D. João
VI no Brasil
Condensado
de texto de Maria Beatriz Niza da Silva
Veja este site também em
http://es.geocities.com/atoleiros
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D. João VI
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- A
chegada da Corte e a expansão urbana do Rio de Janeiro.
É difícil
saber ao certo quantas pessoas aportaram ao Rio de Janeiro com o Príncipe
Regente D. João. Um contemporâneo escreveu que toda a esquadra se
compunha de 8 naus, 3 fragatas, 2 brigues, uma escuna e uma charrua de
mantimentos, além de 21 navios comerciais, o que daria um total de
10.000 pessoas.
Ao embarcarem
em Lisboa com destino ao Brasil, a família real, criados do paço, a
nobreza cortesã, os empregados públicos carregaram consigo o que
podiam levar de mais precioso: pratas, jóias, louças, roupas, livros,
manuscritos, mapas, etc.
Para alojar a
família real e a criadagem, o paço da cidade, antigo palácio dos
vice-reis, mesmo incorporando as acomodações da antiga cadeia e do
Convento do Carmo, não era suficiente. Calcula-se em 300 pessoas
aquelas que inicialmente ali se instalaram.
O rico
negociante Elias António Lopes pôs então à disposição do Príncipe
Regente a sua chácara, a Quinta da Boa Vista, depois denominada Palácio
de São Cristóvão. Algumas reformas foram ali feitas, primeiro por
artistas portugueses (José Domingues Monteiro e Manuel da Costa) e mais
tarde, por volta de 1816, por um inglês.
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- Mas D. João
em breve começou a usufruir de outras residências temporárias nas
ilhas da baía: Paquetá, ilha dos Frades, ilha do Governador. A propósito
desta última comentava o funcionário da Biblioteca Real, Luís dos
Santos Marrocos: "Tem ali um magnífico palácio de campo e uma
formosa chácara com tapada e coutados extensíssimos". Permanências
mais prolongadas fazia o Regente na Fazenda de Santa Cruz, antiga
propriedade dos Jesuítas que distava 11 léguas da cidade.
Já D.
Carlota Joaquina dividia o seu tempo entre o Paço da cidade e um sítio
em Botafogo para "tomar ares e banhos" acompanhada das filhas
menores. Em 1814 começou-se a preparar um palácio no sítio do Andaraí,
distante duas léguas e meia da cidade, para sua residência, mas em
1815 ela preferiu ocupar o palácio que fora do conde das Galveias, em
Mataporcos.
Enquanto a
família real se acomodava com maior ou menor conforto, os problemas de
moradia logo se fizeram sentir para os recém-chegados. O preço dos
alugueres subiu muito e os próprios nobres se queixavam do que tinham
de pagar pelas casas.
No núcleo
central da cidade tinham os mercadores e os artesãos suas lojas,
morando muitas vezes no andar de cima. A elite local preferia morar nos
arredores, em chácaras ou sítios dotados de maior conforto, e o mesmo
fizeram os que acompanharam a Corte e os diplomatas que começaram a
chegar ao Rio de Janeiro. O intendente-geral da Polícia, Paulo
Fernandes Viana, por exemplo, morava no sítio do Engenho Velho,
distante da cidade mais de uma légua.
As medidas
urbanísticas, até então a cargo do Senado da Câmara, passaram a ser
uma das principais funções do intendente-geral da Polícia. Logo em
Junho de 1809 um edital abolia as rótulas ou gelosias das casas, pois o
Rio de Janeiro, sede da Corte, não podia conservar "bisonhos e
antigos costumes, que apenas podiam tolerar-se quando era reputada colónia".
Ora um dos
elementos arquitectónicos que afeiava o prospecto da cidade era o terem
as janelas "rótulas ou gelosias de madeira, que nenhuma comodidade
trazem e que estão mostrando a falta de civilização de seus
moradores".
Era concedido
um prazo de oito dias para se retirarem as rótulas dos sobrados e
sessenta dias para serem colocadas grades de ferro, "ou balaústres
que as imitem". Só as casas térreas podiam conservar as rótulas,
uma vez que estas moradias "nada influem na beleza do
prospecto".
A única exigência
da Intendência da Polícia é que passassem as rótulas a abrir para o
interior das casas e não para a rua "pelo estorvo que causam aos
que passam". A iconografia revela contudo que neste último ponto o
edital da Polícia não foi cumprido com rigor.
A expansão
da cidade para fora dos seus limites anteriores ia levando, no dizer do
intendente, a uma "arbitrária edificação" sem qualquer
regularidade e algumas recomendações foram feitas ao Senado da Câmara
em Outubro de 1810: "Que as ruas que de novo se abrirem sejam mais
largas e conformes ao novo plano, para nelas se edificarem edifícios
regulares".
Nos
arruamentos deviam ser deixados espaços para praças, "o que não
só embeleza a cidade, mas contribui para a saúde da população".
A chamada "cidade nova" teria portanto ruas largas, praças e
edifícios regulares. Era importante também que as ruas fossem direitas
para facilitar as "carruagens emparelhadas" numa época em
que, com a chegada dos reinóis, as tradicionais cadeirinhas estavam
sendo substituídas por outros meios de transporte.
Um dos pontos
principais da política urbanística depois do Rio de Janeiro se tornar
a sede da monarquia foi a substituição das casas térreas pelos
sobrados. Aqueles que na cidade nova construíssem este tipo de casas no
prazo de dois anos depois do Decreto de 26 de Abril de 1811 ficariam
isentos do pagamento da décima por dez anos, ou mesmo por vinte anos,
se tivessem mais de um sobrado e mais de 5 portas ou janelas na fachada.
