro. O intendente-geral da Polícia, Paulo Fernandes Viana, por exemplo, morava no sítio do Engenho Velho, distante da cidade mais de uma légua.

As medidas urbanísticas, até então a cargo do Senado da Câmara, passaram a ser uma das principais funções do intendente-geral da Polícia. Logo em Junho de 1809 um edital abolia as rótulas ou gelosias das casas, pois o Rio de Janeiro, sede da Corte, não podia conservar "bisonhos e antigos costumes, que apenas podiam tolerar-se quando era reputada colónia". 

Ora um dos elementos arquitectónicos que afeiava o prospecto da cidade era o terem as janelas "rótulas ou gelosias de madeira, que nenhuma comodidade trazem e que estão mostrando a falta de civilização de seus moradores". 

Era concedido um prazo de oito dias para se retirarem as rótulas dos sobrados e sessenta dias para serem colocadas grades de ferro, "ou balaústres que as imitem". Só as casas térreas podiam conservar as rótulas, uma vez que estas moradias "nada influem na beleza do prospecto". 

A única exigência da Intendência da Polícia é que passassem as rótulas a abrir para o interior das casas e não para a rua "pelo estorvo que causam aos que passam". A iconografia revela contudo que neste último ponto o edital da Polícia não foi cumprido com rigor.

A expansão da cidade para fora dos seus limites anteriores ia levando, no dizer do intendente, a uma "arbitrária edificação" sem qualquer regularidade e algumas recomendações foram feitas ao Senado da Câmara em Outubro de 1810: "Que as ruas que de novo se abrirem sejam mais largas e conformes ao novo plano, para nelas se edificarem edifícios regulares". 

Nos arruamentos deviam ser deixados espaços para praças, "o que não só embeleza a cidade, mas contribui para a saúde da população". A chamada "cidade nova" teria portanto ruas largas, praças e edifícios regulares. Era importante também que as ruas fossem direitas para facilitar as "carruagens emparelhadas" numa época em que, com a chegada dos reinóis, as tradicionais cadeirinhas estavam sendo substituídas por outros meios de transporte.

Um dos pontos principais da política urbanística depois do Rio de Janeiro se tornar a sede da monarquia foi a substituição das casas térreas pelos sobrados. Aqueles que na cidade nova construíssem este tipo de casas no prazo de dois anos depois do Decreto de 26 de Abril de 1811 ficariam isentos do pagamento da décima por dez anos, ou mesmo por vinte anos, se tivessem mais de um sobrado e mais de 5 portas ou janelas na fachada. Na cidade nova ninguém podia construir casas térreas pois estas tiravam toda a beleza à cidade

 
   
 
2. As festas.

Embora já antes da chegada da Corte o Rio de Janeiro tivesse seus festejos por ocasião de alguma efeméride na família real (aniversários, nascimentos ou casamentos), e suas tradicionais festas religiosas, depois de 1808 o número e a opulência dos eventos festivos aumentaram. As festas do Antigo Regime compunham-se de vários elementos e duravam vários dias. Havia luminárias, fogos de artifício, cavalhadas, encamisadas, corridas de touros, cortejos e desfiles, arrumação de tropa. A descrição minuciosa desses festejos passaram a ocupar páginas e páginas da Gazeta do Rio de Janeiro, o primeiro periódico a circular no Brasil. Por vezes, a recém-criada Impressão Régia imprimia folhetos descritivos dessas festas.

A cidade viveu momentos festivos por ocasião do desembarque de D. João e sua comitiva. Os moradores da Rua do Rosário e da Rua Direita receberam aviso para ornarem a frente das suas casas com colchas e para alcatifarem as ruas com areia, folhas e flores no caminho para a catedral. 

O cortejo abria com os notáveis da cidade (civis, eclesiásticos e militares) e, por fim, debaixo de um pálio, vinha o Príncipe Regente com a real família: "Rodeavam a Sua Alteza Real os grandes do Reino, oficiais-mores da sua real casa, camaristas e nobreza e era seguido de um numeroso cortejo de eclesiásticos, militares, oficiais da marinha portuguesa e britânica, como também de outras muitas pessoas que de Lisboa tinham vindo em sua companhia", descrevia um contemporâneo.

O Rio de Janeiro celebrou com oito dias de luminárias a chegada de D. João. Não se tratava contudo de uma simples iluminação das casas e pontos mais importantes da cidade. Um quadro grande mostrava na parte superior o retrato do príncipe regente "entre um festão de rosas"; de um lado a figura de Lísia com o semblante lacrimoso, do outro a África de joelhos oferecendo suas riquezas, e a América, de manto real e borzeguins, ofertando o coração que tinha nas mãos; em baixo, a pintura da nau em que viera D. João. Versos completavam estas imagens, alusivos à transmigração da família real.

Além das luminárias, a música fazia parte da festa em homenagem a D. João, segundo um relato coevo: "Um grande coreto decentemente ornado, onde os músicos não cessavam de cantar, por grande parte das noites, os louvores do grande e incomparável príncipe". Também se recitaram, na presença de D. João, trechos em prosa e verso adequados à ocasião.

