N Ó S N Ã O G O S T A M O S DE P A U L I S T A S .

O carro sumido em nuvem de poeira, senti - me desamparado.

Dois degraus, entrei.

– De volta, doutor?

– Cheguei de manhã...meu quarto ?

– Esvaziou há pouco...um trago?

Joguei a sacola no chão.

– Conhaque !

A quarta vinda pra cá, o lugarejo chamado Graciosa, vinte quilômetros de Curitiba...queria descansar, no dia seguinte inspeção da obra, linha telegráfica, muita subida e descida de morros...

– Vinho! - escutei.

Nicanor saiu de trás do balcão de má vontade, colocou uma garrafa na mesa de três matutos, passou perto de mim, deixou o conhaque, fez careta...entendi logo, não estava feliz com a presença deles...sorvi a bebida, acendi um cigarro, me sentia bem, relaxado...o calor diminuíra, frescor da tarde entrou pela porta...os três me olhavam...cochichos, sorrisos, fiz força para não ligar, difícil, mas...

– Jantar, por favor – falei – carne ensopada, salada de tomate e cebola, feijão, arroz, cerveja gelada.

– É paulista?

– Nivaldo, não aborrece! – falou Nicanor.

Provocação, não me perturbei, já passara por outras no passado, eu era um veterano freqüentador de antros, botecos, albergues e pocilgas de beira de estrada.

– Não sou, não – respondi tranqüilo.

– Não gosto de paulistas, tem certeza que não é?

Arrepio, senti os cabelos dos braços eriçados, iminência de aporrinhação, examinei o provocador...magro, parecia alto, rosto encovado, barba por fazer realçava a magreza, cabelo claro e ralo, olhos sem vida, as mãos chamavam atenção, grandes acima do normal, dedos longos, nódulos salientes, não liguei...aqui o pessoal usava faca, tentei adivinhar onde estaria escondida...os outros dois, bem nutridos, baixotes, sorriam, se divertiam...espiada na direção de Nicanor, posição costumeira, cotovelos apoiados no balcão, despreocupado...eu estava , o arrepio nunca falhava...tratei da refeição, da cerveja.

–Tem cara de paulista – ouvi de novo.

– Deixa ele – falou um dos gordos.

– Cala a boca! ele tem cara de paulista.

Entre uma garfada e outra, respondi, ainda bem humorado:

– Pode ser que tenho mas não sou.

– Olhando bem acho que tu tem razão – falou o outro gordo piscando pro magro.

Peguei um bocadão de cebola e coloquei na boca.

– São donde?

– Daqui mesmo...por que?

– E aqui não tem paulista?

Tentativa de ser amigável, acabar o jantar sem aborrecimentos, cheguei a esboçar sorriso.

– Não, aqui não tem paulista – respondeu Nivaldo orgulhoso.

O sujeito me irritava.

– Não tem ninguém daqui em São Paulo?

– Não, não tem! - responderam os três ao mesmo tempo.

Me servi do feijão e do arroz.

– Não gostamos de cariocas, de baianos, de pernambucanos e de paulistas.

– Nessa ordem? - um gole de cerveja.

– Não gostamos de ninguém de fora, mas odiamos os paulista – respondeu um dos gordos.

Empurrei o meu prato e pedi café.

– São nazistas?

– Não sei o que é isso, mas não gosto dos de fora – insistiu Nivaldo.

Nicanor trouxe uma caneca com café.

–Eles são esquisitos– falou ele – não liga, doutor, eu não ligo...trago mais uma cerveja, é por conta da casa... – ...e mais vinho pra eles, eu pago.

– Não queremos nada de cara de fora – falou Nivaldo.

Não insisti, bebi o café, ruim, requentado, acendi um cigarro, olhei pra ele...as mãos debaixo da mesa, não gostei.

– Não tenho medo de nada –falou – e não gosto dos de fora.

– Tem sorte – falei debochado – eu tenho medo de muitas coisas.

– De que ? – perguntou um dos gordos.

– De maluco – olhei pro magro, apaguei o cigarro no cinzeiro.

Se entreolharam.

– Ainda não disse de onde é – falou o outro gordo.

Saco cheio...o certo seria me levantar, ir pro quarto, mas droga, esses putos não iam me enxotar...acendi outro cigarro.

– Carioca! por que não gostam de carioca? – afastei mina cadeira, coloquei a mão noutra.

– Fez mal a minha irmã... um carioca!

