EMOÇÃO

–. . . razão sem emoção não vale nada, emoção acompanha emoção. . . faz o mundo girar. . . acham que tu é bom porque tu não...Justino sorriu, acendeu um cigarro. . . mania deles mandar sujeito metido. . . aguardou. –. . .as emoções tem que ser utilizadas, veja os bichos, sentem medo, alegria, tristeza, mas tem um cara que conheço. . .Justino acompanhou com o olhar uma mulher que se afastava com um ligeiro rebolado, sábado de manhã na Barata Ribeiro –. . ..ele mexe com a cachola dos outros, cobra uma nota preta, é piradão, tem uma paciência dos diabos, quando bate no consultório um desgarrado na vida, neca de pai, mãe, único rebento, manja? diz que é experiência. . .Justino pegou o chope, percebeu os fiéis saindo da sinagoga, engravatados, até os garotos, boina presa no topo da cabeça com grampos, as mulheres elegantes, perfumadas. . . acredita em Deus? a pergunta na ponta da língua, engoliu saliva.

. . me ensinaram a ter medo Dele. . .–. . . faz o cara jejuar dois dias, depois manda ele ficar nu em frente a um espelho, em seguida entrega uma fita com uma ladainha, chama aquilo de mantra, manda repetir sem cessar. . . blablabla. . . até o pinta entra pro que ele chama de "sonho consciente". . Justino com o olhar numa jovem parada no sinal...dizem que as mulheres desses crentes raspam a cabeça, usam peruca... brisa atravessou o botequim... lufada de vento, poeira na ruela, névoa dourada, favela silenciosa, o velho estende a mão . . . Justo, Justo, chama. . . cai de joelhos, Senhor estou desolado, perdoa-me Senhor, estou fraco, estou velho, meu filho está perdido, Senhor. . . a saia da mulher levantou, lindas pernas, o sinal abriu...conheço uma dona que antes de transar fala: uma pessoa não deve transar com uma mulher e ter fantasias com a outra... é como beber uísque e pensar em cerveja...Justino pegou no copo mas não bebeu...– ...droga, assim não dá. . . presta atenção...o estágio seguinte é o que o doutor chama de "fantasia transcendental", o que significa não me pergunte, o cara agora tá repetindo o mantra sem cessar, entra na "realidade simulada".. .

Justino esvaziou o copo com cerveja, pediu mais um chope, bebeu apressado, o liquido escorreu, manchou a camisa...bebendo de um copo furado? emoção é como beber de um copo furado, antes do conteúdo chegar à boca ela já desapareceu...– ...ih, casseta! tô quase me mandando, mas tem grana. . . escuta só a piração! o shrink faz o cara matar bichos. . . cachorro, gato, é o que ele chama de "seguro contra a flacidez da moralidade", aí o já cara tá na dele, diz que criou um ser sem emoção, incapaz de utilizar a razão, ele comanda o zumbi pelo telefone, acredita? mas ele ainda não tem certeza, falta a prova. . . aí é que tu entra, uma milha pra fazer...o homem entregou um pedaço de papel – as instruções, não esqueça de ler, tão aí junto com um cheque... esquina da Figueiredo com

Barata, no décimo, 804, lado par, é lá.

II

O casal ria, caminhava até o elevador, a mulher apetitosa, toda de branco. . . tá fantasiada de enfermeira, o cara é boa pinta. . . Justino acendeu um cigarro, aguardou a luz aparecer na janela do apartamento, olhou o relógio no pulso. . . mandaram esperar dez minutos. . . encaminhou-se sem pressa até a entrada do edifício.

III

Empurrou a porta ....um sujeito ajoelhado em cima de um tapete , olhos fechados, as mão entrelaçadas nas costas, cabeça bem erguida, o dorso nu, os músculos do peito tremulavam como se depois de um esforço contínuo, aproximou-se, esbofeteou o rosto , movimento de chicote, o corte deixado pelo anel sangrou, o homem imóvel, silencioso, Justino deu um passo para trás, repetiu o movimento, acertou o nariz, rasgou a pele, sangue apareceu debaixo do olho, nenhuma evidencia de dor, Justino desferiu socos seguidos , lagrimas misturadas ao sangue apareceram no rosto do desconhecido.