Fogos de artifício bem engenhosos celebraram o nascimento de D. Maria da Glória em 1819; desfiles de carros e danças fizeram parte da celebração do casamento da Princesa da Beira com o infante de Espanha em 1810. Não deixou a Gazeta do Rio de Janeiro de descrever os carros que os vários grupos socio-profissionais ofereceram para contribuírem para o esplendor do cortejo. 

Os negociantes de varejo e boticários apresentaram o Carro da América acompanhado pela dança dos índios; os negociantes do ouro e da prata e os relojoeiros, o Carro da China; os negociantes de molhados e lojas de louças, o Carro da Imortalidade com a dança dos heróis portugueses; os artesãos (latoeiros, ferreiros, segeiros, etc.) também ofereceram carros alegóricos, ou então simplesmente danças como a dança dos mouros, dos chinas, etc.

Nas festas de 1818, pela aclamação de D. João VI, os carros e danças foram ainda mais requintados. O corpo do comércio contribuiu com um carro de triunfo à romana, cuja execução se deveu ao maquinista do Real Teatro São João. Dentro deste carro iam "várias máscaras no trajo dos antigos portugueses, com capacete, lança e escudo", os quais executaram danças acompanhados por sua própria banda de música. Um outro carro representava "o triunfo do Rio de Janeiro" e conduzia dezasseis dançarinos e oito músicos.

Por ocasião do casamento de D. Pedro com a arquiduquesa de Áustria, D. Leopoldina, além de danças e corridas de touros, houve tripúdios militares pelos batalhões do Rio de Janeiro: "Entraram na praça com as músicas dos seus respectivos corpos e depois das continências executaram com muito primor e firmeza várias evoluções, fazendo três vezes fogo volante", relatou o padre Luís Gonçalves dos Santos. As corridas de touros, as cavalhadas e as encamisadas completavam o leque de divertimentos oferecidos à população carioca por ocasião das grandes festas.

Outras festas mais simples compunham-se de menos elementos. Por exemplo, para comemorar a restauração de Portugal depois das invasões francesas, o Príncipe Regente mandou celebrar "um tríduo com toda a pompa e esplendor" na capela real. Missas solenes cantadas e uma oração gratulatória pelo pregador régio foram depois seguidas por uma procissão e por "teatro de Corte". O aniversário de D. João, a 13 de Maio, era sempre comemorado com uma grande parada, audiência e beija-mão e, nos anos de 1817 e 1820, com uma récita no Real Teatro de São João a que assistiram a família real, a Corte e o corpo diplomático.

As festas das legações estrangeiras passaram a agitar também a cidade outrora pacata. Por ocasião do aniversário do Príncipe Regente de Inglaterra, Lorde Strangford organizou "uma função esplendidíssima, consistindo em baile e ceia, a que foi toda a Corte". Para criar mais espaço para a recepção, não se hesitou em derrubar algumas paredes internas da residência do embaixador. 

Desembarcou tropa da marinha inglesa para montar a guarda juntamente com a cavalaria e a infantaria nacionais. D. João não esteve presente pois encontrava-se na Fazenda de Santa Cruz, mas seu camarista apresentou cumprimentos pela data. "A marquesa de Belas foi a mestra sala das senhoras, Strangford o dos homens", relatava para Lisboa o funcionário da Biblioteca Real, Luís dos Santos Marrocos, que não perdia uma ocasião de comentar as festas e saraus de uma cidade onde a sociabilidade ocupava agora um lugar de relevo.

 
 
3. Música sagrada e profana.

Quando a catedral do Rio de Janeiro passou em 1808 a capela real, localizada na igreja dos Carmelitas, as cerimónias religiosas ali realizadas ganharam um esplendor que não tinham antes. 

A orquestra, antes composta de cordas, flauta, clarinetes, trompas e às vezes fagotes, como se pode ver pelas partituras do padre mulato José Maurício Nunes Garcia, mestre da capela, foi depois ampliada com músicos idos de Portugal, formando-se assim, no dizer do mesmo padre, uma "orquestra imensa e prodigiosa".

Aliás o padre José Maurício desempenhou uma multiplicidade de funções ligadas à capela real: foi compositor, arquivista, organista, regente, pagador dos membros da orquestra. E foram muitas as suas composições, antes e depois de chegar "o arquivo de música de Queluz". 

Entre 1808 e 1811, foi ele a estrela musical, mas com a chegada de Marcos Portugal o favoritismo deste fez esmorecer a projecção do mulato na Corte. As obras compostas por ordem régia passaram a destinar-se à Real Quinta da Boavista ou à Fazenda de Santa Cruz e não mais à capela real. Em 1816, um novo mestre-capela foi nomeado: Fortunato Mazziotti. 

E Marcos Portugal era agora o regente. Só em duas ocasiões surge o padre José Maurício à frente da orquestra: na missa mandada dizer pelo Senado da Câmara por ocasião da subida ao trono de D. João VI; e naquela para celebrar o nascimento de D. Maria da Glória.