Na cidade nova ninguém podia construir casas térreas pois estas
tiravam toda a beleza à cidade
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- 2. As festas.
Embora já antes
da chegada da Corte o Rio de Janeiro tivesse seus festejos por ocasião
de alguma efeméride na família real (aniversários, nascimentos ou
casamentos), e suas tradicionais festas religiosas, depois de 1808 o número
e a opulência dos eventos festivos aumentaram. As festas do Antigo
Regime compunham-se de vários elementos e duravam vários dias. Havia
luminárias, fogos de artifício, cavalhadas, encamisadas, corridas de
touros, cortejos e desfiles, arrumação de tropa. A descrição
minuciosa desses festejos passaram a ocupar páginas e páginas da
Gazeta do Rio de Janeiro, o primeiro periódico a circular no Brasil.
Por vezes, a recém-criada Impressão Régia imprimia folhetos
descritivos dessas festas.
A cidade viveu
momentos festivos por ocasião do desembarque de D. João e sua
comitiva. Os moradores da Rua do Rosário e da Rua Direita receberam
aviso para ornarem a frente das suas casas com colchas e para
alcatifarem as ruas com areia, folhas e flores no caminho para a
catedral.
O cortejo abria
com os notáveis da cidade (civis, eclesiásticos e militares) e, por
fim, debaixo de um pálio, vinha o Príncipe Regente com a real família:
"Rodeavam a Sua Alteza Real os grandes do Reino, oficiais-mores da
sua real casa, camaristas e nobreza e era seguido de um numeroso cortejo
de eclesiásticos, militares, oficiais da marinha portuguesa e britânica,
como também de outras muitas pessoas que de Lisboa tinham vindo em sua
companhia", descrevia um contemporâneo.
O Rio de Janeiro
celebrou com oito dias de luminárias a chegada de D. João. Não se
tratava contudo de uma simples iluminação das casas e pontos mais
importantes da cidade. Um quadro grande mostrava na parte superior o
retrato do príncipe regente "entre um festão de rosas"; de
um lado a figura de Lísia com o semblante lacrimoso, do outro a África
de joelhos oferecendo suas riquezas, e a América, de manto real e
borzeguins, ofertando o coração que tinha nas mãos; em baixo, a
pintura da nau em que viera D. João. Versos completavam estas imagens,
alusivos à transmigração da família real.
Além das luminárias,
a música fazia parte da festa em homenagem a D. João, segundo um
relato coevo: "Um grande coreto decentemente ornado, onde os músicos
não cessavam de cantar, por grande parte das noites, os louvores do
grande e incomparável príncipe". Também se recitaram, na presença
de D. João, trechos em prosa e verso adequados à ocasião.
Fogos de artifício
bem engenhosos celebraram o nascimento de D. Maria da Glória em 1819;
desfiles de carros e danças fizeram parte da celebração do casamento
da Princesa da Beira com o infante de Espanha em 1810. Não deixou a
Gazeta do Rio de Janeiro de descrever os carros que os vários grupos socio-profissionais ofereceram para contribuírem para o esplendor do
cortejo.
Os negociantes
de varejo e boticários apresentaram o Carro da América acompanhado
pela dança dos índios; os negociantes do ouro e da prata e os
relojoeiros, o Carro da China; os negociantes de molhados e lojas de louças,
o Carro da Imortalidade com a dança dos heróis portugueses; os artesãos
(latoeiros, ferreiros, segeiros, etc.) também ofereceram carros alegóricos,
ou então simplesmente danças como a dança dos mouros, dos chinas,
etc.
Nas festas de
1818, pela aclamação de D. João VI, os carros e danças foram ainda
mais requintados. O corpo do comércio contribuiu com um carro de
triunfo à romana, cuja execução se deveu ao maquinista do Real Teatro
São João. Dentro deste carro iam "várias máscaras no trajo dos
antigos portugueses, com capacete, lança e escudo", os quais
executaram danças acompanhados por sua própria banda de música. Um
outro carro representava "o triunfo do Rio de Janeiro" e
conduzia dezasseis dançarinos e oito músicos.
Por ocasião do
casamento de D. Pedro com a arquiduquesa de Áustria, D. Leopoldina,
além
de danças e corridas de touros, houve tripúdios militares pelos batalhões
do Rio de Janeiro: "Entraram na praça com as músicas dos seus
respectivos corpos e depois das continências executaram com muito
primor e firmeza várias evoluções, fazendo três vezes fogo
volante", relatou o padre Luís Gonçalves dos Santos. As corridas
de touros, as cavalhadas e as encamisadas completavam o leque de
divertimentos oferecidos à população carioca por ocasião das grandes
festas.
Outras festas
mais simples compunham-se de menos elementos. Por exemplo, para
comemorar a restauração de Portugal depois das invasões francesas, o
Príncipe Regente mandou celebrar "um tríduo com toda a pompa e
esplendor" na capela real. Missas solenes cantadas e uma oração gratulatória pelo pregador régio foram depois seguidas por uma procissão
e por "teatro de Corte". O aniversário de D. João, a 13 de
Maio, era sempre comemorado com uma grande parada, audiência e beija-mão
e, nos anos de 1817 e 1820, com uma récita no Real Teatro de São João
a que assistiram a família real, a Corte e o corpo diplomático.
