Como se fosse prefácio...


Este livro é da Cibele.Este livro é da Izabel.O mundo está cheio de poetas...e as livrarias cheias de livros de poesia encalhados. Mas a poesia continua sendo uma forma de expressão em que, resumidamente, pelo sentimento, podemos comunicar, muitas vezes, muito mais do que por outras formas.
É, em linguagem parnasiana, o encontro de almas. E, se uma alma só que seja se encontrar com a do poeta, valeu à pena.Talvez, leitor/a, a alma seja a sua. E, se for, pode ter certeza: foi um imenso prazer conhecer você.

Estou reproduzindo aqui o Sem Bandeiras, publicado em 1981. Mas agora, graças à web, é possível ter um contato mais estreito com eventual leitor/a. Para entrar em contato, como sempre, é só clicar aqui.

SEM BANDEIRAS


Sem bandeiras,

nem hinos, nem credos.

Sem verdades,

mas sem dúvidas insolúveis.

Sem pensar demais

sem sentir demais

nem arruinar-me.

Tudo simplesmente.

Mesmo na eterna complicação da vida.

É como eu gostaria,

e eu gostaria

e eu gostaria

demais.

Mas no mudo rolar das engrenagens

bem lubrificadas

engraxadas

as bandeiras, os hinos, os credos

as verdades tolas, todas,

pensando demais,

sentindo demais,

arruino-me, simplesmente, complicado

na eterna simplificação da vida.

Não é como eu gostaria

e eu gostaria,

e eu gostaria,

demais.


SEMEAR


Semear

sem pensar que a colheita te pertence.

Sem pensar que a terra te pertence

Sem pensar que a semente te pertence.

Semear.

Sem pensar que é semente única

perfeita

só feita por você.

Semear.

Sem imaginar que é tudo desprendimento.

Achando que a semeadura é tudo

e a colheita nada.

Semear

sabendo que a colheita virá um dia.

Sabendo que o importante não é colher,

mas que a colheita um dia virá.

Apesar de quem semeou.

Porque alguém semeou.

Mesmo que não esteja presente na seara.


NASCEU POR NASCER


Nasceu por nascer,

porque nasceu e pronto.

Sem grandes destinos,

sem grandes projetos,

sem grandes virtudes.

Cresceu porque tinha que crescer

e pronto, cresceu.

Sem grandes mistérios,

sem grandes conflitos,

sem grandes amores.

Adulteceu porque tinha que amadurecer

e pronto, adulteceu.

Sem grandes dinheiros,

sem grandes posses,

sem grandes cargos,

sem grandes amores.

Envelheceu porque tinha que envelhecer

e pronto, envelheceu.

Sem grandes pesares,

sem grandes lembranças,

sem grandes esperanças.

Faleceu porque tinha que falecer

e pronto, faleceu.

Sem grandes cortejos,

sem grandes discursos,

sem grandes lajes.

Viveu.


A TÍTULO DO QUE


A título do que alguém me tem

senão por meu consentimento?

A própria vida me tem

pelo meu medo

pela minha coragem

minha persistência

teimosia

em continuar vivendo.

Se da minha vida disponho

até ao ponto

de casado naturalmente com ela

poder me separar

dizendo adeus à vida,

quanto mais ao que me prende

pelo meu medo

ou por minha vontade.

A título do que alguém me limita

ou me limito

senão por meu consentimento

senão por seu consentimento?

Meu próprio consentimento

só me tem

pelo meu medo

pela minha coragem

pela minha teimosia

em continuar vivendo

mesmo que a vida não valha à pena

e seja apenas esperança.

E a título do que vivo?

Pela minha opção de viver

até que a vida tome sua própria opção,

na morte.


PASSAGEIRO DESTA VIDA


Passageiro desta vida,

tua dimensão, o olhar

que alcança muito pouco

mas que insistes em pensar

que alcança o Universo.

Passageiro desta vida,

que encontras Universos

aonde pões teu olhar.

Dentro de ti, um encontras

mesmo que o vazio, vazio seja

e não vácuo.

Fora de ti, outro encontras

mesmo que a dimensão do olhar

não alcance o sentido do Universo.

Viver, passageiro desta vida,

é mais do que pensar ver

quando só se está a olhar.

Passageiro desta vida,

porque não aprender com o olhar

arregalado da criança

que sabe olhar, só olhar?