O gosto musical de D. João levou-o a pensar, em 1813, na criação de um Seminário de Música destinado a meninos cantores da capela real, extinguindo-se um dos seminários do Rio de Janeiro, o Seminário de São José. Mas o bispo não apoiou esta ideia, com a alegação que o mestre-capela podia muito bem encarregar-se de descobrir doze rapazes com vozes de soprano, uma vez que ele era também professor de música.

Quanto ao célebre Marcos Portugal, na missa solene de 26 de Junho de 1811 pela expulsão das tropas de Napoleão do território português, foi já uma composição sua que foi tocada. 

Aliás o compositor foi logo à chegada nomeado "director geral de todas as funções públicas, assim de igreja como de teatro". Em Dezembro do mesmo ano, para celebrar o baptizado do filho da infanta D. Maria Teresa e do infante D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança, e também o aniversário de D. Maria I, foi cantada uma ópera sua, L'oro non compra amore , rotulada como um "dramma giocoso per musica", que foi cantada por cantores locais (João dos Reis e Joaquina Lapinha) e por italianos.

Embora no Reino Marcos Portugal tivesse sido sobretudo um compositor de óperas, no Rio de Janeiro a composição de música sacra ocupou a maior parte do seu tempo. Muitas dessas partituras foram trazidas para Portugal quando D. João VI deixou o Brasil e encontram-se na Biblioteca da Ajuda. 

Para citar apenas algumas composições sacras, em Dezembro de 1811, Matinas do Natal, com clarinetes, trompas, fagotes, violoncelos e violetas; 1812, Matinas da Epifania; 1813, Te Deum com toda a orquestra. Quando, em 1816, morreu D. Maria I, Marcos Portugal compôs uma Missa de Requiem, cuja partitura, segundo Jean-Paul Sarraute, se encontra na Biblioteca da Catedral do Rio de Janeiro.

Em 1816, a vida musical do Rio de Janeiro foi agitada pela chegada de Segismundo Neukomm, discípulo de Haydn e músico de renome na França. Ele foi incorporado à embaixada do duque de Luxemburgo em 1816, quando Luís XVIII quis reatar as relações diplomáticas com a monarquia portuguesa. 

Talleyrand recomendou Neukomm ao conde da Barca e, depois de apresentado a D. João, foi nomeado professor de piano da infanta D. Maria e do príncipe D. Pedro. Quando D. Leopoldina chegou em 1817 ao Rio de Janeiro para se tornar esposa do príncipe real, levou consigo uma orquestra e um novo gosto musical, sendo apreciadora das obras de Bomtempo, já impressas em Paris e Londres. Essas partituras encontram-se hoje na secção de música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Entretanto Marcos Portugal prosseguiu com suas composições de música religiosa para vários eventos, além de um Hino para a feliz aclamação de S.M.F. o Senhor D. João VI que podia ser tocado com a orquestra inteira ou só com a banda militar, "entrando esta a grande zabumba e todos os instrumentos pertencentes a este género", segundo reza o manuscrito de 5 de Abril de 1817, que se encontra na Biblioteca da Escola de Música do Rio de Janeiro.

Por ocasião dos desposórios de D. Pedro e D. Leopoldina, Marcos Portugal esteve muito ocupado com uma Missa Solene e um Te Deum para a capela real, a "serenata per musica" Augurio di Felicità o sia il Trionfo d'Amore para a recepção na Quinta da Boa Vista e a ópera "séria" Merope para o Teatro São João.

Em Dezembro de 1819, o padre José Maurício regeu pela primeira vez o Requiem de Mozart no Rio de Janeiro e Neukomm, que muito apreciava o padre mulato, enviou para um jornal musical em Viena uma referência elogiosa a esta apresentação de Mozart, desconhecido no Brasil. Neukomm só deixou a corte brasileira poucos dias antes da partida do rei para Portugal, enquanto Marcos Portugal decidiu permanecer no Rio de Janeiro, onde morreu em 1830.

 

 
 
4. Os espectáculos teatrais.

Sede da Corte, o Rio de Janeiro precisava de um teatro que satisfizesse as necessidades de uma nova clientela, construído "à moda do de São Carlos", como escrevia Luís dos Santos Marrocos. Para angariar fundos para a sua construção, foram permitidas pelo Príncipe Regente, em 1811, sete lotarias. 

Quando foi a inauguração do Real Teatro de São João, em 1813, o espectáculo começou com um "drama lírico" intitulado O Juramento dos Numes , da autoria de D. Gastão Fausto da Câmara Coutinho que já em 1810 compusera um outro drama, O Triunfo da América . A música foi composta por Bernardo José de Sousa e Queirós, compositor do Real Teatro, e nos intervalos executavam-se danças. No fim foi apresentada uma peça, Combate de Vimeiro.