As festas das
legações estrangeiras passaram a agitar também a cidade outrora
pacata. Por ocasião do aniversário do Príncipe Regente de Inglaterra,
Lorde Strangford organizou "uma função esplendidíssima,
consistindo em baile e ceia, a que foi toda a Corte". Para criar
mais espaço para a recepção, não se hesitou em derrubar algumas
paredes internas da residência do embaixador.
Desembarcou
tropa da marinha inglesa para montar a guarda juntamente com a cavalaria
e a infantaria nacionais. D. João não esteve presente pois
encontrava-se na Fazenda de Santa Cruz, mas seu camarista apresentou
cumprimentos pela data. "A marquesa de Belas foi a mestra sala das
senhoras, Strangford o dos homens", relatava para Lisboa o funcionário
da Biblioteca Real, Luís dos Santos Marrocos, que não perdia uma ocasião
de comentar as festas e saraus de uma cidade onde a sociabilidade
ocupava agora um lugar de relevo.
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- 3. Música
sagrada e profana.
Quando a
catedral do Rio de Janeiro passou em 1808 a capela real, localizada na
igreja dos Carmelitas, as cerimónias religiosas ali realizadas
ganharam um esplendor que não tinham antes.
A
orquestra, antes composta de cordas, flauta, clarinetes, trompas e às
vezes fagotes, como se pode ver pelas partituras do padre mulato José
Maurício Nunes Garcia, mestre da capela, foi depois ampliada com músicos
idos de Portugal, formando-se assim, no dizer do mesmo padre, uma
"orquestra imensa e prodigiosa".
Aliás o
padre José Maurício desempenhou uma multiplicidade de funções
ligadas à capela real: foi compositor, arquivista, organista,
regente, pagador dos membros da orquestra. E foram muitas as suas
composições, antes e depois de chegar "o arquivo de música de
Queluz".
Entre 1808
e 1811, foi ele a estrela musical, mas com a chegada de Marcos
Portugal o favoritismo deste fez esmorecer a projecção do mulato na
Corte. As obras compostas por ordem régia passaram a destinar-se à
Real Quinta da Boavista ou à Fazenda de Santa Cruz e não mais à
capela real. Em 1816, um novo mestre-capela foi nomeado: Fortunato
Mazziotti.
E Marcos
Portugal era agora o regente. Só em duas ocasiões surge o padre José
Maurício à frente da orquestra: na missa mandada dizer pelo Senado
da Câmara por ocasião da subida ao trono de D. João VI; e naquela
para celebrar o nascimento de D. Maria da Glória.
O gosto
musical de D. João levou-o a pensar, em 1813, na criação de um
Seminário de Música destinado a meninos cantores da capela real,
extinguindo-se um dos seminários do Rio de Janeiro, o Seminário de São
José. Mas o bispo não apoiou esta ideia, com a alegação que o
mestre-capela podia muito bem encarregar-se de descobrir doze rapazes
com vozes de soprano, uma vez que ele era também professor de música.
Quanto ao célebre
Marcos Portugal, na missa solene de 26 de Junho de 1811 pela expulsão
das tropas de Napoleão do território português, foi já uma composição
sua que foi tocada.
Aliás o
compositor foi logo à chegada nomeado "director geral de todas
as funções públicas, assim de igreja como de teatro". Em
Dezembro do mesmo ano, para celebrar o baptizado do filho da infanta
D. Maria Teresa e do infante D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança, e
também o aniversário de D. Maria I, foi cantada uma ópera sua,
L'oro non compra amore , rotulada como um "dramma giocoso per
musica", que foi cantada por cantores locais (João dos Reis e
Joaquina Lapinha) e por italianos.
Embora no
Reino Marcos Portugal tivesse sido sobretudo um compositor de óperas,
no Rio de Janeiro a composição de música sacra ocupou a maior parte
do seu tempo. Muitas dessas partituras foram trazidas para Portugal
quando D. João VI deixou o Brasil e encontram-se na Biblioteca da
Ajuda.
Para citar
apenas algumas composições sacras, em Dezembro de 1811, Matinas do
Natal, com clarinetes, trompas, fagotes, violoncelos e violetas; 1812,
Matinas da Epifania; 1813, Te Deum com toda a orquestra. Quando, em
1816, morreu D. Maria I, Marcos Portugal compôs uma Missa de Requiem,
cuja partitura, segundo Jean-Paul Sarraute, se encontra na Biblioteca
da Catedral do Rio de Janeiro.
Em 1816, a
vida musical do Rio de Janeiro foi agitada pela chegada de Segismundo
Neukomm, discípulo de Haydn e músico de renome na França. Ele foi
incorporado à embaixada do duque de Luxemburgo em 1816, quando Luís
XVIII quis reatar as relações diplomáticas com a monarquia
portuguesa.
Talleyrand
recomendou Neukomm ao conde da Barca e, depois de apresentado a D. João,
foi nomeado professor de piano da infanta D. Maria e do príncipe D.
Pedro. Quando D. Leopoldina chegou em 1817 ao Rio de Janeiro para se
tornar esposa do príncipe real, levou consigo uma orquestra e um novo
gosto musical, sendo apreciadora das obras de Bomtempo, já impressas
em Paris e Londres. Essas partituras encontram-se hoje na secção de
música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Entretanto
Marcos Portugal prosseguiu com suas composições de música religiosa
para vários eventos, além de um Hino para a feliz aclamação de
S.M.F. o Senhor D. João VI que podia ser tocado com a orquestra
inteira ou só com a banda militar, "entrando esta a grande
zabumba e todos os instrumentos pertencentes a este género",
segundo reza o manuscrito de 5 de Abril de 1817, que se encontra na
Biblioteca da Escola de Música do Rio de Janeiro.
