AS
VISÕES DA CEGUEIRA
Hoje meu filho vai a campo. É o seu primeiro dia na rua. Não
está só. Sua orientadora e a bengala branca serão seus olhos; sua visão.
Meu filho é deficiente visual; não enxerga nada.
Fico de longe. Acompanho tudo.
Meu coração está entalado na
garganta. Eu
percebo sua insegurança.
- Cuidado, meu filho, o buraco à
sua direita na calçada - grito dentro de mim, num sobressalto.
Seus passos desorientados procuram
novas rotas, tentam chegar à Índia, China, América, Lua... Ficam logo
depois da curva da próxima esquina.
Uma mão segura a bengala e a outra
busca apoio no ar, no espaço vazio;
talvez para ele há algo concreto que o ajuda; certamente a mão
de um anjo. A bengala movimenta-se para frente e para os lados, quase
sincronizada. A orientadora vai um pouco atrás; séria, diria até
pesada no andar, na fisionomia.
Ele está indo rápido demais,
observo.
Outro dia ele me perguntou como era
a cor azul?
Levantei-o com meus braços erguidos
em ângulo reto e corri pelo quintal de casa. Disse-lhe depois que a cor
azul é a cor do céu, onde os pássaros voam sentindo a mesma sensação
de frio na barriga como ele em meus braços a sustentá-lo no ar da
liberdade.
Hoje pela manhã, antes de vir ao
Instituto, tenso, ele me confidenciou que precisava muito do “azul”.
Oh! Meu Deus! Ele acaba de cair.
Minha lágrima cai junto. Aquela imagem terrível, vendo meu filho no chão
tentando se erguer, parte meu coração em milhões de pedaços.
- Levante-se, meu filho, se não
vamos ficar juntos caídos - outra vez grito em silêncio.
Ele é perseverante.
Sua imagem, sua fisionomia, fica
ainda mais inocente, ainda mais frágil. Não sei como pude tirá-lo um
dia do meu colo.
Quando eu quero ficar com ele, só
com ele e entrar em seu mundo converso com os olhos fechados, ou se
noite apago as luzes e passo a “enxergar” as mesmas coisas, parece
que o diálogo se torna fácil, pois compreendo melhor o que ele diz
nesses momentos.
E lá vai a bengala, sua espada,
lutando contra a noite; o escuro que antecede a descoberta da
luminosidade. Cada obstáculo desviado, cada passo avante, cada “touché”
de sua bengala, um pouco mais de luz para seus olhinhos, diferentes dos
meus.
Agora ele está indo bem. Acalmo-me.
Não caiu mais.
A voz orientadora de sua instrutora
ecoará em ondas para toda a vida, em seus “labirintos”; a mão de
seu anjo o manterá equilibrado. Nas vezes em que caiu, meu filho
aprendeu as diferenças entre ser confiante e em pé nos caminhos da
vida ou se esparramando em obstáculos professores.
Vejo seu cansaço provocado pelo
esforço, mas percebo um ar de felicidade indisfarçável.
É interessante conhecer as cores
por “dentro”. Na escuridão, na ausência de luz, pode parecer
imponderável. As cores não são só perceptíveis com o calor, ou ausência,
que emitem. São mutantes. Vão criando vida e formas que dão idéia não
da pigmentação, mas sim da “vida e movimento” que produzem.
Semanas atrás, meu filho, anjo de
Deus que agora “voa por instrumentos”, correu de
mãos dadas com sua
mãe e eu num campo plano e gramado. Corremos, corremos, o mais que
pudemos. Ríamos todos crianças livres e depois nos abraçamos num abraço
triplo e assim permanecemos nos beijando felizes. Minha mulher pegou nas
mãos de nosso filho e pousou-as em suas próprias faces e disse-lhe: -
Percebe este calor? Esta agitação? Esta, meu filho, é a cor vermelha
que está agora em nossas faces.
E assim foi para cada cor, um
exemplo cheio de vida e tato. Pegando um pedaço de gelo e colocando nas
mãos dele e lá ia outra explicação: - Esta é a cor gelo... Eles
estão voltando, a instrutora, meu filho e seu anjo. Deram a volta ao
quarteirão. Foi a primeira vez dele, desta maneira. O meu coração de pai está vendo (não são só os olhos que conseguem ver) o meu pequeno que se agigantou pela sua vitória particular, silenciosa. Eu estou vendo, estou vendo, meu filho está agora todo “azul”.
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