PALCO ILUMINADO
Tarde, mais de meia noite, decidimos tomar uma �ltima, a rua mal iluminada, folhas das amendoeiras amontoadas debaixo das �rvores despidas, o vento a espalhar algumas, eu tentava chut� - las sem sucesso pra frente pro lado, cansado, nost�lgico, imagens surgiram, aquele peda�o de Ipanema me lembrou Paris, exagero? com certeza...
� � outono - falei.
� Mania de europeu � retrucou Vev� - aqui n�o tem outono, s� ver�o com muito calor e ver�o com menos. Voc� e Vivaldi com suas quatro esta��es !
Silenciei, luzes acesas em poucos edif�cios incomodavam , bafo de vento quente levantou as folhas, a poeira.
� Noroeste - falou Vev�.
Era o nordeste, eu tinha certeza, mas era pouco para contrariar meu amigo. Entramos no bar da esquina, fazia sil�ncio, apenas um fregu�s, um velho com olhar perdido num copo vazio. Sentamos numa mesa na pequena varanda , um gar�om sonolento aproximou - se , ficou parado sem dizer palavra, meia - idade, olhos empapu�ados, palet� sujo, suado nas axilas, curto, apertado, fedia a suor, numa das m�os segurava um pano usado.
� Chope! - gritou Vev�
� Eu quero u�sque, cowboy qualquer um, nacional - falei sem entusiasmo.
O velho n�o levantara os olhos.
� Esse velho � falei - olha como t� bem vestido, terno bem talhado, camisa branca, n� de gravata triangular, sim�trico, sapatos engraxados... � classudo.
� Mas t� infeliz - respondeu o amigo.
Concordei com um movimento da cabe�a.
Olhei ao redor.
� Estranho...aquele p�ster, toureiro, touro...anacr�nico, out off place...
� Cafona, nada a ver - respondeu Vev�.
O velho levantou a cabe�a.
� Hemingway - falou ele - gostava de touradas...
Meu amigo fez men��o de falar, coloquei a m�o no bra�o dele, fechou a boca.
� ...a multid�o berra, joga peda�os de crosta de p�o na arena, depois pequenas almofadas, garrafas de vinho vazias, assobios, gritos...o touro cansa, dobra os joelhos, deita na poeira, um cuadrillero se abaixa sobre o pesco�o do animal, o mata com um puntillo, a multid�o pula a barrera, cerca o torrero, � levantado por bra�os estendidos, � seguro, algu�m corta o rabicho que sai por tr�s do chap�u, o acena, um garoto o pega e foge com ele... mais tarde o vi, o torrero, num caf�...era baixote, moreno e estava bebado, repetia sem parar: j� aconteceu comigo outras vezes, n�o sou mesmo um bom toureiro...Hemingway...
O velho calou, a cabe�a pendeu, as m�os seguras no copo vazio.
� Bravos! - falei.
O gar�om trouxe nossa bebida.
� Quem � aquele senhor? - perguntei.
� Vem sempre aqui, mora na �nica casa da rua...tenho que vigiar ele pra n�o ficar beb�o se n�o sai sem pagar...semana passada teve ataque do cora��o ...devia ter morrido, seria melhor pra ele.
O velho chamou:
� Mais uma!
� Vai ficar de porre - respondeu o gar�om.
O velho deu de ombros.
� Sirva ele - falei.
O gar�om entrou, voltou com uma garrafa de conhaque serviu o velho, reaproximou - se de nossa mesa.
� Vai ficar at� o sol aparecer se n�o dou um basta. T� cansado de mont�o...nunca deito antes das tr�s - limpou com a toalha suja o molhado da mesa, olhou o velho � t� beb�o...melhor a empregada n�o ter socorrido ele - o pano sujou espantou moscas � � cheia da herva... s� a casa vale uma nota, mas me falou que n�o vende s� pra sacanear os filhos...tem quase noventa e n�o bate a bota - o gar�om bocejou - gostaria que fosse embora...
� � solid�o - falei.
� Pode ser. � vi�vo. Deveria casar...
� ...n�o pode - falou Vev� - tem que ter licen�a...� pra defender a grana...mulher m�o adianta de nada pra ele...
� Outra! - gritou o velho.
O gar�om encostou nele.
� N�o tem mais, chega! - falou pronunciando cada s�laba , como se falasse para um imbecil � nada mais essa noite. V� pra casa!
O velho levantou - se , perguntou quanto era, apanhou uma carteira do bolso, pagou, nos olhou, gritou:
� Hemingway!
Acompanhei com o olhar a retirada cambaleante e digna.
