L U T A D O R .

Solta a direita, quê que tá esperando?

Não enche !

Bochechei, despejei tudo com raiva no balde...esse cara não tem nada pra me ensinar...olhei pro crioulo no outro canto, meia cabeça mais que eu...penetrar a guarda dele, difícil, corpo a corpo é a solução, encurralar o macaco e aí sim, soltar a direita pra valer, se o juiz bobear o cotovelo vai junto...o cara até que facilitava, passei o dorso da luva pelo nariz dolorido...ele não luta porra nenhuma, não tem ginga...cuspi sangue no balde...mas quem agüenta a catinga...teria que encurtar a direita, clinchar, acabara com o nariz debaixo do sovaco dele...puta que pariu, porra de sovaco fedorento...segurei o vômito, ao me afastar levara um direto no nariz...merda, doeu paca, é nesse rounde ou nunca, o chechel dele acaba me jogando na lona, morder ele num clinche nem pensar...

Eu gostava de luta, muito mesmo, se é que briga possa se chamar de luta... peguei no boxe para gastar toda a minha raiva...é ódio me dizia Alberto quando eu mencionava raiva...pode ser, eu respondia, quem é que agüenta o que está por aí, falsos amigos, o sistema inbátivel, anônimo, sem rosto?...modéstia à parte, eu era bom de briga, mas afinal, não podia andar por aí a distribuir porrada, agora, doutor com diploma...acabara duas vezes na delegacia...doutor, me dissera o delegado, homem instruído que nem o senhor? vejo fio de cabelo branco...odiei o sermão, mandei ele à merda, me enfiaram o cacete, depois me soltaram, pelo menos nada de fiança... acabei de volta na delegacia dois anos mais tarde, quebrara a clavícula de um motorista de ônibus por destratar uma gravida...torrei grana, fiança, hospital , cinco salários pro motorista, relógio pro promotor arquivar o processo, uma merda...da próxima vez é xilindró, escutei, o que não impediria eu fraturar o queixo de um malandro na Central...eu era assim, desde rapazola quando me levaram pro Sinhôzinho, lá no terreno baldio da Barão da Torre...o velho, com apenas dois caninos na boca era bom um filho da puta, ensinava porrada, capoeira seu xodó...esfregou as mãos quando me viu...bota esse grãnfininho de merda no ringue, rosnou, César, Afrânio ! gritou em seguida, porrada nele !...foi moleza, Deus, como foi...nem agora, tantos anos passados ainda não esquecera...rabos de arraia e outras figurações ao meu redor, eu pulava, me esquivava, um muro na testa de César e babau, outro na têmpora de Afrânio e bye bye, o velho me apadrinhou...vai aprender como é de verdade, falava sem parar, vai aprender como é de verdade, os caninos à mostra...rondamos botecos de Ipanema, alguns do Leblon, eu encaçapava crioulos malandros, o velho odiava crioulos, os provocava até o limite, Alberto, Bupi, os irmãos Ciranda, as vezes Paulo Amaral, como companhia, parei ao entrar na faculdade ...fazem alguns anos que enterrei ele junto com seus caninos, sem a presença do Alberto de muda pra Belém, sem o Bupi, sumido, sem os Ciranda, mortos, Paulo Amaral em excursão com um time de futebol...apenas eu...olha eu de novo na delegacia, invadira o apê do ex cunhado, arrebentara a cachola do guarda - costas dele depois de resgatar minha sobrinha...invasão de domicílio, lesões corporais... Marcello Alencar, advogado amigo me safou dessa...conselho da mulher que eu transava, vá a um psico...gaste a raiva num quadrilátero, dentro de regras, regras não se esqueça, é importante, falou o cara...segui o conselho, entrei de sócio na ACM...assim não dá, gritava Martins o treinador, tá arrebentando meus alunos, manera, boxe é esporte, tem regras...esporte o cacete, respondia eu, aí ele, ex campeão nacional de peso leve colocou as luvas...o baixinho era foda, rápido, uma defesa mais fechada que carapaça de caranguejo, guarda alta, cotovelos colados nos flancos, martelou meu fígado, infiltrou minha guarda, acertou minha cara, esquivas, esquivas e mais esquivas, só as dele, levei mais umas duas no fígado, na cara mais umas dez, não tinha punche, não machucava, mas assim mesmo fiquei com raiva, perdão, ódio, parti pro revide, só encontrava o vazio, perdi a esportiva , caguei pras regras, fui pra cima dele que nem doido, tiveram que me segurar, partira pra briga de rua, pedi desculpas...te inscrevo pras lutas de TV Rio Ringue, no sábado, falou ele, assim tu aprende, mas antes vai passar pelo teste...eu caí na risada, me lembrava de outro teste...ele chamou o Toninho...encara ele, falou, e o empurrou pro meio do ringue...bastou um cruzado meu no queixo que o cara desabou...ele tem queixo de vidro, falei, manda outro, ninguém se apresentou...treinei pouco, apenas punches no saco, corda, ninguém queria ser sparing, Martins tentou me ensinar jogo de pernas, bailar não era comigo, esquivas pra mim coisa inútil...não tá levando a sério, falava o baixinho, vais pegar cara mais pesado, mais alto...sai da frente seu cocó de mosca, eu respondia debochado, sabia que a galera torcia pra me ver beijar a lona, pouco importava, tinha meus trunfos, não tinha medo e tinha cachola, doutor com diploma...na noite da luta, eu e o outro saímos juntos do vestiário, primeira vez que o via, mais de um e noventa, mais de noventa quilos, é sargento do exercito cochichou Toninho agora meu segundo, eu tava carregado de adrenalina, não me perdi nos detalhes físicos do negão, mastigara duas horas antes bife mal passado engolindo o suco e cuspindo a carne, raciocínio de doutor com diploma, cheiro de sangue em meu suor...agarrei as cordas inferiores, me icei pra dentro do ringue, o arbitro chamou, recomendações, entediado virei as costas, fui pro meu canto , chamou de volta pros cumprimentos, o negão e eu encostamos as luvas, senti o cheiro, me preocupei, detestava fedor...