Por ocasião
dos desposórios de D. Pedro e D. Leopoldina, Marcos Portugal esteve
muito ocupado com uma Missa Solene e um Te Deum para a capela real, a
"serenata per musica" Augurio di Felicità o sia il Trionfo
d'Amore para a recepção na Quinta da Boa Vista e a ópera "séria"
Merope para o Teatro São João.
Em Dezembro
de 1819, o padre José Maurício regeu pela primeira vez o Requiem de
Mozart no Rio de Janeiro e Neukomm, que muito apreciava o padre
mulato, enviou para um jornal musical em Viena uma referência
elogiosa a esta apresentação de Mozart, desconhecido no Brasil.
Neukomm só deixou a corte brasileira poucos dias antes da partida do
rei para Portugal, enquanto Marcos Portugal decidiu permanecer no Rio
de Janeiro, onde morreu em 1830.
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- 4. Os espectáculos
teatrais.
Sede da Corte,
o Rio de Janeiro precisava de um teatro que satisfizesse as
necessidades de uma nova clientela, construído "à moda do de São
Carlos", como escrevia Luís dos Santos Marrocos. Para angariar
fundos para a sua construção, foram permitidas pelo Príncipe
Regente, em 1811, sete lotarias.
Quando foi a
inauguração do Real Teatro de São João, em 1813, o espectáculo
começou com um "drama lírico" intitulado O Juramento dos
Numes , da autoria de D. Gastão Fausto da Câmara Coutinho que já em
1810 compusera um outro drama, O Triunfo da América . A música foi
composta por Bernardo José de Sousa e Queirós, compositor do Real
Teatro, e nos intervalos executavam-se danças. No fim foi apresentada
uma peça, Combate de Vimeiro.
Pelos anúncios
da Gazeta do Rio de Janeiro se depreende que as sessões teatrais eram
sempre muito variadas, com peças dramáticas, música, danças,
entremezes, recitativos. A ópera também estava presente, com a
Cenerentola de Rossini e a Caçada de Henrique IV de Puccitta. O
bailarino francês Auguste Toussaint dançou, em 1819, um "baile
série pantomimo", Ulisses e Penélope.
Embora fossem
frequentes os espectáculos do Teatro São João, eram sobretudo as
datas memoráveis relacionadas com a família real que davam ocasião
a sessões mais cuidadas. O casamento de D. Pedro com D. Leopoldina
foi festejado com um "elogio alegórico", com o "drama
por música" Coriolano e, nos intervalos deste, um ballet, ou
baile, Triunfo do Brasil, para o qual o pintor de história
Jean-Baptiste Debret fez um quadro alusivo aos desposórios.
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- 5. A mudança
nos hábitos dos cariocas.
A presença
da Corte e de estrangeiros alterou, entre outros aspectos do
quotidiano, os hábitos alimentares do Rio de Janeiro. Se, à chegada,
os reinóis tinham encontrado "o trivial quitute de carne seca de
Minas com feijão negro e farinha de pau", passados alguns anos a
Gazeta do Rio de Janeiro anunciava as iguarias mais diversas e mesmo
desconhecidas como as tâmaras, por exemplo.
Os
italianos dominavam o comércio alimentar com as massas, os enchidos e
os pães preparados à maneira europeia, "sem entrar mão de obra
de pretos que infectam a massa com o suor", como se lia num anúncio.
O consumo
de vinho aumentou e a importação se diversificou com vinhos brancos,
tintos, moscatéis, Portos e malvasia. A procedência era nacional
(Carcavelos, Chamusca, Madeira) ou europeia (Catalunha, Bordeaux,
Borgonha, Champagne, Chipre, etc.). Frutos secos como avelãs, nozes e
amêndoas fizeram sua aparição bem como os doces e compotas de
frutos tipicamente europeus (ginja, pera, damasco, pêssego, figo).
As casas de
pasto e os botequins espalharam-se pela cidade, atingindo mesmo
arrabaldes como o Catete. Alguns desdobravam-se em hospedarias para os
forasteiros, oferecendo também distracções como bilhar e jogo de
gamão. A principal refeição servida era o jantar, entre a uma e as
duas horas da tarde.
O padrão
habitual, segundo um anúncio da casa de pasto Cruz de Malta em 1820,
era: "Uma sopa, um cozido, três pratos de diferentes qualidades,
um de pastéis ou doce, sobremesa e meia garrafa de vinho". Um
novo tipo de comércio surgiu na cidade graças aos confeiteiros
italianos.
Eram as
lojas de confeitaria, onde se preparavam "refrescos" para
fora, além de jantares. As empadas de peixe, por exemplo, tinham
grande saída durante a Quaresma devido à prática do jejum imposta
pela Igreja.
Numa cidade
habitada agora por cortesãos e diplomatas, os mestres cozinheiros
estrangeiros encontraram um mercado à sua medida, indo às casas
particulares preparar banquetes e refrescos para serem servidos
durante os saraus.
Os utensílios
de servir à mesa tornaram-se mais variados e requintados. Enquanto
antes da chegada da Corte os inventários feitos por ocasião da morte
revelam apenas algumas peças de prata e pratos simples de estanho, o
inventário do rico negociante Elias António Lopes, feito em 1815,
mostra um maior grau de exigência na maneira de servir à mesa.
Além das
habituais colheres, garfos e facas de prata, eram listadas
escumadeiras, facas e garfos de trinchar, colher para tirar a sopa,
galhetas e saladeiras.