� Sabe Vev�, velhice � merda, solid�o...tamos perto, e pior ainda...duros, sem grana... n�o somos nada...voc�, eu, o gar�om, o velho, as putas da maison ao lado...a maioria vive e n�o percebe o nada...pra eles basta luz el�trica, cama, roupa lavada, emprego, uma certa ordem e limpeza...uma vida ass�ptica...recebem e distribuem o nada...todos os dias...gar�om! dois Dreher!
Vev� me olhou, n�o disse nada, senti seu tapa amig�vel nas costas.
Acendi o primeiro cigarro da noite.
A rua como se recebesse sinal invis�vel, inaud�vel, ressuscitou...batidas de portas de carro, ronco de motores, vozerio indistinto...
� Acabou a fun��o do lado - falou o gar�om.
� Vai faturar - escutei o Vev�.
� Que nada. Os paulistas v�o gastar num lugar chique, os daqui v�o pra casa pras suas mulheres. Aqui s� puta que ficou no escanteio - ele riu pela primeira vez - v�o atacar voc�s.
Elas entraram, se sentaram.
� Porra, cara, olha praquela! - falei - � com certeza a puta mais gorda que j� vi, nunca...
� ...tamb�m a mulher mais gorda vista por mim...nem num circo, talvez s� numa fita de Fellini.
As outras duas, uma morena bonitinha, uma loura cansada. Elas usavam vestido do mesmo tecido, mudava de cor a cada movimento, a gorda um palco iluminado.
� Ei...voc�s...pagam uma bebida? - falou a gorda, voz agrad�vel.
� Gar�om, sirva elas o que quiserem - falei - mas nada de treco importado...quanto ser� que ela pesa, Vev�?
� Uns cento e cinq�enta...reparou como tem rosto bonito?
� Dureza montar nela, tem que ser alpini...
� ...mo�o bonito, paga pra ver, eu mostro!
Ela ria , as banhas sacudiam.
� D�o no couro ainda? - perguntou a loura � quantos anos tem?
� Sessenta e nove eu, ele noventa e seis - respondeu Vev�.
� Safadinho! - falou a morena.
A gorda continuava sacudindo as banhas, o riso silencioso.
O gar�om falou preocupado:
� N�o sacaneiam elas, a loura � um c�o.
� Traga mais uma dose - falei, queria me livrar dele.
� Me chamo Silvia - falou a gorda - nome verdadeiro, o nome de guerra � Baby.
As banhas sacudiam, o vestido mudava de cor a cada movimento, o rosto lindo, a pele tamb�m.
� � voc� morena? - perguntou Vev�.
� Regina!
� Bonito, parece com voc�.
� Quer comer ela de gra�a? - gritou a loura.
� E tu, como se chama?
� Nilza ...pra quer saber?
� N�o fique nervosa - falou o gar�om ao colocar os copos na mesa - o mo�o quer se apenas simp�...
�...de conversa j� t� cheia, n�o fiz outra coisa a noite inteira...e voc� seu mulambento, n�o se mete, e v� se traz mais uma rodada.
� Pode ser? - perguntou o gar�om.
� Tudo bem, mas s� pago at� quatro.
� Droga de p�o duro - falou a loura.
Beb�amos os cinco, nenhuma dor, tudo sereno, nenhum desconforto, as sombras se desvaneciam , senti ternura, desejo de amor, reden��o das safadezas do passado, a gorda, linda mulher, lembrei - me de minha mortalidade, medo me invadiu, sopro do nordeste passou por mim, deixou - me vazio, oco, podrid�o no ar...
� Que foi, mo�o bonito?
� Nada, nada meu bem.
Vev� me olhou, me conhecia bem, sabia dos meus surtos de melancolia, o mal da ra�a, dizia, dos fugidos do l� de l�...Bombas caem, Deus me tire daqui, n�o me deixe morrer, acredito em Voc�, direi a todos que �s o �nico...de repente senti sono.
� Vamos pra saideira - falei.
� Pera um pouco, to afim da morena.
� Droga!
Contrariado, virei - me.
� O cambio, qual �?
� Pra ti, mo�o bonito, pre�o especial - respondeu Silvia - gosto de careca bigodudo, tipo bandido mexicano.
� Cinq�enta, por uma bimbada, pra dormir cenzinho , servi�o completo centcinquenta
� Decidem logo - falou o gar�om - t� na hora de fechar.
� Deixa de sacanagem, nem s�o tr�s de la matina - falou Regina - s� fecha quando sai o �ltimo fregu�s.
� T� mo�do, minha patroa me espera - bocejou o gar�om.