Pelos anúncios da Gazeta do Rio de Janeiro se depreende que as sessões teatrais eram sempre muito variadas, com peças dramáticas, música, danças, entremezes, recitativos. A ópera também estava presente, com a Cenerentola de Rossini e a Caçada de Henrique IV de Puccitta. O bailarino francês Auguste Toussaint dançou, em 1819, um "baile série pantomimo", Ulisses e Penélope.

Embora fossem frequentes os espectáculos do Teatro São João, eram sobretudo as datas memoráveis relacionadas com a família real que davam ocasião a sessões mais cuidadas. O casamento de D. Pedro com D. Leopoldina foi festejado com um "elogio alegórico", com o "drama por música" Coriolano e, nos intervalos deste, um ballet, ou baile, Triunfo do Brasil, para o qual o pintor de história Jean-Baptiste Debret fez um quadro alusivo aos desposórios.

 

 
5. A mudança nos hábitos dos cariocas.

A presença da Corte e de estrangeiros alterou, entre outros aspectos do quotidiano, os hábitos alimentares do Rio de Janeiro. Se, à chegada, os reinóis tinham encontrado "o trivial quitute de carne seca de Minas com feijão negro e farinha de pau", passados alguns anos a Gazeta do Rio de Janeiro anunciava as iguarias mais diversas e mesmo desconhecidas como as tâmaras, por exemplo. 

Os italianos dominavam o comércio alimentar com as massas, os enchidos e os pães preparados à maneira europeia, "sem entrar mão de obra de pretos que infectam a massa com o suor", como se lia num anúncio.

O consumo de vinho aumentou e a importação se diversificou com vinhos brancos, tintos, moscatéis, Portos e malvasia. A procedência era nacional (Carcavelos, Chamusca, Madeira) ou europeia (Catalunha, Bordeaux, Borgonha, Champagne, Chipre, etc.). Frutos secos como avelãs, nozes e amêndoas fizeram sua aparição bem como os doces e compotas de frutos tipicamente europeus (ginja, pera, damasco, pêssego, figo).

As casas de pasto e os botequins espalharam-se pela cidade, atingindo mesmo arrabaldes como o Catete. Alguns desdobravam-se em hospedarias para os forasteiros, oferecendo também distracções como bilhar e jogo de gamão. A principal refeição servida era o jantar, entre a uma e as duas horas da tarde. 

O padrão habitual, segundo um anúncio da casa de pasto Cruz de Malta em 1820, era: "Uma sopa, um cozido, três pratos de diferentes qualidades, um de pastéis ou doce, sobremesa e meia garrafa de vinho". Um novo tipo de comércio surgiu na cidade graças aos confeiteiros italianos. 

Eram as lojas de confeitaria, onde se preparavam "refrescos" para fora, além de jantares. As empadas de peixe, por exemplo, tinham grande saída durante a Quaresma devido à prática do jejum imposta pela Igreja.

Numa cidade habitada agora por cortesãos e diplomatas, os mestres cozinheiros estrangeiros encontraram um mercado à sua medida, indo às casas particulares preparar banquetes e refrescos para serem servidos durante os saraus. 

Os utensílios de servir à mesa tornaram-se mais variados e requintados. Enquanto antes da chegada da Corte os inventários feitos por ocasião da morte revelam apenas algumas peças de prata e pratos simples de estanho, o inventário do rico negociante Elias António Lopes, feito em 1815, mostra um maior grau de exigência na maneira de servir à mesa. 

Além das habituais colheres, garfos e facas de prata, eram listadas escumadeiras, facas e garfos de trinchar, colher para tirar a sopa, galhetas e saladeiras.

O comércio carioca oferecia toda uma panóplia de objectos que os naturais da terra ignoravam ou desprezavam: tigelas para caldo, terrinas, sopeiras, jarros para água, garrafas de cristal para licor, poncheiras, chícaras de porcelana com retratos pintados, bules, cafeteiras, mostardeiras, manteigueiras, compoteiras. O francês Freycinet comentava que os utensílios de mesa não diferiam dos europeus, "mas muitos brasileiros acham mais cómodo comer com os dedos".

A simplicidade no interior das habitações e a escassez de móveis foram sendo substituidas por requintes europeus até então desconhecidos e muitas vezes incompatíveis com o clima do Rio de Janeiro. As frescas esteiras deram lugar a pesadas alcatifas; as paredes caiadas começaram a ser empapeladas. 

Um italiano, Antonio Giorgi, oferecia-se para forrar salas com papel inglês, tendo o cuidado de explicitar que o fazia "nas paredes mais húmidas" sem que o papel se estragasse. Quando os franceses começaram a actuar no comércio carioca depois de 1815, com eles chegaram vários adornos de casa como cortinas, sanefas, etc., inseridos no conceito de "armação". 

Léger, armador, vendia franjas de algodão e de seda para bambinelas. As camas, até então raras, passaram a ter armações mais elaboradas com cortinas franjadas.

