SÃO
PUROS?
- São Puros?
- perguntou-nos de maneira seca e friamente
olhou-nos bem dentro dos olhos meus e de minha mulher. Que
pretensão desta moça, pensei?
Sabe quando aquele segundo parece uma eternidade?
Silêncio absoluto.
O silêncio se estendeu...
Seria capaz de relembrar toda minha vida naquele eterno segundo.
Mas será que esta moça é vidente? Evangélica? Só pode ser detetive,
evidente.
Ela percebeu alguma marca em nós? É verdade que minutos atrás estávamos
aos beijos, aos abraços, aos amassos dos sentimentos, no estacionamento
do shopping, em verdadeiro clima decente de lua-de-mel - afinal
estamos casados só há quinze anos, é compreensível.
Será que exageramos?
Será que fora contratada para dar flagra e sermão?
É obra da segurança.
Ela permanecia impassível, queria respostas.
Não se perturbava. Não se distraía. Não esquecia.
Mas que algoz agora, meu Deus?
Observando melhor, não me parece detetive, nem vidente, muito menos
evangélica, então o quê?
Isto é um absurdo!
Mas que intromissão, que vigilância ideológica, filosófica, sei lá
o quê?
Se somos puros ou não, o que interessa?
- E então decidiram? São puros ou não? - perguntou a moça impiedosa,
tétrica e sem paciência.
Mas que insistência. As pessoas ao redor já estavam notando, acho que
até comentando. Entreolhavam-se.
O shopping estava lotado.
Ai, ai, meus santos, salvai-nos.
Só nos faltava o holofote na cara, as gotas chinesas na testa, os
alicates dilacerantes...
- Pela última vez: são puros os cafés?
- esbravejou a moça.
- Ah! sim, os cafés - suspirei aliviado, quase pulando de alegria. Estávamos
esperando há tanto tempo no quiosque do café expresso (daqueles que
vem parando de estação em estação e nunca chegam) e entretidos no
clima de namoro, esquecemo-nos dos cafés.