Porque não aprender a perguntar,

passageiro de tantas respostas?


PASSAGEIRO


Passageiro

não navegas em alto mar

Nesta corrida de ratos

que parece não parar.

Como não tivesse fundo

nem a terra, nem o mar.

Nesta corrida insensata

que não sabe onde vai dar

Vindo de um começo incerto

teu destino é caminhar

Mas a vida te parece

não ter destino a alcançar.

Como se o progresso indo

não tivesse mais cessar.

Passageiro desta vida,

não sabes onde aportar.

E a Terra vai girando

neste Universo estrelar

girando, girando sempre

sem sequer perguntar

de onde vem tanta estrela

pra onde vai seu girar.

Passageiro desta vida,

nem é teu teu caminhar.

Passageiro desta nave

que está sempre a girar.

Passageiro deste sonho

só te basta o teu sonhar.


PASSAGEIRO


Passageiro,

preso por laços invisíveis

preso na velocidade do carro

preso na velocidade da vida.

Passageiro/prisioneiro

por que saltar, se a velocidade mata

e mata menos depressa do que o saltar?

Soltar

soltar na invisível cadeia dos passos

na cadeia dos laços

e atrás do tempo correr.

Deixando passar,

deixando andar,

sem que o incomodem

o carro, o tempo e os laços.

Mas a velocidade mata

tanto por quem passa

tanto para quem passa

e quem contempla.

De repente, os ponteiros param,

o relógio não toca

as nuvens imobilizam-se

e um segundo entre a eternidade

e o presente

abre-se

Vislumbro

o efêmero do correr, dos laços.


E O ENCANTO?


E o encanto, por onde andará?

Sepultado em cimento,

escondido pelo verde,

no sorriso da criança,

por onde andará o encanto?

Olho de volta, não encontro.

Nem nos olhos mortiços,

de onde o encanto se foi.

No sorriso debochado,

do encanto já gasto.

Mas...

e o encanto, por onde andará?

Talvez por aí,

a solto e a bom galope,

dentro de cada um

e cada um reconhece

o encanto dentro de si.

E olha o mundo e pergunta:

e o encanto, por onde andará?

Todos perguntando a todos

e, nos olhos de todos, nada dá para ver

senão a pergunta de todos:

e o encanto, por onde andará?

E sem encanto, com a pergunta nos olhos,

vai-se levando, vai-se vivendo,

sem saber como, quanto e como.

Encantadamente.


LIBERDADE


Liberdade, ainda que tardia.

Liberdade, tão necessária,

tão terrível.

A ameaça das gaiolas de ouro,

a comida certa,

o afago correto,

tudo medido, entregue na hora certa,

pela pessoa certa, certamente.

o cotidiano conhecido,

não o se jogar na corrente do tempo.

Tudo torna sedutoras prisões

e a liberdade, abismo.

Então por que este anseio pela liberdade,

mesmo que tardia?

Então por que o pretender seguir

na corrente do tempo,

cruzando vidas,

descobrindo o novo,

rompendo com o velho,

e sendo nem novo mais

nem velho ainda?

Então, por que?

Mas, por que não?


VOCÊ FOI FEITO


Você foi feito de sol

para trabalhar

para labutar

reproduzindo o belo.

É sua forma de adorar

você mesmo parte dele

o Universo.

Você foi feito de estrelas

para criar

dinamizar

e espelhar

o eterno.

É sua forma de adorar

você mesmo parte dele

o Universo.

Você foi feito de pó

para cultivar

e preservar

e adubar

a Terra.

É sua forma de adorar

você mesmo parte dele

o Universo.

Você foi feito

para nascer

para viver

para morrer

no belo, no eterno,

na Terra, no Universo.

É sua forma de adorar

você mesmo parte dele

o Universo.


E FAÇA-SE A ORDEM


E faça-se a ordem.

Assim foi feita.

Como é, foi, será,

em constante mudança

a ordem no movimento

a ordem/tempo.

E faça-se o cáos

Assim foi feito.

Como é, foi, será

em constante ordem

a ordenação na mudança

a ordenação no movimento

O cáos/ordem/tempo.

E faça-se o homem.

E assim foi feito

Em constante ordem

mudança

movimento

ordem/tempo

vida/morte

Em constante cáos

mudança

movimento

cáos/ordem/tempo/morte/vida

E os astros estavam girando.