O mobiliário diversificou-se. Tradicionalmente guardava-se a roupa em caixas; agora estavam à venda guarda-roupas e armários. As mesas ganham serventias variadas: mesas de jogo, mesas de chá, mesas de costura, além das mesas de jantar. Os guarda-louças, os aparadores, as papeleiras e as secretárias tornaram-se mais comuns.

O conceito de objectos para decoração difundiu-se e as casas passaram a ter biombos de charão, espelhos, estátuas de gesso, figuras de porcelana, jarras para flores, vasos de alabastro. Certas utilidades domésticas fazem a sua aparição, apesar do serviço continuar a ser feito por escravos: bancas de lavar, fogões de ferro com seus pertences para cozinha, lavatórios de bronze, etc.

Se já era comum a presença de guitarras e rabecas nas moradas cariocas, agora surgem as harpas, os pianofortes, os cravos de penas, as violas francesas de acompanhamento. Os quadros e as estampas tornaram-se presentes no interior das casas. 

Anunciavam-se quadros com "pinturas de flores", com ruínas da Roma antiga, gravuras de Morghen, Raynaldi, Folo e Bartolozzi "com molduras douradas de gosto moderno". 

As estampas, vendidas geralmente pelos mercadores de livros, representavam reis e heróis, nobres, ou então descreviam cenas históricas, por exemplo, uma "colecção de estampas que representam os principais sucessos em Espanha desde a prisão do pérfido Godoy até à derrota do exército francês de Andaluzia".

 

 
6. Artistas e naturalistas europeus.

Com a abertura dos portos em 1808, o Brasil começou a receber levas de europeus atraídos pela presença da Corte portuguesa. Uns eram simples artesãos, outros abriam lojas de novidades e modas, outros ainda eram dançarinos, cantores e músicos, retratistas ou miniaturistas. Depois que as guerras napoleónicas terminaram e as relações diplomáticas com a França foram reatadas, a presença francesa no Rio de Janeiro começou a fazer-se sentir.

Tendo como horizonte a criação de uma Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios, António de Araújo de Azevedo, conde da Barca, recorreu em 1815 ao marquês de Marialva, embaixador extraordinário em Paris, para que este organizasse um grupo de artistas que desejasse ir para o Brasil. As mudanças políticas em França, com a habitual substituição de indivíduos nos cargos públicos, facilitaram tal recrutamento.

O Decreto de 12 de Agosto de 1816 estabeleceu uma escola destinada a difundir os conhecimentos necessários ao progresso da agricultura, mineralogia, indústria e comércio. Assim, o estudo das Belas Artes não constituía um fim em si, devendo antes ter uma aplicação nos ofícios mecânicos. Ou seja, o espírito do decreto de D. João VI era o do iluminismo visando mais tornar o Brasil rico e opulento do que instalar no Brasil uma Escola de Belas Artes no sentido estrito do termo.

Acompanhava o decreto uma lista de pessoas que iriam receber de imediato uma pensão da Coroa, antes mesmo da efectiva criação da escola, desde que cumprissem as suas obrigações no ensino das Belas Artes "aplicadas à indústria, melhoramentos e progressos de outras artes e ofícios mecânicos". 

A pensão mais elevada era concedida a Joachin Lebreton, que tinha sido secretário da Classe de Belas Artes do Instituto de França e era considerado o chefe do grupo. Pensões iguais recebiam Jean-Baptiste Debret, "pintor de história"; Nicolas Antoine Taunay, designado apenas como pintor; Auguste Taunay, escultor; Grandjean de Montigny, arquitecto; Charles Simon Pradier, "abridor"; François Ovide, professor de Mecânica; e um certo Pierre Dillon, cuja actividade específica não era mencionada na lista. Pensões bem mais baixas receberiam Levasseur, Meunier e Bonrepos, assistentes do escultor e do arquitecto.

A morte do conde da Barca em 1817 atrasou a concretização do projecto e em 1819 morreu Lebreton. O Decreto de 12 de Outubro de 1820 criou finalmente a Academia Real de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitectura Civil. Nessa altura já Pradier, o gravador, se retirara para a Europa, e na relação das pessoas empregadas apareciam já nomes portugueses, sendo o director das aulas Henrique José da Silva, que era também lente de Desenho. Dois novos nomes franceses constam da lista como pensionários de escultura e gravura, os irmãos Marc e Zéphérin Ferrez.

Jean-Baptiste Debret, graças ao seu livro Voyage pittoresque et historique au Brésil, é o elemento mais conhecido do grupo francês do Rio de Janeiro, onde permaneceu durante quinze anos e onde assistiu a uma série ininterrupta de mudanças políticas. Enquanto não se instalou a projectada Academia este pintor de história começou por pintar retratos da família real e por criar decorações para as festas públicas e mesmo cenários para o Real Teatro de São João.

Ninguém melhor do que Debret retratou o quotidiano do Rio de Janeiro e, além das imagens mais conhecidas através do livro, podemos admirar as aguarelas e desenhos da Colecção Castro Maya, divulgada pelo coleccionador em Paris em 1954 através de um catálogo ilustrado. Temos aí retratada, por exemplo, a casa onde o pintor morou no Catumbi e também o seu atelier.