O comércio
carioca oferecia toda uma panóplia de objectos que os naturais da
terra ignoravam ou desprezavam: tigelas para caldo, terrinas,
sopeiras, jarros para água, garrafas de cristal para licor,
poncheiras, chícaras de porcelana com retratos pintados, bules,
cafeteiras, mostardeiras, manteigueiras, compoteiras. O francês
Freycinet comentava que os utensílios de mesa não diferiam dos
europeus, "mas muitos brasileiros acham mais cómodo comer com os
dedos".
A
simplicidade no interior das habitações e a escassez de móveis
foram sendo substituidas por requintes europeus até então
desconhecidos e muitas vezes incompatíveis com o clima do Rio de
Janeiro. As frescas esteiras deram lugar a pesadas alcatifas; as
paredes caiadas começaram a ser empapeladas.
Um
italiano, Antonio Giorgi, oferecia-se para forrar salas com papel inglês,
tendo o cuidado de explicitar que o fazia "nas paredes mais húmidas"
sem que o papel se estragasse. Quando os franceses começaram a actuar
no comércio carioca depois de 1815, com eles chegaram vários adornos
de casa como cortinas, sanefas, etc., inseridos no conceito de
"armação".
Léger,
armador, vendia franjas de algodão e de seda para bambinelas. As
camas, até então raras, passaram a ter armações mais elaboradas
com cortinas franjadas.
O mobiliário
diversificou-se. Tradicionalmente guardava-se a roupa em caixas; agora
estavam à venda guarda-roupas e armários. As mesas ganham serventias
variadas: mesas de jogo, mesas de chá, mesas de costura, além das
mesas de jantar. Os guarda-louças, os aparadores, as papeleiras e as
secretárias tornaram-se mais comuns.
O conceito
de objectos para decoração difundiu-se e as casas passaram a ter
biombos de charão, espelhos, estátuas de gesso, figuras de
porcelana, jarras para flores, vasos de alabastro. Certas utilidades
domésticas fazem a sua aparição, apesar do serviço continuar a ser
feito por escravos: bancas de lavar, fogões de ferro com seus
pertences para cozinha, lavatórios de bronze, etc.
Se já era
comum a presença de guitarras e rabecas nas moradas cariocas, agora
surgem as harpas, os pianofortes, os cravos de penas, as violas
francesas de acompanhamento. Os quadros e as estampas tornaram-se
presentes no interior das casas.
Anunciavam-se
quadros com "pinturas de flores", com ruínas da Roma
antiga, gravuras de Morghen, Raynaldi, Folo e Bartolozzi "com
molduras douradas de gosto moderno".
As
estampas, vendidas geralmente pelos mercadores de livros,
representavam reis e heróis, nobres, ou então descreviam cenas históricas,
por exemplo, uma "colecção de estampas que representam os
principais sucessos em Espanha desde a prisão do pérfido Godoy até
à derrota do exército francês de Andaluzia".
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- 6. Artistas
e naturalistas europeus.
Com a abertura
dos portos em 1808, o Brasil começou a receber levas de europeus atraídos
pela presença da Corte portuguesa. Uns eram simples artesãos, outros
abriam lojas de novidades e modas, outros ainda eram dançarinos,
cantores e músicos, retratistas ou miniaturistas. Depois que as
guerras napoleónicas terminaram e as relações diplomáticas com a
França foram reatadas, a presença francesa no Rio de Janeiro começou
a fazer-se sentir.
Tendo como
horizonte a criação de uma Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios,
António de Araújo de Azevedo, conde da Barca, recorreu em 1815 ao
marquês de Marialva, embaixador extraordinário em Paris, para que
este organizasse um grupo de artistas que desejasse ir para o Brasil.
As mudanças políticas em França, com a habitual substituição de
indivíduos nos cargos públicos, facilitaram tal recrutamento.
O Decreto de
12 de Agosto de 1816 estabeleceu uma escola destinada a difundir os
conhecimentos necessários ao progresso da agricultura, mineralogia,
indústria e comércio. Assim, o estudo das Belas Artes não constituía
um fim em si, devendo antes ter uma aplicação nos ofícios mecânicos.
Ou seja, o espírito do decreto de D. João VI era o do iluminismo
visando mais tornar o Brasil rico e opulento do que instalar no Brasil
uma Escola de Belas Artes no sentido estrito do termo.
Acompanhava o
decreto uma lista de pessoas que iriam receber de imediato uma pensão
da Coroa, antes mesmo da efectiva criação da escola, desde que
cumprissem as suas obrigações no ensino das Belas Artes
"aplicadas à indústria, melhoramentos e progressos de outras
artes e ofícios mecânicos".
A pensão mais
elevada era concedida a Joachin Lebreton, que tinha sido secretário
da Classe de Belas Artes do Instituto de França e era considerado o
chefe do grupo. Pensões iguais recebiam Jean-Baptiste Debret,
"pintor de história"; Nicolas Antoine Taunay, designado
apenas como pintor; Auguste Taunay, escultor; Grandjean de Montigny,
arquitecto; Charles Simon Pradier, "abridor"; François
Ovide, professor de Mecânica; e um certo Pierre Dillon, cuja
actividade específica não era mencionada na lista. Pensões bem mais
baixas receberiam Levasseur, Meunier e Bonrepos, assistentes do
escultor e do arquitecto.
A morte do
conde da Barca em 1817 atrasou a concretização do projecto e em 1819
morreu Lebreton. O Decreto de 12 de Outubro de 1820 criou finalmente a
Academia Real de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitectura Civil.
