AUT�GRAFO

Se Guilherme o Conquistador n�o tivesse invadido a Inglaterra em 1066 e se n�o tivesse vencido a batalha de Hastings, a l�ngua inglesa n�o existiria...trezentos anos seguidos o franc�s foi falado nas cortes inglesas e somente depois da Guerra de 100 anos quando se estabeleceu em definitivo que a Inglaterra e a Fran�a n�o seriam mais um �nico pa�s, surge a l�ngua inglesa...era assim que eu iniciava invariavelmente as aulas sobre literatura (poesia) para as novas turmas da universidade, reprimia um bocejo, escrevia com pregui�a nomes e datas no quadro sem me dignar olhar para eles; h� muito perdera a motiva��o, a experi�ncia me ensinara que dos quarenta presentes talvez apenas uma meia d�zia se interessaria e eu continuava...John Grover , um dos primeiros poetas ingleses, durante muito tempo se dedicara � tradu��o do gaul�s Guillaume de Machaut...franc�s n�o foi apenas uma "influ�ncia", franc�s � parte do ingl�s, um elemento gen�tico na sua cria��o e foi assim que...mas eu n�o era um sujeito desprovido por inteiro de alguma sensibilidade se n�o como poderia falar sobre poesia o ano inteiro embora eu achasse que os poetas eram pessoas de intelig�ncia med�ocre dotados, como os m�sicos e tantos jogadores de xadrez , do dom de criar maravilhas sem ter consci�ncia da dimens�o de seu feito , mas eu possu�a algo perverso dentro de mim...Thomas Malory, Wyatt e Surrey, pioneiros, foram influenciados por poetas franceses ...eu chegava a insinuar que at� Shakespeare e outro elisabetanos menos famosos calcavam seus trabalhos nos franceses...a poesia inglesa e americana n�o existiria sem a francesa...insistia eu...a tradu��o de LES FLEURS DU MAL de Baudelaire foi definitiva para consolidar a poesia na l�ngua inglesa e a presen�a de Mallarm� ao discursar em Oxford foi um ato de grande estima por parte dos ingleses e...eu preparava as aulas enquanto andava de metr� , o metr� � uma grande inven��o , ao viajar nele � que se percebe tudo a respeito da poesia, o som cadenciado, o para-anda , o desce-sobe...a conex�o Paris - Nova Iorque feita pelos modernistas como Joseph Stella, Mardsen Hartley, Aerthur Dove, William Carlos William , Man Rey, Alfred Kreymorg , Francis Picabaia , Marcel Ducamp , estabeleceu o interc�mbio e depois a influ�ncia do cubismo e dadaismo de Apollinaire e o futurismo de Marinetti e... Pound, Eliot, Yeats, Ford Madox e Tzara, Eluard. P�ret, Reverdy , Crecel, Aragon ...ao mencionar Ezra Pund eu fazia quest�o de destacar que a genialidade art�stica nada tinha a ver com a patifaria pol�tica , eu afogava os alunos com nomes, inistia na pronuncia exata, ortografia correta , n�o me importava com as risadas, as tosses fingidas, aos gestos obscenos, as vezes dois ou tr�s se manifestavam , alguns pretendiam se tornar escritores, eu pegava a deixa e excurssionava pelo mito do jovem escritor que emigrara para Europa com intuito de aprendizagem, o fasc�nio de Paris, me detinha em Hart Crane , Hemingway, Gertrude Stein, Fitzgerald, Faulkner. John dos Passos, Thorton Wilder, Williams, Pound, Eliot, Henry Miller, Ana�s Nin...poucos sabiam da minha fixa��o pelo metr�, nem eu entendia direito o que acontecia, as vezes pensava nos amigos, na minha adolesc�ncia, no semblante dos rapazes daqueles tempos, bem, n�o era bem pensar, apenas via...mas acaba por me fixar nas aulas...dizem por a� que pensamos sem querer, que estamos aqui e ali ao mesmo tempo...os poetas franceses do s�culo vinte...destacava eu...nem todos eram nascidos na Fran�a embora fossem considerados franceses...Apollinaire em Roma, Milos na Litu�nia, Segalen viveu muito na China . Cendrars na Sui�a, Superville nasceu no Uruguai, Tzara na Rom�nia, Jab�s no Cairo, e...e...Larbaus, Fargue, Saint - John Perse. �louard, Ponge, Val�ry, Claudel...obcecado massacrava os alunos, aborrecia meus interlocutores, cultos e incultos, misturava u�sque e poesia, um porre...mas n�o enchia ningu�m no metr� , era meu templo, rezava minha vida ali...um dia comecei a sentir algo, no percurso sub - terra, lembran�as, do meu velho, minha velha, da irm�, das aulas de franc�s, da viuva que me ensinava o franc�s, via o rosto deles todos, acho que est�o mortos, que burrice , est�o mortos mesmo, eu mesmo os enterrara, com exce��o da viuva que morrera na Fran�a, as imagens do enterro esquecidas, a viuva que era francesa, antiga cortes� da Lapa quando velha , virara professora, nada de gram�tica, s� conversa��o, nada de sacanagem tamb�m, muita poesia, ela recitava sem parar, quando eu pedia ora traduzir ela respondia: mon petit, impossible traduir cela! c'est une folie...eu me perguntava sempre...de onde ela tira essa droga?...morreu mas a poesia ficou l� , num canto do meu c�rebro e eu me lembrei dela justo na esta��o da Lapa...c'est vraiment une folie...a thousand year - old culture desintegrated, there are columns and no supports, no foundation anymore � they have all been blown up, the meaning of the world has disappeared ! eu gritava dramaticamente a cita��o de Hugo Ball ao iniciar as aulas de poesia francesa de depos da guerra de 18, obrigava os alunos a repetir at� exaust�o ...the meaning of the world has disappeared, eu recitava aquilo sem cessar na solid�o do meu quarto em frente ao espelho, nu como uma minhoca, obcecado por algo que minha pobre intelig�ncia n�o alcan�ava mas aquilo flutuava como um zumbido, acariciava minha pele...agora sei, aquilo me preparava para um salto imprevis�vel num abismo...como escrever? respondam! por que escrever? o que � escrever?...ningu�m ousava...a pergunta � a resposta! eu falava com sabedoria exagerada, ao pedirem explica��o eu rebatia com as palavras de Roche : a poesia � inadmiss�vel , al�m do mais ela n�o existe, e dava por encerrado o assunto...eu sofria de vis�es , viajar num �nibus interestadual, olhar pela janela, ver como tudo ficava para tr�s , tudo despeda�ado , a paisagem quebrada, se afastando e a� eu tinha um acesso de riso, me achava muito s�bio por ter lido muitos livros, por ensinar, algo dif�cil , profundo, que piada, o trapezista do circo era melhor que eu , � muito dif�cil ser trapezista...o poeta antes de mais nada tem que observar como se tudo aquilo fosse visto pela primeira vez, como se nunca fora visto antes e assim com um pouco de sorte transformar tudo em palavras...quem diz isso n�o sou eu! gritava para eles...foi Ponge, portanto seus animais, me apresentam para � pr�xima aula algo sobre o prosaico, cotidiano, o arrumar uma cama, o destampar uma garrafa de cerveja, o enxugar a m�o, colocar uma cadeira num canto de uma sala...coincid�ncias, n�o as utilizem para criar ilus�o, para explicar, para relacionar atos, � um mecanismo ultrapassado, o "happy end"...mas eu era obcecado pela coincid�ncias como por exemplo a apari��o de nomes como Wellington, Jefferson, Roosevelt nos negros, com o pensar em algu�m n�o visto durante anos e encontr� - lo no dia seguinte, ou ao marcar consulta com um m�dico pela primeira vez e o consult�rio ser em frente � minha casa, no mesmo andar que o meu, ou n�meros telef�nicos de conhecidos serem diferenciados apenas pela invers�o dos dois �ltimos d�gitos...destino? teoria das probabilidades? Artur Koestler escrevera um livro inteiro demostrando a inexist�ncia das coincid�ncias mas criou uma ao se suicidar com sua mulher no mesmo dia, hora... foi coincid�ncia que mudou o rumo de minha vida...terminara de traduzir alguns poemas de Rimbaud, a cr�tica n�o me fora favor�vel mas...sempre temos dois tipos de leitura, eu dizia � turma, os cr�ticos que julgam pelo que n�o foi dito e os leitores que l�em o que foi dito, lembrem - se sempre dos leitores, afinal os cr�ticos tem que criticar...questionamento social nas minhas aulas n�o era bem vindo, eu n�o simpatizava com a multid�o que rastejava nas periferias das grandes cidades, a n�o ser com as prostitutas e velhos aposentados, tinha raiva do aconchego dado pelos evang�licos , pela burguesia investida de remorso...a arte est� acima do bem e do mal? escrevam algo a respeito. n�o esque�am do filho da m�e de Celine...