Giravam, giraram, girarão

na muda ondulação da vida

na muda dança das órbitas

na muda existência do Universo.

A ordem que não se encontra no cáos

O cáos que não se encontra na ordem

O homem contempla o Universo

Se assusta e não entende.

Admira.


POR ONDE ANDOU


Por onde andou o andarilho

senão pelas quebradas da serra,

e, depois, subindo as picadas

chegando ao mirante

e olhando,

o que enxergou?

Nada senão as quebradas da serra,

as picadas

do mirante onde chegou.

Mas o que enxergava o andarilho

enqunto caminhava?

O mirante?

Não, as quebradas da serra,

as picadas.

E, ao chegar ao mirante,

o que encontrou?

De novo a serra,

vendo caminhantes ao longo das quebradas da serra

percorrendo as picadas

em direção ao mirante.

Mirante, miragem,

mirou

o caminhante.

E não é nada disso.


SERÁ PRECISO?


Será preciso alcançar as estrelas,

chegar ao limite do Universo

entrar no túnel do tempo,

ultrapassar a luz,

para conhecer o Infinito?

Será preciso conhecer tudo

eliminar barreiras

destruir muros

arruinar limites

para encontrar a Harmonia?

Contra-senso.

Sei que se me deixo fluir,

como parte do Universo imenso,

como unidade do fluxo do correr do rio,

como gota de água que forma a torrente,

sinto-me parte do fluir da vida,

percebo-me como parte do Universo.

E sou, ao mesmo tempo,

estrelas, Universo, luz, tempo,

sem barreiras para eliminar,

muros para destruir e sem limites.

Senso.

Ao mesmo tempo, saber, sentir e ver

e tentar conter

combater

os que constróem barreiras,

edificam muros

impõem limites

e impedem a Harmonia


GOSTARIA DE ENTENDER


Gostaria de entender

a dança muda das pessoas.

A admiração de alguns,

a indiferença de todos.

Gostaria de entender o que entendo.

Olho, olho de novo,

entendo.

Sem julgar, analiso,

diagnostico,

entendo.

Seu onde alguém se perdeu,

ou quem se busca.

Vejo simples,

e simplesmente vejo:

o que parou, enterrou-se,

o que está agonizando,

o que não tem paz e faz com tudo guerra.

o que carrega seus mortos e se amortalha neles.

Vejo, olho de novo e vejo novamente.

Não é engano meu?

Quem sabe.

Gostaria de entender o que entendo.

E no meio da confusão geral,

sinto-me muito só,

sinto-me muito eu,

mas definitivamente não basta.

Ou sinto-me muito nos outros,

miragem de mim mesmo,

que definitivamente não basta.

Mas talvez me baste

sentir-me vivo, vivendo,

fluindo, passando.

E talvez fazendo.


POR ESTRANHO QUE PAREÇA


Por estranho que pareça,

quem não se governa, governa,

quem não tem a ambição de se deter,

detém,

quem não se conhece, ensina.

Por estranho que pareça.

Parece estranho

que o estranho seja tão conhecido

e o conhecido tão estranho.

E eles estão lá, brigando

para ver quem vai mandar.

Estranho: alguns olham e levam a sério.

E eles estão lá, mandando

para ver quem vai obedecer.

Estranho: alguns ouvem e obedecem.

E eles vão para lá, prometendo,

para ver quem vai cobrar.

Estranho: alguns esperam.

Alguns querem mandar.

Alguns esperam o mando.

Estranho: são alguns.

A maioria vai vivendo livremente.

Estranho: para a minoria a maioria parece minoria.


UM DIA SOUBE


Um dia soube tudo o que havia

entre o céu e a Terra

pelos lados, no meio e muito além.

Pensava.

Um dia as certezas eram certas

as dúvidas eram certezas

e as certezas, nunca dúvidas.

Pensava.

Um dia, duvidava ser possível

que alguém soubesse o que havia

entre o céu e a Terra,

sequer pelos lados,

quer nos meios

e muito menos além.

Pensava.

Um dia as dúvidas eram certas

e a única certeza.

E as dúvidas, dúvidas

nunca certas.

Pensava.

Um dia as dúvidas passaram a ser dúvidas

as certezas, certezas

sem que as dúvidas fossem certas,

nem as certezas dúvidas.