Nessa altura já Pradier, o gravador, se retirara para a Europa, e na
relação das pessoas empregadas apareciam já nomes portugueses,
sendo o director das aulas Henrique José da Silva, que era também
lente de Desenho. Dois novos nomes franceses constam da lista como
pensionários de escultura e gravura, os irmãos Marc e Zéphérin
Ferrez.
Jean-Baptiste
Debret, graças ao seu livro Voyage pittoresque et historique au Brésil,
é o elemento mais conhecido do grupo francês do Rio de Janeiro, onde
permaneceu durante quinze anos e onde assistiu a uma série
ininterrupta de mudanças políticas. Enquanto não se instalou a
projectada Academia este pintor de história começou por pintar
retratos da família real e por criar decorações para as festas públicas
e mesmo cenários para o Real Teatro de São João.
Ninguém
melhor do que Debret retratou o quotidiano do Rio de Janeiro e, além
das imagens mais conhecidas através do livro, podemos admirar as
aguarelas e desenhos da Colecção Castro Maya, divulgada pelo
coleccionador em Paris em 1954 através de um catálogo ilustrado.
Temos aí retratada, por exemplo, a casa onde o pintor morou no Catumbi e também o seu atelier.
Nicolas
Antoine Taunay deixou dois belos óleos pintados a partir do Morro de
Santo António, que fazem parte do acervo do Museu Nacional de
Belas-Artes no Rio de Janeiro. Um representa a entrada da barra com o
Pão de Açúcar; o outro o Largo da Carioca com o casario da cidade.
Muitas outras paisagens cariocas foram levadas para França, quando o
artista para ali retornou em 1821. Aliás o paisagista soube procurar
um lugar adequado para morar: o Sítio da Cascatinha, na floresta da
Tijuca, onde construiu uma agradável casa onde frequentemente recebia
os amigos franceses.
Dois dos seus
filhos foram igualmente artistas e Hippolyte Taunay foi o que menos
tempo permaneceu no Brasil. Em fins de Outubro de 1819, encontrava-se
em Paris "adiantando a execução das suas estampas debaixo da
protecção especial do Excelentíssimo Marquês de Marialva",
segundo anunciava na Gazeta do Rio de Janeiro de 1 de Abril de 1820. Félix
Émile foi paisagista como o pai e substituiu este nas aulas da
Academia.
O gravador
Pradier permaneceu apenas dois anos no Rio de Janeiro, mas deixou
entre as suas gravuras vários retratos de personagens da Corte: a
arquiduquesa de Áustria, D. Leopoldina, a cujo desembarque ainda
assistiu e gravou a partir de um desenho de Debret; D. Pedro; o conde
da Barca; Marcos Portugal, etc.
Quanto ao
arquitecto Grandjean de Montigny, como o Erário Régio não tinha
dinheiro para se executar logo o seu projecto para o edifício da
Academia, foi aceitando outras encomendas como a Praça do Comércio,
local onde os negociantes se reuniam para as suas transacções, o
mercado da Candelária, e várias residências particulares. Quando D.
João VI foi coroado, em Fevereiro de 1818, Montigny participou com os
demais artistas franceses na decoração da cidade com arquitecturas
efémeras para o Terreiro do Paço. Ministrou também aulas
particulares de Arquitectura, pois a Academia só ficou pronta depois
da independência.
Reduzido também
a alunos particulares de escultura ficou Auguste Taunay. O gesso de um
busto de Camões por ele esculpido encontra-se no Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, enquanto o Museu Imperial de Petrópolis
conserva um desenho a sépia para a execução de um baixo-relevo com
uma alegoria à restauração da Baía.
Pouco tempo
depois da chegada desta missão artística francesa em 1816, o
casamento de D. Pedro com uma princesa austríaca levou ao Rio de
Janeiro, em 1817, um grupo de artistas e naturalistas que não se
circunscreveram ao espaço urbano do Rio de Janeiro e percorreram regiões
inóspitas para recolher espécies naturais enriquecedoras dos
Gabinetes de História Natural, sobretudo de Viena. Enquanto Thomas
Ender deixou muitas imagens das ruas e da vida da cidade, Spix e
Martius viajaram pelos confins da Amazónia e deixaram uma rica
iconografia indígena, reproduzida na edição de Munique da Reise in
Brasilien.
O grupo austríaco
era composto por vários especialistas: Mikan para botânica e
entomologia; Johann Emanuel Pohl para mineralogia e botânica, tendo
viajado também pelas Minas Gerais e Goiás; Thomas Ender era
classificado como pintor de paisagens e Burchberger de pintor de
plantas. Havia ainda um jardineiro para cuidar das espécies vegetais
recolhidas.
Antes de
partirem para as suas viagens de exploração científica, estes
naturalistas permaneceram na Corte e puderam observar e descrever a
cidade. Como todos os europeus, eram especialmente sensíveis à
presença de escravos e às diferenças de costumes, quer no que se
refere a hábitos alimentares, quer no que tange às actividades
quotidianas ou aos trajes. Por esta razão, é impossível conhecer o
ambiente urbano sem recorrer a Spix e Martius, Pohl, Thomas Ender, ou
ainda outros viajantes europeus como J. M. Rugendas ou Auguste
Saint-Hilaire.
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- 7. Efervescência
política.
Se
exceptuarmos a tentativa de implantar uma república em Pernambuco em
1817, prontamente sufocada, o período joanino não assistiu a mudanças
políticas até chegarem ao Rio de Janeiro as notícias do movimento
constitucional no Porto, que avançou para Lisboa e levou à convocação
de Cortes.
