Ser de Esquerda, Hoje 

Condensado de artigo do Dr. Mário Soares

 
«Estamos a assistir agora, em Portugal, depois da experiência inesquecível do 'Verão quente' de 1975, a um afloramento serôdio dessa velhíssima polémica, que se julgava ultrapassada, desta vez entre os 'renovadores' e os 'conservadores', reclamando-se por igual do PCP. 
 
Uns querem mais liberdade e democracia interna, num partido que nunca as teve, e outros persistem agarrados a uma dogmática e ao recurso a expulsões sem sentido nem eco na sociedade actual. Um debate patético!»

 

Ser de esquerda, no começo do século XX, era, antes de mais, acreditar no progresso e na possibilidade de transformar o mundo para melhor, participar no movimento que se propunha reparar as injustiças e desigualdades humanas, através de uma acção voluntária e colectiva com que se sonhava: a revolução. 

A esquerda era progressiva, confiante, optimista; a direita, conservadora, desconfiada das inovações, tradicionalista. Os «amanhãs que cantam» representavam essa esperança um tanto ingénua na revolução - que iria mudar todos os males do mundo, abruptamente, de um dia para o outro, e que podia ser feita num só país.

1917, a revolução na Rússia, apareceu como a concretização desse belo sonho libertador. Confusamente. Foi a vitória de Lenine (o bolchevique) contra Kerensky (o menchevique), que encarnava o sonho de uma democracia pluralista, ocidental. 

A vitória de Lenine institucionalizou a República dos Sovietes, rapidamente transformados em correia de transmissão do partido único (bolchevique). As dificuldades objectivas e os «inimigos externos» fizeram o resto e serviram para explicar que a Revolução devia defender-se, para subsistir, e assim, como aliás sucedeu com a Revolução Francesa, rapidamente, se chegou ao terror.

Contudo, para a esquerda, mesmo a mais reticente às práticas bolcheviques, a Revolução Russa foi saudada como uma aurora de esperança, anunciadora de um tempo novo. A questão então essencial era: seria possível a Revolução vingar num só país (tese de Estaline)? À custa de que sacrifícios? Ou, pelo contrário, era necessário alargá-la a outros países, como a Alemanha, para ser triunfante (tese de Trotsky)?

 

 

Aparentemente, a tese de Estaline teve ganho de causa porque o regime soviético implantado na Rússia, que nada tinha de esquerda - diga-se - visto que era fundamentalmente totalitário, sobreviveu à segunda grande guerra, vitorioso, longos anos. 

À custa - é certo - de violentas purgas, perseguições, «goulags», arbítrios e opressões de todo o tipo... Mas nem sempre os vitoriosos do momento, já o aprendemos, coincidem com os vitoriosos consagrados pela história...

Terceira constatação. O aceso debate entre os partidários do totalitarismo dito de esquerda (os comunistas) e os socialistas, intransigentes defensores da liberdade e de uma evolução gradualista das sociedades - envenenou as relações entre os partidos e as pessoas que se reclamavam da esquerda, na Europa e no mundo, durante, praticamente, todo o século XX.

O campo republicano durante a guerra civil de Espanha foi irreparavelmente enfraquecido por esse debate. Esbateu-se, depois, um pouco, durante a segunda guerra mundial, em virtude da «grande aliança» contra Hitler e da saga das resistências nacionais contra o terror nazi. 

Mas reacendeu-se, em força, com a divisão da Europa e a «cortina de ferro», denunciada em Fulton, por Churchill. Prolongar-se-ia, com altos e baixos - com as cisões do universo comunista e o aparecimento, após Maio de 1968, de gerações «esquerdistas» ou «anarco-populistas», com preocupações de sociedade e vivenciais mais do que políticas - até Gorbatchov, à queda do muro de Berlim e ao colapso do comunismo.

 

Estamos a assistir agora, em Portugal, depois da experiência inesquecível do «Verão quente» de 1975, a um afloramento serôdio dessa velhíssima polémica, que se julgava ultrapassada, desta vez entre os «renovadores» e os «conservadores», reclamando-se por igual do PCP. Uns querem mais liberdade e democracia interna, num partido que nunca as teve, e outros persistem agarrados a uma dogmática e ao recurso a expulsões sem sentido nem eco na sociedade actual. Um debate patético!

Quarta constatação. O património da esquerda é inseparável da liberdade - as ditaduras são sempre de direita, qualquer que seja o seu disfarce ideológico, embora haja, felizmente, direitas democráticas e antiditatoriais - mas há outros valores da esquerda, igualmente importantes e irrenunciáveis: a solidariedade, a igualdade de oportunidades, a justiça social, o laicismo, a concertação social, as conquistas do movimento sindical, obtidas ao longo de século e meio de ásperas lutas, a previdência social, como responsabilidade irrenunciável do Estado, a defesa do ambiente, a luta em favor dos excluídos, sobretudo nas sociedades dualistas do nosso tempo, em que as barreiras entre ricos e pobres são cada vez mais fundas.

Maio de 1968 e todas as transformações económico-sociais e culturais que se lhe seguiram, por toda a parte, veio trazer ao património da esquerda outros valores, digamos, existenciais, extremamente importantes: a participação directa dos cidadãos na vida política (sem pôr em causa a democracia representativa), a defesa dos equilíbrios ecológicos do Planeta, gravemente ameaçados, o direito à diferença, a liberdade sexual, a defesa de grupos minoritários, como os homossexuais, o estímulo ao associativismo...