Simplesmente sendo.

Penso.


NEM CONSIGO


Nem consigo mais ficar acompanhado.

As palavras, que dizem?

Já ouvi mais do que esperava,

e as palavras sábias me soam tolas.

Cócegas me dá a cercania.

Coço-me e afasto-me

e a coceira some.

Olho e me sinto distante

como se observasse,

e não tivesse nada a ver

com o drama,

como se fosse teatro.

Reajo, tento aproximar-me

e me afasto quanto mais me chego.

É como se esta paisagem

não me recebesse e me enjeitasse.

Sinto-se de passagem

e sei que de passagem estou.

Sei que é transitório

não só o ter, mas, inclusive, o ser.

E vou sendo, vou tendo,

sem ser ou ter,

vendo, vivendo.

De passagem, transitoriamente.


AMAR NÃO É PRISÃO


Amar não é prisão, nem cela.

Ninguém é condenado a amar.

Porque o amor chega como um passarinho.

E fica.

Solto e voando, livre como o vento das asas

solto como o canto no ar.

Mas ai do amor que prende.

O canto cessa e pode até matar.

Porque o amor é como um anjo.

Chega batendo as asas

e sai como veio.

O amor é livre gostar

como se gosta do vento

como se gosta do ar.

É ser gostando

e não gostar de ter.

Porque amar não é prisão, nem cela,

ninguém é condenado a amar.

Mas no tribunal da vida

a prisão pode ser liberdade.

E liberdade pode ser se prender.

Mas conservando as chaves.

E ser apenas sendo

sentir sentindo

amar amando

viver.

É pouco. E basta.


OS SALVADORES


Os salvadores estão soltos por aí

salvando almas, corpos, sonhos

para nutrirem suas almas, corpos,

e manterem vivo o sonho.

Os salvadores estão por aí,

regados a álcool, festas e farra.

Perdidos, bem lá no fundo de si mesmos,

planejam o dia do salvamento universal.

Um dia virá em que no planalto central

haverá redentores

e novamente o milênio vigorará na terra.

Enquanto isso, os que devem ser salvos

amam, vivem, comem, dormem, amam.

Criam seus filhos para crescerem,

viverem, amarem, terem filhos dos

filhos, dos filhos.

Enquanto isso, outros compram a vida

dos que amam, vivem, comem, dormem, amam.

Há algo muito errado em tudo isso.

Por que têm uns a vida de outros?

Por que a insistência em salvar os que

só querem que não os matem?

Viver e deixar viver

e ir vivendo

Mas tudo é sobrevivência e nada mais.

Enquanto isso, lá no fundo de cada um

existe uma aspiração de infinito.

Provavelmente é isto a alma.


MONUMENTOS DE CIMENTO


Monumentos de cimento,

que comemoram a cidade,

para mim são um tormento,

motivos de ansiedade.

O cinza que me devolve

a fumaça, este barulho...

A parede que me envolve...

Não sou pessoa, sou embrulho.

O carro que me persegue,

como os meus passos seguindo,

um dia, é certo, consegue

matar-me enquanto vou indo.

É um mar de gente e carro.

Muitos sons, desassossego.

Tosse, bronquite, catarro.

Fome, morte, desapego.

Nossas vidas, em segundos,

servem de aperitivo

ao futuro destes mundos

sem razões e sem motivo.

E no protesto calado,

essa manada de gente,

tudo só, tudo isolado,

sorri, chora, segue em frente.

De onde vêm, quem pergunta?

Pra onde vão, quem se importa?

É tanta pessoa junta...

É muita consciência morta.


ISOLOU-SE


Isolou-se, desligando o mundo.

E ali ficou, onde se recolheu.

Puxou nuvens lençóis

e, como fazia frio,

se aqueceu com sóis.

O vento passava sobre ele

e as folhas que caiam roçavam-lhe o rosto

A imensidão dos tempos envolveu-o

E ali ficou.

E por ele passaram os hunos,

Roma caiu, Paris ressurgiu,

novas terras foram descobertas

novos horizontes devastados.

E ali ficou.

E por ele passaram as multidões.

Ignorado, como queria,

ali ficou.

E ali está,

sonhando com tudo o que está acontecendo.


AS MEDIOCRIDADES


As mediocridades revestidas de importância,

que importância têm?

