Ensaio Dramatúrgico

  RAÍZES DO ÓDIO

Autor:  Nilton Bustamante

[email protected]

São Paulo-SP-BRASIL

CENAS... 01  a   07



 



DRAMATURGIA
ENSAIO 
RAÍZES DO ÓDIO


  
 
PERSONAGENS:
   
Alberto
Recruta. 18 anos.
Funcionário da Secretaria de Segurança Pública. 52 anos.
Assumpção

Mãe de Alberto. 58 anos.
João
Pai de Alberto. 60 anos.

Sargento Guimarães
Militar. 39 anos.
 
Médico
Militar. 40 anos.
 
Coronel Figueiredo
Militar. 50 anos
 
Maria Odete
Esposa do coronel. 45 anos.
 
Advogado
Profissional liberal. 48 anos.
 
Porteiro
Funcionário da Secretaria de Segurança Pública. 49 anos.
 
Vieirinha
Detento. 30 anos.
 
Braga
Chefe dos investigadores. 50 anos.
 
Soldados da P.E.
Polícia do Exército
 
 
 
CENÁRIOS
Cemitério
Residência de Assumpção, João e Alberto
Quartel do Exército
Residência do coronel Figueiredo
DEIC

 



CENA 1

 
 
    
Luz em foco sobre Alberto e a lápide.
 
         

ALBERTO, ADULTO,  AJOELHADO DIANTE DA LAJE TUMULAR DOS PAIS, CHORA COMPULSIVAMENTE.   LOGO DEPOIS, GRITA DESESPERADO:
PAPAI, MAMÃE, O QUE VAI SER DE MIM?
 
 
(BLACK-OUT)
 
  
    
 

CENA 2

  
 
O recrutamento militar
 
  
(ASSUMPÇÃO, DESESPERADA E CHORANDO, NUM CÔMODO DA CASA, COM JOÃO E ALBERTO.)
 
 
ASSUMPÇÃO
João! Não! Não deixa! Nosso filho não! E se tiver outra guerra mundial? E se algum comunista jogar uma bomba no quartel? Mais um filho morto? Berto, não vá, Berto! Não vá...
 
ALBERTO
(emotivo) Calma, mãe. Não tem guerra nenhuma. É um ano só de serviço militar. Prometo me cuidar. Com todo rapaz da minha idade é assim...
 
JOÃO
(abraçando Assumpção e Alberto) É isto mesmo, querida. Passa depressa.  Um ano não é nada. Vamos visitá-lo todas as semanas. Nosso filho não é bobo. O Exército cuida bem dos filhos da pátria...
 
ALBERTO
... já pensou, mamãe? Seu filho de farda. Do Exército.Vou desfilar pra vizinhança toda.
 
ASSUMPÇÃO
(mais calma, esboça com dúvida um breve sorriso.)
 
 

                                                  
CENA3

  
 
No quartel
 
 
  
(SOLDADOS PASSAM MARCHANDO. O SARGENTO INTERPELA O RECRUTA ALBERTO)
 
 
 
SARGENTO GUIMARÃES
(com imponência) Recruta Alberto!
 
ALBERTO
(mecanicamente, bate continência.) Senhor!
 
SARGENTO GUIMARÃES
A esposa do coronel está precisando de um novo ordenança. O anterior deu baixa. Como você é o menos ignorante dessa tropa de encostados sociais, vai assumir este posto. (tom ameaçador) Vê lá, hein?  Se fizer qualquer coisa que contrarie a esposa do comandante Figueiredo, te como o fígado. Entendeu bem, seu traste?
 
ALBERTO
(peito estufado) Sim, senhor! Agradeço, senhor!
 
SARGENTO GUIMARÃES
(sarcástico) Outra coisa. Fiquei sabendo que sua mãe suborna um recruta pra lhe trazer comida. Não agüento mais ver a velha choramigar na porta do quartel, por sua causa. Não tem vergonha, não? Você é militar ou maricas?
 
ALBERTO
Desculpe minha mãe, senhor! Não vai mais acontecer, senhor!
 
 
   
  
CENA 4

 
 
 
Residência do Coronel Figueiredo
 
 
 
(MARIA ODETE, ESPOSA DO CORONEL, COM O ORDENANÇA  ALBERTO)
 
 
 
MARIA ODETE
(tom maternal) Alberto, meu rapaz. Eu e meu marido estamos muito contentes com seus serviços. Vai fazer seis meses...
 
 
ALBERTO
(com alguma intimidade) Agradeço, senhora! O coronel e a senhora são muito bons. Já nem me incomodo quando meus amigos me chamam de  peixinho do coronel.
 