Nicolas Antoine Taunay deixou dois belos óleos pintados a partir do Morro de Santo António, que fazem parte do acervo do Museu Nacional de Belas-Artes no Rio de Janeiro. Um representa a entrada da barra com o Pão de Açúcar; o outro o Largo da Carioca com o casario da cidade. Muitas outras paisagens cariocas foram levadas para França, quando o artista para ali retornou em 1821. Aliás o paisagista soube procurar um lugar adequado para morar: o Sítio da Cascatinha, na floresta da Tijuca, onde construiu uma agradável casa onde frequentemente recebia os amigos franceses.

Dois dos seus filhos foram igualmente artistas e Hippolyte Taunay foi o que menos tempo permaneceu no Brasil. Em fins de Outubro de 1819, encontrava-se em Paris "adiantando a execução das suas estampas debaixo da protecção especial do Excelentíssimo Marquês de Marialva", segundo anunciava na Gazeta do Rio de Janeiro de 1 de Abril de 1820. Félix Émile foi paisagista como o pai e substituiu este nas aulas da Academia.

O gravador Pradier permaneceu apenas dois anos no Rio de Janeiro, mas deixou entre as suas gravuras vários retratos de personagens da Corte: a arquiduquesa de Áustria, D. Leopoldina, a cujo desembarque ainda assistiu e gravou a partir de um desenho de Debret; D. Pedro; o conde da Barca; Marcos Portugal, etc.

Quanto ao arquitecto Grandjean de Montigny, como o Erário Régio não tinha dinheiro para se executar logo o seu projecto para o edifício da Academia, foi aceitando outras encomendas como a Praça do Comércio, local onde os negociantes se reuniam para as suas transacções, o mercado da Candelária, e várias residências particulares. Quando D. João VI foi coroado, em Fevereiro de 1818, Montigny participou com os demais artistas franceses na decoração da cidade com arquitecturas efémeras para o Terreiro do Paço. Ministrou também aulas particulares de Arquitectura, pois a Academia só ficou pronta depois da independência.

Reduzido também a alunos particulares de escultura ficou Auguste Taunay. O gesso de um busto de Camões por ele esculpido encontra-se no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, enquanto o Museu Imperial de Petrópolis conserva um desenho a sépia para a execução de um baixo-relevo com uma alegoria à restauração da Baía.

Pouco tempo depois da chegada desta missão artística francesa em 1816, o casamento de D. Pedro com uma princesa austríaca levou ao Rio de Janeiro, em 1817, um grupo de artistas e naturalistas que não se circunscreveram ao espaço urbano do Rio de Janeiro e percorreram regiões inóspitas para recolher espécies naturais enriquecedoras dos Gabinetes de História Natural, sobretudo de Viena. Enquanto Thomas Ender deixou muitas imagens das ruas e da vida da cidade, Spix e Martius viajaram pelos confins da Amazónia e deixaram uma rica iconografia indígena, reproduzida na edição de Munique da Reise in Brasilien. 

O grupo austríaco era composto por vários especialistas: Mikan para botânica e entomologia; Johann Emanuel Pohl para mineralogia e botânica, tendo viajado também pelas Minas Gerais e Goiás; Thomas Ender era classificado como pintor de paisagens e Burchberger de pintor de plantas. Havia ainda um jardineiro para cuidar das espécies vegetais recolhidas.

Antes de partirem para as suas viagens de exploração científica, estes naturalistas permaneceram na Corte e puderam observar e descrever a cidade. Como todos os europeus, eram especialmente sensíveis à presença de escravos e às diferenças de costumes, quer no que se refere a hábitos alimentares, quer no que tange às actividades quotidianas ou aos trajes. Por esta razão, é impossível conhecer o ambiente urbano sem recorrer a Spix e Martius, Pohl, Thomas Ender, ou ainda outros viajantes europeus como J. M. Rugendas ou Auguste Saint-Hilaire.

 

 
7. Efervescência política.

Se exceptuarmos a tentativa de implantar uma república em Pernambuco em 1817, prontamente sufocada, o período joanino não assistiu a mudanças políticas até chegarem ao Rio de Janeiro as notícias do movimento constitucional no Porto, que avançou para Lisboa e levou à convocação de Cortes.

Na sua carta aos governadores do Reino, datada de 27 de Outubro de 1820, D. João VI, seguindo os conselhos do elemento mais conservador do seu ministério, Tomás António Vilanova Portugal, adoptou uma posição cautelosa em relação às Cortes portuguesas. A carta começava por apontar a ilegalidade na convocação por parte da nação, reproduzindo assim a tese do ministro Tomás António que escrevera: "As Cortes são ilegais e é necessário dizer que o são, para que elas não digam aos povos que têm autoridade de dar leis ao trono".