Na sua
carta aos governadores do Reino, datada de 27 de Outubro de 1820, D.
João VI, seguindo os conselhos do elemento mais conservador do seu
ministério, Tomás António Vilanova Portugal, adoptou uma posição
cautelosa em relação às Cortes portuguesas. A carta começava por
apontar a ilegalidade na convocação por parte da nação,
reproduzindo assim a tese do ministro Tomás António que escrevera:
"As Cortes são ilegais e é necessário dizer que o são, para
que elas não digam aos povos que têm autoridade de dar leis ao
trono".
Mas, por
outro lado, as Cortes eram já uma realidade perante a qual o governo
do Rio de Janeiro só tinha três atitudes possíveis: dissolvê-las
pela força; aceitá-las integralmente; tentar controlá-las. Às duas
posições extremas, D. João VI preferiu, como sempre, o compromisso:
autorizando ele as Cortes, deixavam estas de ser ilegais;
refugiando-se na noção tradicional de Cortes, perdiam elas o seu carácter
deliberativo, e sobretudo constituinte, e passavam a ser meramente
consultivas, de acordo com a tradição da monarquia portuguesa.
Assim,
escrevia D. João VI aos governadores do Reino: "Devendo esperar
me proponham coisas muito importantes, para que essas propostas das
Cortes não cheguem à minha real presença com a ilegalidade
sobredita, eu as autorizo para que, em vista dos assuntos das Cortes
anteriores, sancionadas pelos reis meus predecessores, me representem
as emendas, alterações ou disposições, que acharem úteis para o
esplendor e prosperidade da monarquia portuguesa".
Sujeitas
portanto à sanção régia as propostas emanadas das Cortes, reunidas
estas "segundo os usos, costumes e leis fundamentais da
monarquia", estava assim afastado, pensavam o monarca e o seu
ministério, o carácter soberano do Congresso e acentuado o seu cará-cter
puramente consultivo.
Notícias
chegadas de Portugal a 11 de Novembro de 1820 tornavam mais difícil
manter a ficção de que as Cortes reunidas em Lisboa seriam idênticas
às antigas Cortes da monarquia. D. João VI convenceu-se então de
que estava consumada em Portugal a revolução constitucional.
Surgiu
nesse momento na sede da Corte a ideia de que o Brasil devia ser
preservado do contágio revolucionário mediante a separação dos
dois reinos e o fortalecimento da monarquia em terras brasileiras. O
Reino Unido, criado em fins de 1816 e que retirara definitivamente o
Brasil da situação de colónia, dissolver-se-ia e daria lugar ao Império
do Brasil.
Deste modo
Portugal seguiria o seu destino constitucional e o Brasil permaneceria
fiel ao Antigo Regime. Esta solução política foi claramente exposta
e defendida no folheto publicado em francês pela Impressão Régia do
Rio de Janeiro e intitulado Le roi et la famille royale doivent-ils,
dans les circonstances présentes, retourner en Portugal, ou bien
rester au Brésil?
Escrito em
fins de 1820, conforme se vê no próprio texto, foi o folheto francês
publicado na segunda quinzena de Janeiro de 1821, pois a autorização
para a impressão tem a data de 14 deste mês. O ministério mandou
distribuir exemplares pelo Brasil, e até na Europa, e a repercussão
foi enorme. É fácil entender porquê.
Neste opúsculo
pretendia-se demonstrar que D. João VI podia conservar intacta a sua
autoridade no Brasil "e aí fundar um império florescente de
grande peso na balança do mundo". A manutenção do Antigo
Regime era ainda possível desde que se fizessem reformas
administrativas pontuais.
A chegada
do conde de Palmela ao Rio de Janeiro, a 20 de Dezembro de 1820,
significou uma nova posição política no ministério, pois ele
defendia a outorga de uma Carta Constitucional, dada a "tendência
geral de todas as nações da Europa para a forma de governo
representativo". Se D. João VI tomasse a inciativa, podia ainda
conservar "aqueles atributos do poder que são inerentes à existência
e à dignidade da Coroa" e, ao mesmo tempo, conter "os
progressos da democracia".
A notícia
da adesão da Baía às Cortes de Lisboa chegou ao Rio de Janeiro a 17
de Fevereiro de 1821. Com ela caiu por terra a tese do autor do
folheto francês de que D. João VI se encontrava em posição de força
porque o Brasil lhe permanecia fiel. Logo Palmela avisou o rei:
"O fogo revolucionário vem aproximando-se rapidamente e, se V.
M. não conseguir dar-lhe uma direcção conveniente, em breve se
achará envolvido por todos os lados pelo incêndio".
Sem perder
mais tempo, Palmela encaminhou ao rei, a 21 de Fevereiro, um projecto
de decreto com as bases da Carta Constitucional estabelecendo o
bicameralismo e a participação do rei no legislativo. Mas o que se
publicou a 23 de Fevereiro foi um decreto em que se defendia a ideia
de que a Constituição a ser elaborada em Portugal não se adaptaria,
em todos os seus artigos, à "povoação, localidade e mais
circunstâncias tão ponderosas como atendíveis deste Reino do
Brasil".
Ou seja,
tal como ocorrera com o folheto francês, procurava o ministério, na
figura de Tomás António, desvincular o Brasil daquilo que estava
ocorrendo em Portugal. As Cortes iriam fazer uma Constituição, mas
esta não poderia ser aplicada tal e qual ao Brasil.