MARIA ODETE
(rindo) Peixinho? É por isso que as mulheres mais novas dos oficiais querem você em seus aquários, não?
 
ALBERTO
(envergonhado, não responde)
 
MARIA ODETE
(tom maternal) Diga-me, meu rapaz, como são seus pais? Sua casa? Tem namorada?
 
ALBERTO
Não, senhora! Não tenho namorada. Só na matinê do cinema, eu paquero alguma garota. Nada sério. Minha casa fica lá no subúrbio, Zona Norte. Somos filhos de imigrantes. Os primeiros do bairro vieram lá do Brás e da Penha. Compraram lotes e, fins de semana, constróem suas casas. Sempre foi uma luta.
 
MARIA ODETE
(rindo, moraderadamente) Por isso é que você fala mançã, mortandela, sangüiche...
 
 
ALBERTO
(súbito entristecimento) Minha mãe viveu um drama terrível. Eu sou o caçula. Vinte anos atrás, em São Paulo,  houve uma grande epidemia. Tifo. No meu bairro, muitos caíram doentes. Os hospitais lotaram. A morte trabalhou muito. Levou muitas e muitas vidas.
 
MARIA ODETE
(aproxima-se. Dá-lhe maior atenção)
 
ALBERTO
(olhando o vazio) Na época, eu não era nascido. Meus pais tinham um único filho, Nelson, de doze anos. Adoeceu com a febre tifóide. Foi levado para a Santa Casa. Minha mãe conseguiu ser voluntária para ficar perto do filho, além de tratar dos outros doentes. Ela não comia. E sofria, sofria, vendo pessoas morrerem. Todos os dias, as mesmas tragédias. E a cada óbito, minha mãe se agarrava mais ainda ao filho. Iam definhando juntos. Como se os dois padecessem o mesmo castigo. O meu pai, todas as noites levava chocolates para os enfermeiros e alguns pacientes. E chorava também, vendo mulher e filho morrendo...
 
MARIA ODETE
(pegando as mãos de Alberto, penalizada) ...O seu irmão curou-se? Conseguiu sobreviver?
 
ALBERTO
Certo dia, minha mãe atendia seus pacientes em outra ala do hospital. Foi chamada às pressas. Nelson agonizava. Não agüentou. Morreu nos braços dela. Minha mãe, enlouquecida, saiu gritando com o filho morto no colo,  pelo hospital.
 
MARIA ODETE
(com lágrimas) Coitada... E quando você nasceu? Dona Assumpção não superou a dor com a vinda do novo filho?
 
ALBERTO
Meus pais me sufocaram. Coitados. Queriam me salvar de todas as dores da vida. Veja, senhora, meus pais até hoje me trazem balas, aqui no quartel, como se eu fosse um menino. Acho que eles não querem que eu cresça. Imaginam que podem me perder. Mais uma perda, entende?
 
MARIA ODETE
(curiosa) E sua mãe, depois de tudo?
 
ALBERTO
(sem forças) Até hoje ela grita, correndo pelo quintal de casa, pedindo socorro. Imagina o Nelson em seus braços. Como se tudo fosse somente um pesadelo. Que pode acabar a qualquer momento. Mas nunca termina...
 
MARIA ODETE
(solidária) Aqui não é o seu lugar. Você precisa ficar ao lado de seus pais.

 

 
CENA 5

 
   
 
Casa dos pais de Alberto,
Assumpção, João e o Sargento Guimarães
se encontram.
 
 
 
(PALMAS NO PORTÃO)
 
 
ASSUMPÇÃO
(nervosa) João! É o sargento Guimarães, aí, no portão, de novo. Vá lá falar com ele. Acabe logo com isso. Não agüento mais. Nem nos fins de semanas...
 
JOÃO
(vestindo as calças, apressado) Tem certeza? É todo mês esse inferno. O que os vizinhos vão pensar? Esse jipe militar parado aí no portão de casa...
 
ASSUMPÇÃO
(começa a chorar)
 
JOÃO
(ofegante e mau humorado) Pois, não! O que o senhor deseja, sargento, desta vez?
 
SARGENTO GUIMARÃES
(sorrindo, irônico) Bom dia, senhor João! Como tem passado? E o seu filho, Alberto? Como vai na vida civil? Uma boa, não? Família unida. É assim que tem que ser. Sempre falo isso...
 
ASSUMPÇÃO
(chorando) Sargento, por favor, deixa nosso filho em paz! Já não basta a humilhação... Você pensa que somos ricos, é? Somos não. Meu marido sai às cinco da madrugada para trabalhar e volta às onze da noite. Folga só aos domingos.
 
JOÃO
(alterado) Cala a boca, Assumpção. Vá pra dentro. Olha os vizinhos, poxa vida! Deixa que eu resolvo.
 