Se o tempo passa,

as pessoas morrem,

e os ossos alimentam a terra?

Mil monumentos,

pirâmides.

Megatérios rondam a civilização.

Todas as inutilidades desejadas.

A troca do ainda usável,

pelo novo a ser trocado.

O ar que se rarefaz

e o carbono que se faz diário.

Até respirar se faz difícil.

E mesmo o sol,

grátis até ontem,

vale pela cor que traz.

Civilização.

Cada vez menos civil.

E, não bastasse,

cada vez manos sã.


SIMPLES


Simples,

Simples, sim

Mas simples como o vento

O vento em movimento

movendo-se

pra'qui, p'ra lá

movendo-se

O vento/movimento.

Livre,

Livre, sim

Mas livre como as nuvens

As nuvens casadas com a Terra

acompanhando

livres

cercadas pela Terra

pelo movimento.

Igual,

Igual, sim

Mas igual como as montanhas

As montanhas que naturalmente são

montículos

montes

montanhas

planícies.

Harmônico,

Harmônico, sim

Mas harmônico como o movimento/tempo

Movimento/tempo do vento

que carrega as nuvens

que desabrocham em água

que transformam montanhas em

planícies e tudo mudam.

Simples, livre, igual e harmônico

como o cáos.


HARMONIA


Em seu lugar, cada vida,

não parada, em movimento,

vida fluente ou contida,

no tempo, no pensamento.

O interesse da vida,

na própria vida se esgota.

E não há vida perdida,

a vida não se derrota.

Cada ser deste planeta,

azul, bonito, perfeito,

passa feito um cometa,

voltando a vida ao seu leito.

Milhares de anos, vida,

milhares de sofrimento

não são perante a vida

senão um fugaz momento.

Cada vida é um segundo

da vida no universo.

Há universos no fundo

do momento mais diverso.

É o Universo que importa,

é cada vida que vive,

e mesmo quando está morta

na própria vida revive.


APESAR DE TUDO ISTO


Apesar de tudo isto

apesar de ser incerto

eu tenho uma louca idéia

que atravessa meus ouvidos.

Eu tenho a mensagem solta

que atravessa ouvidos surdos

penetra em corações roucos

e derruba certos muros.

Apesar de tudo incerto

apesar de tudo isto

eu tenho a mensagem errada

(que pode ser certa).

Eu tenho a mensagem certa

que atrai o meu ouvido

que atravessa a cabeça

e que derruba meus muros

que me põe no pensamento

que o mundo vale um momento

nos braços do meu amor

que o mundo vale o silêncio

do campo, da brisa, sol

que o mundo vale a paisagem

apesar de tudo incerto

apesar de tudo isto

apesar deste apesar.


E DE REPENTE...


E de repente os motores silenciaram;

a fumaça diluiu-se

a cidade adormeceu.

E de repente as árvores verdejaram;

as pessoas se falaram

e a cidade amanheceu.

E de repente o governo ruiu

os poderosos enfraqueceram

e a gente se descobriu.

E de repente ninguém mais mandou;

os homens se obedeceram

e nada naufragou.

E de repente

as pessoas tiveram um repente

e viram do pouco necessário

à necessidade da vida.

E as pessoas se amaram,

na casa que ocuparam,

no campo que cultivaram,

na fonte onde beberam,

desfrutando o belo.


HÁ ALGO DE MORTO


Há algo de morto no espaço interior.

Sinto o vazio da ausência do morto.

Sinto que ele se foi

(talvez até volte)

mas lá no fundo,

há cova, relva e túmulo.

Não adianta me dizer da ressurreição

nem falar de alma penada.

Quem se foi jaz morto e sepultado

no interior de mim mesmo.

Não adianta me falar do tempo

nem que o endurecimento da alma acompanha o corpo.

Nem adianta me dizer as coisas todas tolas

que reconfortam famílias em funerais.

Eu lhes devolverei o cheiro putrefato

do morto insepulto de mim mesmo.

Às palavras, responderei com berros primais

tentando libertar a criança que nasce do morto.

Nasce do adubo feito pela putrefação do outro,

olha em volta assustada porque nasce velha

e, surpresa, diz: "é belo"

e, chorando, diz: "tenho medo"

e, sonhando, espera.


ÀS VEZES


Às vezes ainda bato as asas

e vôo.

Sinto-me solto no ar,

como uma pipa.