Quer o
folheto francês quer o decreto de 23 de Fevereiro inquietaram a tropa
portuguesa sediada no Rio de Janeiro e provocaram o levante
constitucional de 26 de Fevereiro.
Movimento
militar, feito quase exclusivamente pela Divisão Portuguesa, este
movimento, graças a uma hábil intervenção de D. Pedro, não levou
à adopção interina da Constituição espanhola como ocorrera na Baía.
Prestado o juramento à futura Constituição por D. João VI e toda a
família real, o ministério foi substituído, bem como a Intendência
Geral da Polícia, sendo escolhidos indivíduos como Silvestre
Pinheiro Ferreira menos ligados ao anterior governo.
A adesão
ao sistema constitucional, iniciada no Pará, prosseguida na Baía e
no Rio de Janeiro, foi ocorrendo depois nas demais províncias. As
tipografias então existentes iniciaram a divulgação, por meio de
periódicos e de folhetos, dos conhecimentos políticos exigidos pelo
novo papel que os cidadãos, em substituição dos antigos vassalos,
eram chamados a desempenhar na nova forma de governo.
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- 8. A partida
do rei para Portugal.
Logo a seguir
ao movimento constitucional de 26 de Fevereiro de 1821, D. João VI
emitiu vários decretos necessários à nova ordem política: o de 2
de Março concedeu a liberdade de imprensa; o de 7 de Março aprovou
as instruções para a eleição dos deputados do Brasil às Cortes de
Lisboa "segundo o método estabelecido na Constituição
espanhola e adoptado para o Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarves".
Neste período
surgiram os periódicos políticos que passaram a complementar e a
comentar as informações contidas na tradicional Gazeta do Rio de
Janeiro. Dois dos mais importantes foram o Conciliador do Reino Unido
e O Bem da Ordem. Os folhetos, muitos deles reimpressões de textos já
publicados em Lisboa ou Coimbra, fizeram sua aparição no mercado
livreiro carioca.
Os mercadores
de livros começaram também a importar de Portugal "obras
constitucionais" que elucidassem o público leitor acerca das
mudanças políticas ocorridas.
Como escrevia
o redactor de O Bem da Ordem, exceptuados os homens de letras e alguns
moradores das cidades e vilas principais, "todos os mais ignoram
perfeitamente o que é uma Constituição, o que é serem
representantes da sua pátria, carácter de que são revestidos em uma
assembleia tão augusta como é o Congresso, ou ajuntamento geral das
Cortes nacionais".
A nova forma
de governo exigia "muito maior número de ideias e
conhecimentos", pois os indivíduos se tornavam membros activos e
participantes na monarquia constitucional, enquanto na monarquia
absoluta eram totalmente passivos.
Também a 7 de
Março, D. João VI, decidida a sua ida para Portugal e a permanência
de D. Pedro no Brasil com o título de Príncipe Regente, baixou as
instruções sobre essa regência enquanto não fosse redigida a
Constituição portuguesa. O príncipe ficava com um ministério próprio,
ainda que simplificado, e com poderes para decidir questões
referentes à Justiça, à Fazenda e ao Governo Económico.
Estas instruções
sobre a futura regência de D. Pedro mostravam claramente que no Rio
de Janeiro se mantinha um governo central e que aí não se
estabeleceria uma Junta Governativa à semelhança do que ocorrera no
Pará e na Baía. Era natural portanto que elas provocassem alguma reação
contrária entre aqueles que zelavam pelos princípios vintistas.
Silvestre
Pinheiro Ferreira, então ministro dos Estrangeiros e da Guerra,
sugeriu desastradamente consultar os eleitores reunidos para as eleições
para saber o que eles pensavam das instruções a D. Pedro.
Como escrevia
o ministro à guisa de justificação para tal consulta, importava dar
"aquela publicidade que é compatível com a dignidade real"
ao decreto e à nomeação do ministério da regência, aproveitando
para isso os eleitores que eram "das pessoas mais capazes que se
poderiam desejar".
Na verdade
estes reuniam grande parte da elite urbana (letrados, negociantes, médicos,
eclesiásticos). Isso não impediu que a reunião, pensada pelo
ministro para um consistório de igreja, mas convocada pelo ouvidor
para a Praça do Comércio, degenerasse em assembleia
tumultuada.
Para ali se
dirigiram "chatins e taberneiros", bem como a
"caixeirada" da cidade e, em curto espaço de tempo, a
assistência começou a exigir a adopção interina da Constituição
espanhola, ao mesmo tempo que pretendia indicar os membros da Junta
Provisória, rejeitando assim o decreto de D. João VI e as instruções
por este dadas a D. Pedro.
A 21 de Abril
de 1821 o rei viu-se compelido a assinar um decreto adoptando a
Constituição de Cádiz, mas depois que a tropa dissolveu pela força
a reunião dos eleitores na Praça do Comércio, de que resultaram
feridos e mesmo mortos, a 22 D. João assinou outro decreto
desdizendo-se e reiterando as instruções para a regência.
A 25 embarcava
o rei e a família real na nau D. JoãoVI e, segundo o relato de um
contemporâneo, "todos os grandes e Corte a bordo de duas
fragatas", além de mais seis embarcações. No dia 26 sairam
pela barra fora.
D. Pedro
permaneceu no Rio de Janeiro com os cofres vazios e uma situação política
difícil em consequência dos acontecimentos da Praça do Comércio,
para averiguação dos quais foi aberta uma devassa. D. João VI e sua
comitiva de cerca de 4 000 pessoas chegaram ao Tejo a 3 de Julho.
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