 
SARGENTO GUIMARÃES
(ombros encolhidos) Ô, seu João. Péra aí. Tô aqui como amigo. Vim para ajudá-lo. Tenho que levar um calmante pro doutor, médico do quartel. Quer que explique de novo? Tim tim por tim tim? Só mais três parcelinhas, e tudo resolvido. É isso aí.
 
 
JOÃO
(indignado) Não é tim tim por tim tim. O que vocês querem é tutu e mais tutu. Um em cima do outro. Você falou da vez passada que era a última, lembra-se?
 
 
SARGENTO GUIMARÃES
(solene e falso) Não. O senhor está enganado. Francamente. Nós, lá no quartel, gostávamos do recruta Alberto. Queríamos o bem dele. O tempo todo. Ele era o peixinho do coronel. Só na manha. Tá me entendendo? Poderia seguir carreira, até. Mas dona Assumpção ia toda santa semana chorar as pitangas pra mim, lá no quartel. Queria liberar o filho do serviço militar. Insistiu tanto que eu me compadeci dessa pobre mãe. Intercedi junto ao doutor médico para arrumar as coisas pro Alberto bater asas como passarinho. Livre! Corremos riscos, mas seu filho ficou livre, não é mesmo? O menino tem tanta sorte...
 
 
JOÃO
(cabisbaixo.) ...Tá certo. Tá certo. Vou abrir a carteira pela última vez. Tome aqui os três cheques. As três parcelas que você falou. E nunca mais volte aqui.
 
SARGENTO GUIMARÃES
(sorrindo, bate continência.) Sim, senhor! É uma ordem. E ordem não se discute. Adeus. Ah! só pra deixar claro: nunca em hipótese alguma NINGUÉM poderá saber desse nosso acordo. Entendeu bem, senhor João?
 
JOÃO
(abana a cabeça, concordando.)
 
 
 


CENA 6

 
 
  
Anos depois. Nos recintos do DEIC
 
 
  
BRAGA, CHEFE DOS INVESTIGADORES
Ô “Bertão”. Dá o alerta pra turma, rápido. Tem advogado, filha da puta, lá na portaria, com papel da justiça querendo fuçar por aqui. Está procurando o Vieirinha.
 
ALBERTO
(rindo) Pode deixar, chefia. A gente enrusti o sacana. O filho da puta não vai encontrar ninguém na carceragem. O Vieirinha nunca entrou aqui no DEIC, não é, chefia?
 
BRAGA, CHEFE DOS INVESTIGADORES
É isso aí, “Bertão”. Vai lá na portaria receber esse puto. Dá canseira nele. Roda o prédio todo. Faça o cara de palhaço...
 
ALBERTO
(atende a ordem. Vai à portaria)
 
 
(NA PORTARIA)
 
 
ADVOGADO
(revoltado) Minha liberação está demorada, por quê? Estão ganhando tempo? Eu sei bem como vocês trabalham...
 
PORTEIRO DO DEIC
(irônico) Êeeeee... Calma aí, doutor. Tô fazendo o que posso. Não ganho tanto para trabalhar assim rápido...
Pronto. Chegou o  Alberto, que vai acompanhar o senhor.
 
 
(ALBERTO E O ADVOGADO VÃO EM DIREÇÃO AO ELEVADOR)
 
PORTEIRO DO DEIC
             (irônico, chama atenção do advogado, que se vira) Doutor! Doutor! Não posso deixar de desejar: boa sorte!
 
ADVOGADO
(nada responde. Continua caminhando)
 
PORTEIRO DO DEIC
(fala em tom baixo) Que o seu cliente se foda.
 
ADVOGADO
Por favor, Alberto, leve-me para a carceragem principal. Eu sei que há outras. Cá entre nós, agora que estamos sozinhos... Eu sei que vocês esconderam o meu cliente. Ele tá frio aqui dentro. Mas tenho evidências. Fortes evidências. Uma equipe trouxe ele para cá. Leva quinhentinho só para me dizer se ele está vivo.
 