– Sinto muito...e os paulistas?

– Roubaram a terra do meu pai, e meu irmão foi assassinado por um baiano e minha mãe fugiu com um pernambucano...o pai morreu de vergonha, odeio todos!

– Tem moti...

–...tão bêbados, tão inventando, sou daqui, sei tudo – interrompeu Nicanor.

– É, mas não gosto de cariocas.

– Nos também não – coro dos gordos.

– Uma pena – apaguei o cigarro, minutos de silêncio, pareciam entediados, relaxei.

– Os cariocas são frescos, dão o rabo – falou o magro.

Sangue subiu pelas pernas, coração acelerou, cabelo dos braços arrepiou, couro cabeludo se contraiu, não segurei :

– São mais machos que o pernambuco que comeu tua mãe!

Um pulo, a faca na mão dele, me levantei com garrafa numa mão , outra na cadeira, quebrei a garrafa na quina da mesa, o gargalo pontiagudo apontado...catinga de suor, o meu? o dele?

– Senta aí, Nivadlo, se não te estouro!

Nicanor apontava uma 38 de trás do balcão.

– Doutor, melhor o senhor ir pro quarto que eu cuido dele – continuou.

A risada de um dos gordos me irritou...avancei...

...passos pesados, ele entrou no salão, uma mala pendurada numas das mãos, o chapéu na outra, parou na porta, surpresa no olhar. –Entra moço – falou Nicanor sem esconder a 38– é apenas brincadeira...Nivaldo, guarda a faca e senta, e o senhor, doutor, se acomode na cadeira e joga o vidro no chão...eu limpo tudo.

O louco obedeceu, eu também, Nicanor guardou a arma na cintura, saiu de trás do balcão com uma vassoura...o forasteiro entrou, não se dera conta de nada, sentou - se numa mesa, gemeu.

– Tem janta e quarto?...puxa , como tô cansado!

– Sim senhor, tem!...o que o traz por essas banda?

A trinca...atentos.

– Implementos agrícola...vendo...todos me conhecem por aí, Lourenço meu nome, prós amigos Louro...

– Nunca te vi! – falou o magro.

Louro tirou um lenço do bolso, passou pela careca...cinqüenta anos, rosto castigado, grosso bigode, olhar esperto, terno amarrotado sobre corpo baixo, gordo, gravata frouxa, colarinho desabotoado, papada mal barbeada...todos os caixeiros viajantes iguais...

– Os senhores são meus convidados...cerveja?

Agradeci, disse que estava cansado e que daqui pouco iria me recolher, acendi um cigarro, esperei pelo show, Nicanor com os cotovelos apoiados no balcão parecia aguardar.

– É paulista? tem cara de paulista!

Lourenço levantou a cabeça, sorriu.

–Sou, sim senhor, sou e com muito orgulho – parecia querer agradar – de Campinas.

Me levantei, cada um que cuide de sua vida, não estava a fim de me aborrecer, dei um boa noite pra todos! e fui ao meu quarto... ...acordei molhado de suor, sonhar com facada tem esse efeito em mim, olhei pro relógio no pulso, duas horas...arrepio, cabelos dos braços eriçados... me levantei, me vesti, apanhei a sacola, abri a janela, pulei, peguei o caminho do acampamento...vinte quilômetros a pé, lua cheia iluminava a estrada, vaga-lumes companhia...

...na tarde do dia seguinte voltei, Nicanor cotovelos em cima do balcão, fez sinal da cruz...

– Esperto , o senhor!

– Achou que ia dar o beiço?

– Não, Deus me livre – novo sinal da cruz – o senhor, doutor, tem parte com o diabo.

– Que bobagem!

– Nivaldo tá preso...esfaqueou o viajante!

– E deixou?...onde tava sua 38?

– Não adiantou...o moço gordo falou que era paulista...Nivaldo não falou mais nada...acabaram o vinho e saíram.

– E...?

– ...voltou de madrugada, lá pelas três, pulou a janela do seu quarto...tava vazio, ficou com raiva, entrou no quarto do lado...esfaqueou o senhor Lourenço...

–...morreu?

– A gordura o salvou...gritou que nem condenado, Nivaldo correu...os meganha o pegaram...– novo sinal da cruz – o senhor é bem esperto!

– É meu anjo de guarda!

Fiz o sinal da cruz pela primeira vez em minha vida...com certeza de modo errado.

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