Mas, por outro lado, as Cortes eram já uma realidade perante a qual o governo do Rio de Janeiro só tinha três atitudes possíveis: dissolvê-las pela força; aceitá-las integralmente; tentar controlá-las. Às duas posições extremas, D. João VI preferiu, como sempre, o compromisso: autorizando ele as Cortes, deixavam estas de ser ilegais; refugiando-se na noção tradicional de Cortes, perdiam elas o seu carácter deliberativo, e sobretudo constituinte, e passavam a ser meramente consultivas, de acordo com a tradição da monarquia portuguesa.

Assim, escrevia D. João VI aos governadores do Reino: "Devendo esperar me proponham coisas muito importantes, para que essas propostas das Cortes não cheguem à minha real presença com a ilegalidade sobredita, eu as autorizo para que, em vista dos assuntos das Cortes anteriores, sancionadas pelos reis meus predecessores, me representem as emendas, alterações ou disposições, que acharem úteis para o esplendor e prosperidade da monarquia portuguesa". 

Sujeitas portanto à sanção régia as propostas emanadas das Cortes, reunidas estas "segundo os usos, costumes e leis fundamentais da monarquia", estava assim afastado, pensavam o monarca e o seu ministério, o carácter soberano do Congresso e acentuado o seu cará-cter puramente consultivo.

Notícias chegadas de Portugal a 11 de Novembro de 1820 tornavam mais difícil manter a ficção de que as Cortes reunidas em Lisboa seriam idênticas às antigas Cortes da monarquia. D. João VI convenceu-se então de que estava consumada em Portugal a revolução constitucional. 

Surgiu nesse momento na sede da Corte a ideia de que o Brasil devia ser preservado do contágio revolucionário mediante a separação dos dois reinos e o fortalecimento da monarquia em terras brasileiras. O Reino Unido, criado em fins de 1816 e que retirara definitivamente o Brasil da situação de colónia, dissolver-se-ia e daria lugar ao Império do Brasil. 

Deste modo Portugal seguiria o seu destino constitucional e o Brasil permaneceria fiel ao Antigo Regime. Esta solução política foi claramente exposta e defendida no folheto publicado em francês pela Impressão Régia do Rio de Janeiro e intitulado Le roi et la famille royale doivent-ils, dans les circonstances présentes, retourner en Portugal, ou bien rester au Brésil?

Escrito em fins de 1820, conforme se vê no próprio texto, foi o folheto francês publicado na segunda quinzena de Janeiro de 1821, pois a autorização para a impressão tem a data de 14 deste mês. O ministério mandou distribuir exemplares pelo Brasil, e até na Europa, e a repercussão foi enorme. É fácil entender porquê. 

Neste opúsculo pretendia-se demonstrar que D. João VI podia conservar intacta a sua autoridade no Brasil "e aí fundar um império florescente de grande peso na balança do mundo". A manutenção do Antigo Regime era ainda possível desde que se fizessem reformas administrativas pontuais.

A chegada do conde de Palmela ao Rio de Janeiro, a 20 de Dezembro de 1820, significou uma nova posição política no ministério, pois ele defendia a outorga de uma Carta Constitucional, dada a "tendência geral de todas as nações da Europa para a forma de governo representativo". Se D. João VI tomasse a inciativa, podia ainda conservar "aqueles atributos do poder que são inerentes à existência e à dignidade da Coroa" e, ao mesmo tempo, conter "os progressos da democracia".

A notícia da adesão da Baía às Cortes de Lisboa chegou ao Rio de Janeiro a 17 de Fevereiro de 1821. Com ela caiu por terra a tese do autor do folheto francês de que D. João VI se encontrava em posição de força porque o Brasil lhe permanecia fiel. Logo Palmela avisou o rei: "O fogo revolucionário vem aproximando-se rapidamente e, se V. M. não conseguir dar-lhe uma direcção conveniente, em breve se achará envolvido por todos os lados pelo incêndio".

Sem perder mais tempo, Palmela encaminhou ao rei, a 21 de Fevereiro, um projecto de decreto com as bases da Carta Constitucional estabelecendo o bicameralismo e a participação do rei no legislativo. Mas o que se publicou a 23 de Fevereiro foi um decreto em que se defendia a ideia de que a Constituição a ser elaborada em Portugal não se adaptaria, em todos os seus artigos, à "povoação, localidade e mais circunstâncias tão ponderosas como atendíveis deste Reino do Brasil". 

Ou seja, tal como ocorrera com o folheto francês, procurava o ministério, na figura de Tomás António, desvincular o Brasil daquilo que estava ocorrendo em Portugal. As Cortes iriam fazer uma Constituição, mas esta não poderia ser aplicada tal e qual ao Brasil.

Quer o folheto francês quer o decreto de 23 de Fevereiro inquietaram a tropa portuguesa sediada no Rio de Janeiro e provocaram o levante constitucional de 26 de Fevereiro. 