ALBERTO
Que isso doutor!? Quer comprometer minha carreira? Não pego pau de ninguém. Vou fazer de conta que não ouvi essa afronta. (OS DOIS SAEM DO PALCO)
 
   
 
(MOMENTO DEPOIS, O ALBERTO E O ADVOGADO ENTRAM NO PALCO)
 
 
 
ADVOGADO
Pô! Assim não dá. Já fomos em todos os andares. E nada. Estou com os pés fervendo. Vocês não vão entregá-lo mesmo. Mas vou falar uma coisa. Na linguagem de vocês. Pode espalhar: se eu pegar o puto que está escondendo meu cliente, vai se danar. Espere pra ver. (sai revoltado)
 
BRAGA, CHEFE DOS INVESTIGADORES
(chega, feliz.) E aí, “Bertão”? O advogado filha da puta deu muito trabalho? Eu sei que você não leva nenhuma grana. Gosta do seu serviço, não é mesmo?  Ô gente boa, tamos com pouco pessoal por causa do feriado de amanhã. Daqui a pouco vamos colocar os hóspedes no pau-de-arara e descer o cacete. Vamos inaugurar os azulejos novos. Fica mais fácil de lavar e tirar as marcas de... você sabe, né. Precisamos da sua ajuda.
(rindo) Já tá noite, este é o horário da verdade. Da recreação. Você vem?
 
ALBERTO
Pode deixar, chefia. Tô nessa.
 
 
(BLACK-OUT)
 
 
(OUVEM-SE GRITOS DE DOR E  SONS DE ESPANCAMENTO.)
 
 
 
 
CENA 7

 
 
 
 
Luz em foco sobre Alberto e a lápide
 
NOUTRO DIA. FERIADO DE FINADOS. NO CEMITÉRIO. ALBERTO USA A LÁPIDE DOS PAIS COMO SE ESTIVESSE DIANTE DE UM CONFESSIONÁRIO.
 
 
ALBERTO
(meigo) Oi, Mamãe. Oi, papai. Hoje vim aqui visitar a campa da família. Como vocês estão? Tá tudo largado. Abandonado. Esse mato todo... Vou dar um troco na administração. Vão dar um trato. Não se preocupem. Ontem à noite trabalhei até mais tarde, lá no DEIC.
 
(NO CANTO OPOSTO, NO PALCO, FOCO SOBRE CENA DE TORTURA. TRÊS HOMENS SENTADOS, ALGEMADOS. ALBERTO VAI AO ENCONTRO DELES. ALBERTO CONTINUA COM O “MONÓLOGO” )
 
Sabe papai, pegamos esses caras (fala apontando os três homens sentados) e demos choque, porradas...
(com sentimento de vingança  pratica as mesmas cenas de tortura) eu peguei o cassetete com as duas mãos, e bati... bati... bati...  até não agüentar mais... Eu queria continuar batendo, mas não podia. Eu estava exausto, sem forças. Toma seus filhos da puta, seus sacanas. Vão pagar também aqui na carceragem... (Alberto perde as forças e vai descansar sobre a laje tumular) Pronto, papai, eles pagaram por tudo o que você passou naqueles dias da minha juventude. Pela humilhação. Eu descontei neles. Não quis nem saber. (entram em cena, centro do palco, soldados da P.E. empurrando João, pai de Alberto. Alberto interage com a cena. Em cantos opostos do palco há luzes destacando a lápide e os três homens torturados, sentados.) Lembra-se papai, quando uma sindicância militar descobriu o esquema de baixas do Exército? Descobriu vários cheques na conta do oficial médico e do sargento Guimarães? Inclusive aqueles três últimos do senhor.  (chorando) A Polícia do Exército  nos prendeu. Eu e o senhor tratados como bichos. Lembra como apanhamos? Ainda vejo o interrogatório. Eles pisando em cima do senhor, papai. E o senhor gritava, gritava... (Alberto põe as mãos nos ouvidos. Os soldados da P.E. torturam João que grita de dor) Pare de gritar, papai. Minha cabeça vai estourar. (Alberto volta à laje tumular e encosta o rosto junto da foto da mãe. Fala infantil) Mamãe, se tiver epidemia de tifo, outra vez, a senhora vem cuidar de mim? Igual que cuidou do Nelson? A senhora vai me amar igual?  O Nelson está aí desse lado, com a senhora e o papai? Por que vocês não falam nada? O que sobrou da minha vida? (olha, em seqüência simultânea: os três homens torturados e a Polícia do Exército com os coturnos sobre João e para a lápide)
 
(após um silêncio, chora compulsivo, ajoelhado)
Eu estou sozinho...  estou com frio.
 
(grita com desespero)
PAPAI, MAMÃE, O QUE VAI SER DE MIM?
 
 
(BLACK-OUT)
 
 
 
 
FIM

 

 
Ateliê da Alma
Direitos Autorais Reservados: Nilton Bustamante

 

Acervo de todos os Registros 
no Livro de Visitas, 
assim como 
das mensagens recebidas dos amigos.

 

Site desenvolvido por:
Márcia Posthuma
Página atualizada em: 09/10/2003
Designer:
Todo conteúdo destas páginas são protegidos 
por Leis de Direitos Autorais e não podem ser usados para qualquer propósito, 
sem autorização por escrita do responsável.

 Counter

Hosted by www.Geocities.ws

1