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A Rússia, a Itália e a esquerda
Condensado de artigo do Dr.
Luciano Amaral - Professor universitário
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Há umas semanas, numa
conferência sobre segurança europeia em Munique, o Presidente Putin
lançou-se numa diatribe antiamericana e muitos olhinhos começaram
logo a brilhar. Pouco importa que Putin seja o que é. E pouco
importa que, certamente aplicando o multilateralismo de que se arvorou
campeão em Munique, tenha nos últimos anos reduzido a Chechénia a
um mero cenário pós-apocalíptico, para além de se entreter a patrocinar
de forma mais ou menos encapotada diversas brincadeiras pelo mundo fora,
desde o "socialismo do século XXI" do Presidente Chávez
até às farroncas nucleares iranianas.
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Houve logo imensa gente que o
começou a tomar como sério contrapeso necessário ao "império"
americano. O motivo próximo do arrazoado de Putin foi a
instalação de sistemas antimísseis balísticos americanos na
República Checa e na Polónia, outro presumível passo expansionista
dos EUA, a juntar à tendência da NATO para absorver os vizinhos da
Rússia.
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Mais uma vez, pouco importa que
a Rússia tenha historicamente entendido, sempre que pôde, a Europa
central como seu backyard, e que isso não pareça uma perspectiva
agradável aos países da área. Eis o que não impediu o aparecimento de
vários enamorados, para além do já costumeiro europeu de serviço, neste
caso o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, que se aprestou a dar
um ralhete aos americanos sobre a sensibilidade russa ofendida.
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Entretanto,
na semana passada, desfez-se o bacalhau com todos parlamentar (mais de
uma dúzia de partidos, uma solução de óbvia viabilidade) que sustentava
o Governo Prodi em Itália, e o pretexto foi de novo os EUA. Desta vez,
as questões eram a participação militar da Itália no Afeganistão (depois
da retirada, ao estilo Zapatero, do Iraque) e a expansão da base
americana de Vicenza.
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O
"professore" estava dependente do apoio da Refundação Comunista e de um
grupúsculo trotsquista (entre outros), porque há um ano se apresentou a
eleições como um "combatente pela democracia", contra o "fascismo"
larvar do Governo Berlusconi, mesmo que isso significasse ficar nas mãos
de partidos autoritários de esquerda.
As duas histórias valem a pena por nos remeterem para aquilo que
representa a esquerda hoje. Quando ela se contenta em cortejar um
protoditador russo, só porque ele se propõe dar umas palmatoadas aos
EUA, ou quando os seus representantes moderados se juntam com
abencerragens do marxismo primitivo para uma luta ficcional pela
"democracia" e contra o "império" americano, qualquer coisa não está
bem. A esquerda viveu sempre, desde que nasceu há 200 anos, das
promessas de construção do paraíso na Terra.
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- No século XX, quando não eram as
maravilhas soviéticas (ou albanesas, ou chinesas, ou cubanas), eram,
pelo menos, as escandinavas, com a sua humanização do capitalismo. Nada
disso resta hoje. Mesmo os reabilitados louvores à Escandinávia devem-se
sobretudo ao seu dinamismo económico, mais do que ao sistema social. A
esquerda que quer governar tem de apresentar-se como reformista (mesmo
quando diz que é para salvar o "Estado social"):
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- Blair não renegou
Thatcher, Schroeder teve de iniciar umas quantas reformas, Zapatero
não desfez a obra económica de Aznar (tendo de socorrer-se das
temáticas "fracturantes", do País Basco aos casamentos gay, para se dotar de
uma identidade própria), de Prodi espera-se que reveja diversos
mecanismos do Estado- -Providência, e Sócrates vive exclusivamente da
imagem (mais do que da realidade) "reformista". Isto é, a
esquerda que quer governar tem de apresentar-se pelo menos em parte com uma
agenda tendencialmente liberal, mesmo que truncada
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A
mundividência da esquerda era a escatologia laica que prometia o fim
do repugnante capitalismo e a sua substituição pela abundância e a
felicidade ecuménicas. Depois de desfeito o mito comunista, há quase
20 anos, e agora que começa a desfazer-se o mito social-democrata,
pouco mais resta do que os tiques e as manias. Há, evidentemente,
ainda o milenarismo meteorológico.
Mas
trata-se de uma degradação intelectual. Agora, apenas se oferece um
futuro de harmonia com árvores e passarinhos, sem promessas sobre se
os homens serão então mais iguais ou mais ricos. E há também as causas
que interessam a minorias, como o aborto ou os direitos homossexuais,
temas onde a esquerda parece descobrir a verdadeira natureza cruel e
hipócrita da sociedade ocidental. Mas sem isto, restam os tais tiques
e manias: o tique de execrar a sociedade ocidental e a mania de
abominar a América (afinal, a sociedade ocidental predominante e mais
bem sucedida).
A esquerda hoje não gosta muito do que existe, mas também não oferece
um horizonte ulterior. Claro que ela seria bastante mais útil e
interessante
caso se reconciliasse de vez com a sociedade ocidental. Mas, se o
fizesse, será que seria ainda esquerda?
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