Movimento militar, feito quase exclusivamente pela Divisão Portuguesa, este movimento, graças a uma hábil intervenção de D. Pedro, não levou à adopção interina da Constituição espanhola como ocorrera na Baía. Prestado o juramento à futura Constituição por D. João VI e toda a família real, o ministério foi substituído, bem como a Intendência Geral da Polícia, sendo escolhidos indivíduos como Silvestre Pinheiro Ferreira menos ligados ao anterior governo.

A adesão ao sistema constitucional, iniciada no Pará, prosseguida na Baía e no Rio de Janeiro, foi ocorrendo depois nas demais províncias. As tipografias então existentes iniciaram a divulgação, por meio de periódicos e de folhetos, dos conhecimentos políticos exigidos pelo novo papel que os cidadãos, em substituição dos antigos vassalos, eram chamados a desempenhar na nova forma de governo.

 

 
8. A partida do rei para Portugal.

Logo a seguir ao movimento constitucional de 26 de Fevereiro de 1821, D. João VI emitiu vários decretos necessários à nova ordem política: o de 2 de Março concedeu a liberdade de imprensa; o de 7 de Março aprovou as instruções para a eleição dos deputados do Brasil às Cortes de Lisboa "segundo o método estabelecido na Constituição espanhola e adoptado para o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves".

Neste período surgiram os periódicos políticos que passaram a complementar e a comentar as informações contidas na tradicional Gazeta do Rio de Janeiro. Dois dos mais importantes foram o Conciliador do Reino Unido e O Bem da Ordem. Os folhetos, muitos deles reimpressões de textos já publicados em Lisboa ou Coimbra, fizeram sua aparição no mercado livreiro carioca. 

Os mercadores de livros começaram também a importar de Portugal "obras constitucionais" que elucidassem o público leitor acerca das mudanças políticas ocorridas. 

Como escrevia o redactor de O Bem da Ordem, exceptuados os homens de letras e alguns moradores das cidades e vilas principais, "todos os mais ignoram perfeitamente o que é uma Constituição, o que é serem representantes da sua pátria, carácter de que são revestidos em uma assembleia tão augusta como é o Congresso, ou ajuntamento geral das Cortes nacionais". 

A nova forma de governo exigia "muito maior número de ideias e conhecimentos", pois os indivíduos se tornavam membros activos e participantes na monarquia constitucional, enquanto na monarquia absoluta eram totalmente passivos.

Também a 7 de Março, D. João VI, decidida a sua ida para Portugal e a permanência de D. Pedro no Brasil com o título de Príncipe Regente, baixou as instruções sobre essa regência enquanto não fosse redigida a Constituição portuguesa. O príncipe ficava com um ministério próprio, ainda que simplificado, e com poderes para decidir questões referentes à Justiça, à Fazenda e ao Governo Económico.

Estas instruções sobre a futura regência de D. Pedro mostravam claramente que no Rio de Janeiro se mantinha um governo central e que aí não se estabeleceria uma Junta Governativa à semelhança do que ocorrera no Pará e na Baía. Era natural portanto que elas provocassem alguma reação contrária entre aqueles que zelavam pelos princípios vintistas.

Silvestre Pinheiro Ferreira, então ministro dos Estrangeiros e da Guerra, sugeriu desastradamente consultar os eleitores reunidos para as eleições para saber o que eles pensavam das instruções a D. Pedro. 

Como escrevia o ministro à guisa de justificação para tal consulta, importava dar "aquela publicidade que é compatível com a dignidade real" ao decreto e à nomeação do ministério da regência, aproveitando para isso os eleitores que eram "das pessoas mais capazes que se poderiam desejar". 

Na verdade estes reuniam grande parte da elite urbana (letrados, negociantes, médicos, eclesiásticos). Isso não impediu que a reunião, pensada pelo ministro para um consistório de igreja, mas convocada pelo ouvidor para a Praça do Comércio, degenerasse em assembleia tumultuada. 

Para ali se dirigiram "chatins e taberneiros", bem como a "caixeirada" da cidade e, em curto espaço de tempo, a assistência começou a exigir a adopção interina da Constituição espanhola, ao mesmo tempo que pretendia indicar os membros da Junta Provisória, rejeitando assim o decreto de D. João VI e as instruções por este dadas a D. Pedro.

A 21 de Abril de 1821 o rei viu-se compelido a assinar um decreto adoptando a Constituição de Cádiz, mas depois que a tropa dissolveu pela força a reunião dos eleitores na Praça do Comércio, de que resultaram feridos e mesmo mortos, a 22 D. João assinou outro decreto desdizendo-se e reiterando as instruções para a regência. 

A 25 embarcava o rei e a família real na nau D. JoãoVI e, segundo o relato de um contemporâneo, "todos os grandes e Corte a bordo de duas fragatas", além de mais seis embarcações. No dia 26 sairam pela barra fora.

D. Pedro permaneceu no Rio de Janeiro com os cofres vazios e uma situação política difícil em consequência dos acontecimentos da Praça do Comércio, para averiguação dos quais foi aberta uma devassa. D. João VI e sua comitiva de cerca de 4 000 pessoas chegaram ao Tejo a 3 de Julho.

 

Home
   
1