A esquerda deixou de se definir apenas no plano político e passou a fazê-lo também pelo posicionamento das pessoas face à sociedade, à moral, à forma de viver e de conceber o futuro.

A última década do século XX assistiu ao colapso do movimento comunista no plano internacional - e da URSS, como superpotência mundial - à emergência de uma nova e única hiperpotência, sem paralelo nos planos militar, tecnológico e económico, os Estados Unidos, e ainda à revolução informática e tecnológica, que, no âmbito económico, deu origem à chamada globalização.

Globalização - «a mais moderna e avançada forma do mercado mundial», assegurando por forma não solidária «a expansão mundial do poder financeiro e especulativo», como a definiu o ilustre economista catalão José Luis Sampedro no seu recente e lúcido livro El Mercado y la Globalización.

Chegados a este ponto, direi, em jeito de conclusão, que a primeira e mais importante obrigação de uma esquerda moderna é redefinir-se, sem ambiguidades, perante a globalização que temos, a que alguns politólogos chamam «desregulada», outros «selvagem» e outros ainda «depredadora» (vide o livro do catedrático de Direito Internacional da Universidade de Princeton, Richard Falk, La Globalización Depredadora).

Porquê?

Porque a globalização que temos tem a ver com o aumento da pobreza no mundo, com o desrespeito pelas regras do Direito Internacional, com a subordinação da política aos «media» e à economia e, finalmente, com o domínio do mundo pelas multinacionais, afirmando o poder absoluto do dinheiro.

A esquerda de hoje tem que se situar resolutamente contra este tipo de globalização, que nos afecta a todos. Ora há uma globalização alternativa, ética que é possível e que é indispensável contrapor àquela que temos.

 
 

 

A cidadania, no século passado, podia definir-se em relação ao Estado. Hoje, dada a erosão dos Estados nacionais a que estamos a assistir (vide os trágicos exemplos da Argentina, da Colômbia ou da Venezuela, para só citar alguns dos mais significativos, com graves riscos quanto à sobrevivência das respectivas democracias) não pode deixar de se afirmar como global. Trata-se de um fenómeno novo, que a internet tornou possível: a consciência cidadã global.

Porque os problemas e desafios enormes que se nos colocam, neste início de século, são todos essencialmente globais: a pobreza, os grandes movimentos migratórios, a sida e outras pandemias, o narcotráfico, o crime internacional organizado, o terrorismo, a insegurança alimentar, a desordem ecológica.

A esquerda moderna, principalmente a que se inspira no socialismo democrático, deverá assumir a sua vocação federadora de todas as esquerdas. Com muito diálogo, paciência e no terreno das lutas comuns.

Deve saber estar atenta a todas as insatisfações, injustiças, a todos os retrocessos sociais que se esboçam e orientar-se, no seu combate político pacífico (porque em sociedades abertas a violência faz sempre o jogo dos mais poderosos, lembremo-nos dos exemplos de Gandhi e de Martin Luther King), no terreno social, cultural e dos combates políticos democráticos, por valores rigorosamente éticos.

Os valores de devoção à coisa pública e ao bem comum, da estrita moralidade política e individual, do serviço público em favor da comunidade, da boa governação, em benefício dos mais desfavorecidos, da generosidade e da solidariedade.

Não são valores exclusivos da esquerda, obviamente; mas a forma como forem percebidos e praticados podem e devem fazer uma parte substancial da diferença entre esquerda e direita.

 

 

Faz sentido ser de esquerda, hoje?

Faz todo o sentido, mais do que nunca. Num mundo globalizado, desregulado e em crise de valores, ter a coragem de afirmar os ideais da esquerda e de se bater por eles - tentando pô-los em prática, quotidianamente - representa uma lufada de ar fresco que nos é muito saudável nos tempos que correm.

- Dado o colapso das ideologias a dicotomia esquerda/direita tem ainda razão de ser? Claro que tem. Quem fala do colapso das ideologias são os arautos da ideologia triunfante: o pensamento único neoliberal, que está imprudentemente a arrastar o mundo para uma das mais sérias crises da história.

Não sou eu que o digo, é - entre muitos outros - o especulador filantropo George Soros, discípulo de Karl Popper e autor de A Crise do Capitalismo Mundial - A Sociedade Aberta Ameaçada.

- Há diferença, hoje, no plano das políticas concretas, entre direita e esquerda? Diferença há - e enorme. Mas - reconheço - nos últimos anos, a prática da social-democracia, na ânsia de se adaptar ao pensamento único dominante (neoliberal) e às necessidades do mercado global, tornou-se mimética de uma certa direita democrática. Sobretudo na União Europeia.

Está hoje a pagar, eleitoralmente, por isso. Será capaz de aprender a lição? É uma das questões interessantes da actualidade, que continua em aberto. Mas, se não aprender, aos partidos socialistas acontecer-lhes-á o que está a suceder aos partidos comunistas, transformar-se-ão em peças de museu.

- E os discursos e as propostas de certos políticos mediáticos não são muito semelhantes, quer se digam da esquerda ou da direita? Às vezes são, enfadonhamente. Mas esses, creiam os meus pacientes leitores que chegaram até aqui, não ficarão na história...

Condensado de artigo do Dr. Mário Soares

 
 
 
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