– Tá pronto? matar, rasgar as tripas da mulher que te enganou – falou Justino ofegante – tá pronto pra ir até onde ninguém jamais foi? pronto para ingressar no reino do poder sem limite, esquecer amor e beleza? o mundo agora é um monte de merda, não acha?

responda!

– Sim! Sim!

IV

O homem jogou-se em cima da mulher, o uniforme branco manchou de vermelho, grito estridente apagou-se na garganta dela, ele a imobilizou com os joelhos, uma das mãos segurou a cabeça, a outra colocou uma tira larga de esparadrapo sobre a boca, enfiou o saco plástico na cabeça, o rosto dela avermelhou, os braços e pernas estrebucharem, o corpo dela parecia querer arrebentar-se à procura do último sopro de ar, o peito arqueado, espasmo carregado de adrenalina, ele bateu com os punhos no corpo tremulo, acertou as costelas, o ventre...levantou - se chorando.

– Muito bem – falou Justino – Como se sente? homem total? explique!

– Me sinto como se tivesse reconquistado o passado, como se tivesse atravessado uma barreira intransponível, aguardo a paz como recompensa, como...

–... uma última coisa - Justino entregou uma arma - coloque o cano na tua boca, aperta o gatilho.

Cliques seguidos, nenhum estampido.

O telefone tocou...atendeu, escutou mudo, desligou...de pé, murmurando sons ininteligíveis.

Justino retirou o K7 da camera de vídeo.

V

Justino ajoelhou - se, respiração boca a boca, a mulher reanimou. Saíram.

VI

Solitário no seu escritório, um homem numa cadeira de rodas sorria. Angustia, impaciência só para os seus pacientes... breve teria em mãos a prova definitiva. Imaginava-se diante dos seus pares, discurso quase pronto, faltava o desfecho, um detalhe apenas, imaginou as palmas. .. . pena que que não posso ficar de pé, agradecer com uma ligeira inclinação do tronco. . . confraria dos iluminados, participar das sessões, palavra final, definitiva sempre a dele, anos de pesquisa recompensados. . . sou um guerreiro, afugentei os demônios. . . fechou os olhos, deixou o som das ondas do mar invadir sua mente enquanto recordava. . . pareciam mutantes raivosos, me jogaram pela escada só porque usava uma swastika. . . ainda ouvia seu grito, as dezenas de olhares. . . alguém dissera: coitado!. . . esqueceria se não a maldita cadeira e suas rodas infernais. . . mas aconteceu/ não, não mesmo/ foi um pesadelo/ mas aconteceu/ aconteceu sim/ não sei, não sei. . . cantarolou, a cadeira balançava sem cessar.

VII

Em meio ao silêncio ouvia-se o vento, as palavras do velho, murmúrios. . . Senhor, peço - Te em meu nome, no nome do meu pai e no nome do pai do meu pai: se ainda mereço graça aos Teus olhos, dá-me um sinal, dá-me uma esperança, quando Justo nasceu os anjos. . . Justino ofegante esgueirou-se dos carros, roçou a parede do edifício, o suor ardeu nos olhos, entrou no elevador.

A luz que vinha através da porta envidraçada guiou seus passos, entrou sem bater.

O homem sentado na cadeira de rodas o encarou.

– O vídeo?

Durante uns momento o sentido das palavras não alcançaram Justino, era como se ouvisse uma língua estrangeira.

Aproximou-se, girou a cadeira, passou com ela pela porta, na beira das escadas empurrou com violência...gritos...silêncio. . .

... o velho sorri, bendito seja, Senhor.

Justino jogou o vídeo no lixo.

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