O gongo, segundo rounde, enfiaram a borracha boca, me empurraram pro centro do ringue, o crioulo veio que nem locomotiva, braços esquerdo na frente, fiquei fora do alcance, jabes na cabeça dele, dois diretos, nem se abalou, atacou, ganchos de direita, eu recuava, contra atacava quando dava uma brecha, um-dois, um-dois , esquerda-direita, esquerda-direita, sem coragem pro corpo a corpo, a fedentina registrada na mente não sumia , passados minutos consegui sincronizar suas fintas com meus jabes, ele jogava a cabeça pro lado, eu mandava ganchos curtos de direita nas costelas, comecei a dançar, assim, sem mais nem menos, Martins, seu sacana, você tem razão, circulei nas pontas dos pés, mandava rajadas de socos, o negão na espreita, apostava na potência do soco dele, o assalto quase no fim, ainda não vai ser nesse, percebi as luzes no teto, destorceram minha visão, minha noção de distância, esfreguei a luva nos olhos, levei um soco no lado da cabeça, cambaleei, encostei num canto, a cabeça latejava, os ouvidos zuniam, nunca sentira isso , o negão veio, ergui as mãos para proteger o rosto , senti ganchos potentes nos braços, sacana de merda, quer que eu abaixe eles, clinchei, segurei ele, senti a fedentina , o arbitro gritou, separa ! continuei abraçado , ele nos desvencilhou, recuei, tonteira e zumbido sumidos, o negão veio pra cima de mim confiante, guarda aberta, fintei com a esquerda, o upper de direita entrou certinho, de baixo pra cima, meu tronco pião ,ele caiu de bunda na lona, ergueu - se na contagem de sete, avancei, o arbitro gritou, o gongo, o gongo ! voltei ao meu canto...

Toninho me enfiou o protetor de volta na boca...não grude nele, fique longe, trabalha os jabes, gritava ele no meu ouvido...não é que o filha da puta sabe lutar, chiei entre os dentes e a borracha...tá te testando, fica longe dele, repetiu Toninho...o gongo soou, parti pra porrada, meus socos o atingiram, ele parecia não sentir, pressionou, próximos demais para preparar golpes, o negão com o queixo colado no peito fugia do upper, o sacana mais forte que eu, me plantei, guerra é guerra, ele deu um passa atrás, o fedor ainda grudado no meu cérebro, me descuidei, levei uma porrada no estômago, recuei, bati com o costado nas cordas, levantei a guarda, tentei sair, combinação esquerda - direita atingiu meus rins, a guarda desabou, gancho de esquerda conectou meu queixo, rolei pelas cordas, caí de joelhos, o arbitro iniciou a contagem, nos seis tentei as pernas, consegui me firmar, no oito o arbitro enxugou minhas luvas na camisa, fez sinal pra recomeçar...me posicionei, humilhado, com raiva, quase perdi o controle, o negão se aproximou, braços soltos, luvas abertas, porra quem ele pensa que é ? Cassius Clay? lancei um jabe frouxo, de propósito, evitou fácil, telegrafou um cruzado de direita, mandei um contragolpe, um direto no nariz, sua cabeça virou, enfiei um gancho de direita nas costelas, a guarda dele baixou, entrei por dentro dela com um upper curto, meu nariz enfiado onde não devia estar, gancho de esquerda, dois cruzados de direita na cabeça, cotovelo em seguida, não dei espaço, braços pesavam toneladas, ganchos, esquerda - direita, esquerda - direito, um - dois, um - dois, a maioria no vazio, quase perco o equilíbrio, o arbitro me segurou, o negão ajoelhado, mãos nas cordas, um...dois...três...quatro...corri pro meu canto...seis...cuspi a borracha...oito...nove...vomitei no balde...dez...arranquei as luvas, a bandagem, não atendi a chamada, empurrei o Toninho, corri até o vestiário, larguei as sapatilhas, apanhei as roupas, sai nu, atravessei a Atlântica correndo, joguei a trouxa de roupa na areia debaixo de um barco, mergulhei no mar, consegui apaga o fedor da mente...respirei aliviado o cheiro de maresia, vi um vulto se aproximar das roupas, ei ! gritei, o vulto correu com a trouxa nas mãos, saí da água, desembestei, o alcancei na Rainha Elisabeth...enfiei porrada nele, nada de regras, nada de arbitro, deixei ele estendido na calçada, sangrando...um PM se aproximou...puta merda, delegacia de novo...Deus, tentei, tentei mesmo, como tentei...

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