Do alto, vejo tudo verde e azul.

O horizonte some

sinto-me companheiro da brisa

amigo da paisagem

amante da Terra.

Com ela, danço.

Estendo os braços, envolvo,

acaricio, amo.

Subo como um balão

e sou meu próprio vento.

Me dirijo e sou dono do destino.

Me acompanho e traço meu caminho.

Fecho os olhos e me conservo vivo.

Meus ouvidos ouvem mais que falam

e sonho de estar acordado.

Sem paredes que cerquem,

vou seguindo.

Da atração da Terra, me liberto.

Percorro as rotas do Infinito.

Dilato-me e ocupo o vácuo.

Faço pontes entre Universos.

Aspiro Galáxias, amo estrelas.

Encolho-me em quasars.

Visito universos paralelos.

Às vezes ainda volto

e ocupo o pequeno espaço que me foi dado

ou que me dei.

Às vezes ainda volto e sonho.


DIAS INÚTEIS


Dias inúteis

(o tempo passando)

A transformação,

menos bíblica do que o desejado,

nem água por vinho,

nem pães multiplicados

(que pão e vinho, peixes,

alimentam, nutrem a vida).

A miraculosa transformação

de tempo em papel,

da vida em papel,

que o tempo amarelece,

o fogo queima,

as pessoas esquecem.

E a mais miraculosa das transformações:

de papel em papel.

Em papel que compra,

mas compra as coisas, não o tempo.

E as transformações se transformando:

tempo em papel,

vida em tempo,

vida em papel,

que amarelece com o tempo,

que o fogo queima,

as pessoas esquecem.

E nem serve para embrulhar os sonhos.


DENTRO DE MIM


Dentro de mim existe um outro

pequeno, ainda de olhos arregalados,

ser.

No meio das grandes coisas,

dos grandes projetos e dos grandes medos

ele sonha

com grandes coisas, grandes projetos

e sente grandes medos.

Ri da vida, pela vida e com a vida,

envolve-se nas brincadeiras mais tristes

e se diverte com as tristezas inchoráveis.

Este ser pequeno,

em que me reconheço eu,

vive dentro de mim

e às vezes se solta por aí.

Corre para sentir o vento,

deixa-se levar pelas cascatas,

sente o cheiro de mato

e passa horas sem conta

só sentindo

só olhando

vendo as nuvens passarem,

imaginando imagens

ouvindo a água correr e brotar

imaginando mares

cheirando a brisa e o verde no ar

com o pensamento perdido nas nuvens

com o espírito navegando na água

e o corpo assentado no verde.

O pequeno ser em que reencontro

as recordações de mim mesmo.


DO TRAMPOLIM


Do trampolim de tuas mãos

mergulhei fundo nos teus olhos.

Volteei pelos ares

com a sensação da liberdade absoluta.

Piruetas desenhei

e quando mergulhei teus olhos se fecharam.

Nunca mais voltei à tona.

Entrei em tua corrente sangüínea

percorri tuas veias

fiz pulsar teu coração

ventilei-me em teus pulmões

fui digerido

reentrando em tua corrente sangüínea.

Em glóbulos vermelhos

percorri teu cérebro.

Conheci cada um dos mais secretos

pensamentos teus.

Recobrei em mim tua memória

vi-me criança contigo

chorei as dores do parto

vivi teu primeiro amor

e tive ciúmes.

E hoje vivo aqui,

sendo parte de cada célula do teu corpo,

de cada fração do ar que é respirado,

cada palpitação,

cada lamento.

E, se não posso escapar,

também não escapa quem me prende.

Mas cada parte a que pertenço

se renova.

E é certo que vou acabar morrendo,

quanto tudo o que for teu for renovado.


ATÉ ONDE ALCANÇA


Até onde alcança os sentidos

é o mundo do homem.

E é tão pequeno!

O que está ao alcance das mãos,

do ouvido, do olfato, dos olhos.

O mundo natural do homem:

sua aldeia, seu próximo,

sua dimensão/limite.

A mente estende-lhe os sentidos.

E o mundo tão pequeno se agiganta.

E é o Universo:

o Universo dos Universos

o Universo do infinitamente pequeno

e o Universo infinitamente enorme

além dos Universos que para si mesmo cria.

Mas, contradição das contradições,

o mundo ao alcance fica cada vez mais incompreensível

e o mundo dos sonhos inacessível.