Um convite para conferenciar em uma capital do Norte com passagem e hospedagem pagas interrompeu minha arenga semanal, larguei os alunos aos cuidados do adjunto, embarquei ao chamado do amigo com quem sonhara dias antes recitando Rimbaud.

Um homem balan�ava a cabe�a, n�o me parecia um gesto de admira��o, as m�os tremulas diante do espelho, o risinho um esc�rnio permaneceu no rosto dele enquanto avan�ava em minha dire��o, ningu�m no toilete do aeroporto , era preciso falar indagar...posso mat� - lo agora...sua boca abria e fechava ao repetir sem cessar as mesmas palavras, meu olhar, minha falta de ar acompanhavam o estranho , passo a passo, metro a metro , a vis�o repetida nos espelhos, eu recuava passo a passo , metro a metro, o riso uma risada, gargalhada vigorosa, feliz...voc� t� ferrado...tentei retornar � seguran�a, simula��o idiota do medo? jogo rid�culo , inveros�mil , ri tamb�m , o riso dele pregado nos espelhos, a l�mina apontava...n�o me reconhece?... diante do sil�ncio da minha resposta o homem explodiu em nova gargalhada, o contemplei fundo nos olhos, vesti a coura�a da loucura e acertei um soco no nariz dela, n�o dei tempo �s estrat�gias , segurei o bra�o armado, os mestres do aikid� me guiaram, a l�mina entrou na barriga fofa, refiz o movimento, ele estendeu o outro bra�o, timidez no seu olhar, calafrio me estremeceu, alegria indesejada me possuiu, ele tentou dizer algo, sinalizar, ultima gargalhada interrompida de s�bito, filete de sangue no canto da boca, queixo ca�do sobre o peito, ri desesperado, ele abra�ado ao vaso, guardei o canivet�o, o coloquei no meu bolso.

Ele te encontrou? falou ela...n�o se preocupe, ele nunca soube do nosso caso...viemos assistir o ciclo de palestras na universidade, foi uma longa viagem do Sul, mas ele � louco pelos poetas franceses...discordava de sua tradu��o do Rimbaud, ele me disse que ia te dar um susto e depois te pediria o aut�grafo, voc� deu?

NOTA: conceitos sobre poesia, alguns nomes de autores foram extra�dos do ensaio TWENTIETH CENTURY FRENCH POETRY da autoria de Paul Auster.

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