Desisti da raiva, do sono, a figura de desespero do gar�om me enterneceu, tentei imaginar a mulher dele, minha imagina��o f�rtil quando se tratava de mis�ria humana, lembrei - me de outra mulher...que bom que deixamos as brigas do lado...nunca brigara em demasia com ela como fizera com todas que amara, elas acabavam cansando,, desistiam, o amor corro�do pelas escaramu�as...amei tanto, amei demais, mas c�us, por que exijo tanto, tanto desgaste...
� Cara, acorda!
Olhei o Vev�, sorri, amizade coisa sublime.
� J� jogou futebol de praia? - perguntou Regina, sem aguardar resposta, continuou � conheceu o Sim�o? era o craque do Miguel Lemos, se parece com ele...n�o tu careca, o outro...
� Era mau elemento - falou Vev�.
� Nada disso, era gentil, carinhoso, um f�sico de Apolo...n�o levava desaforo pra casa...
�...e tu sabe quem � Apolo? - sacaniei.
� Mo�o bonito, tu sabe que ela � fessora formada?
� Ele vivia no Rio Jerez , na galeria Alaska, extorquia os bichas...morreu assassinado - falou Vev�.
� Mataram ele - falou a morena - voc� se parece com ele.
� Foi a grande paix�o dela, aproveita! - falou Nilza.
� Por que n�o casou com ele? - perguntou a gorda.
� Ia, mas mataram ele.
� Conversa, ele se mandou, voc� sempre no p� dele - falou a loura.
� Ficou de saco cheio - a gorda falou s�ria.
� Respeitem os sentimentos dela - resmungou o gar�om.
� N�o se meta! - gritou a loura - traz mais uma rodada.
� N�o precisava a gente casar... �ramos mais que marido e mulher, �ramos casados aos olhos de Deus, sou dele, sempre serei...onde ele estiver...morto ou vivo, sou toda dele...n�o ligo pro que fazem com meu corpo, podem judiar dele � vontade, o que importa � minha alma...ser� sempre dele...como o amo!
Calamos respeitosamente, como se estiv�ssemos num casamento e enterro ao mesmo tempo.
� Brochei - resmungou Vev�.
A gorda riu com gosto, as banhas dela ondas sensuais.
� O tal Sim�o � um sonho, nunca existiu.
� N�o adianta debochar, tenho minhas lembran�as...s�o sagradas.
� A �nica lembran�a que tem e aquilo entrando e saindo da sua xota...os homens gostam de mim por que n�o minto e sou limpa.
� Deixa ela com suas lembran�as - falou a loura - com suas doces e maravilhosas lembran�as, h� h�!
Eu assistia, deveria intervir? olhei para Vev�, ele me fez um sinal...lembran�as, todos os sentidos conduzem � lembran�a, ao desejo, � morte em vida, daquilo que n�o mais voltar�, o odor da minha inf�ncia, o gemido do primeiro amor, a poeira da minha cidade natal jamais revista... armadilha fatal, dilacerante, a dura verdade, n�o sou mais crian�a, envelhe�o!
Regina nos olhou tristonha.
A gorda o abra�ou com carinho.
� N�o liguem, o nosso dia foi dif�cil...somos amigas.
Silvia sorriu para mim, pareceu - me o rosto mais lindo que j� vira em toda a minha vida, a pele, a voz...me deu vontade de abra�� - la, mas era grande demais, maior que Vev� e eu juntos...percebeu o meu olhar, continuou sorrindo.
� Gar�om, a conta! - gritou Vev�.
� Droga, pera, gamei na gorda.
� Tarado! Vamos!
Ele me arrancou da cadeira.
� Tchau! - falou Silvia.
� Tchau! - respondi - t�o sempre por aqui?
Vev� me arrastava.
� Por enquanto...quando sentir tes�o v� at� a Prado Junior e pergunte pela gorda.
� Chega! - Vev� me empurrando.
� V� com Deus, Sim�o - falou Regina.
Meu amigo parou, olhou para a morena.
� Como �? agora � voc�? - falei rindo - vai ou fica?
� V�o � merda! - gritou Nilza - c�s s�o uns unha de fome!
� Foda - se! - falamos os dois em coro.
Ela nos mostro o indicador para cima. Rimos.
O gar�om baixara quase todas as portas, apenas uma meio levantada, dei -lhe boa grana.
� Toma conta do velho...quanto pelo p�ster com o toureiro?
Indeciso por instantes...levantou os dez dedos...paguei.
Com o toureiro debaixo do bra�o nada mais me importava, o sopro do nordeste me acariciou...vou procurar ela na Prado Junior...olhei para tr�s, o vestido mudava de tonalidade a cada movimento.
Palco iluminado.