E o mundo do homem?

Perde a dimensão do belo

Perde a dimensão da existência

Perde-se.

Abismado, refugia-se no sonho

Abismado, se ata à realidade

E não compreende:

seu mundo é apenas o Universo

seu mundo é o Universo das coisas próximas.


QUEM SABE O QUE PROCURA


Quem sabe o que procura,

por que procura se já achou?

Se sabe o que procura,

de certo modo já encontrou.

Pode não saber onde está,

mas tem, por certo, algumas indicações.

Porque, no fim das contas,

só se procura o que se perdeu

e quem perdeu sabe

"mais ou menos

por ali"

"talvez por aqui"

"em algum lugar"

"aí está"

encontra o que perdeu

a menos que alguém tenha levado.

Será, porém, a melhor maneira de procurar na vida?

Se ela ainda não foi vivida,

como procurar o que não se encontrou?

Principalmente porque, além da Geografia,

a História se impõe no Tempo.

Na própria Vida.

E o único lugar onde se pode procurar

o que se perdeu e se conhece

chama-se Memória.

Não será mais prudente

substituir o procurar por querer,

saber a diferença

entre querer/não querer

possível/impossível

e saber do limite do tempo, das coisas,

na gente, no outro, no tempo?


BRINCAR DE VIVER


Brincar de viver, coisa importante

Mais do que viver brincando

(que a vida é muito séria)

Mais do que brincar na vida

(o que é natural, normal,

lógico e necessário)

Brincar de sofrer

porque o sofrimento é inevitável

Brincar de amar

porque o amor sério é muito chato

Brincar até de brincar

senão a brincadeira fica a sério.

E fica sendo assim,

nesta brincadeira,

uma grande brincadeira,

para apenas transformar a vida

numa grande gargalhada

talvez com eco.

E se o eco ressoar,

pode ficar muito sério.


LENTAMENTE...


Lentamente a mão foi se estendendo

Lentamente os rostos se encontraram

Lentamente os olhos se entenderam

Lentamente os lábios se tocaram

Lentamente as mãos se levantaram

Lentamente os braços se abraçaram

Lentamente os corpos se despiram

Lentamente os dois se estenderam

Lentamente as almas se amaram

Lentamente depois se separaram

Lentamente então se despediram

Lentamente, lentamente se esqueceram

Lentamente a mão foi-se estendendo...


A GENTE


A gente tem ao nascer

mil maneiras de crescer

depois vai conhecer mundo

levar uns golpes profundos

que é para a gente aprender.

Segue rumos, corta rumos,

faz atalhos e contornos

escolhe das mil maneiras

umas tantas para viver

e descobre ao fim de tudo

que por trás de todo mundo

tem também gente a crescer.

E crescido finalmente

é quando a gente aprende

mil maneiras de nascer.


NOSSOS SONHOS...


Nossos sonhos enterremos

çomo se enterram os mortos.

Desta vida passaremos

sem os corpos, sem os sonhos

Depois de um, de mil portos,

por certo naufragaremos

sem os corpos, sem os sonhos...


TERRA A TERRA


Terra a terra, pés no chão,

mas a cabeça ao vento.

Que as idéias passem e arejem

Que o pensamento persiga o ar

e a inteligência, estrelas.

Terra a terra, pés fincados

mas o coração à solta.

Que os pensamentos fluam

Que o coração palpite

ao sabor do amor e das saudades.

Pés na terra, sim,

como semente

e que brote e verdeje

o corpo

o coração

a mente

Pés no chão, sim,

mas que o pensamento voe,

mas que o coração sinta.

Terra a terra, pés no chão,

mas que a alma viva.


UM PÁSSARO


Um pássaro se crê livrel

só porque pode voar dentro da gaiola.

Um pássaro se crê mais livre

só porque pode voar dentro de uma sala.

E mais livre um pássaro se sente

só porque pode voar dentro de uma casa.

Quando da casa sai,

mais livre um pássaro se sente

só porque pode voar por entre os prédios.

E um pássaro é livre

só porque não pode alcançar o sol, o céu e as estrelas

só porque não pode cobrir o mundo com suas asas

um pássaro é livre.

As crianças são pássaros

Mas nem todos os pássaros são homens.


Mais Poesias

Hosted by www.Geocities.ws

1