CENA
2
O recrutamento militar
(ASSUMPÇÃO, DESESPERADA E CHORANDO, NUM CÔMODO DA CASA, COM
JOÃO E ALBERTO.)
ASSUMPÇÃO
João! Não! Não deixa! Nosso filho não! E se tiver outra
guerra mundial? E se algum comunista jogar uma bomba no
quartel? Mais um filho morto? Berto, não vá, Berto! Não vá...
ALBERTO
(emotivo) Calma, mãe. Não tem guerra nenhuma. É um ano só
de serviço militar. Prometo me cuidar. Com todo rapaz da
minha idade é assim...
JOÃO
(abraçando Assumpção e Alberto) É isto mesmo, querida.
Passa depressa. Um ano não é nada. Vamos visitá-lo
todas as semanas. Nosso filho não é bobo. O Exército cuida
bem dos filhos da pátria...
ALBERTO
... já pensou, mamãe? Seu filho de farda. Do Exército.Vou
desfilar pra vizinhança toda.
ASSUMPÇÃO
(mais calma, esboça com dúvida um breve sorriso.)
CENA3
No quartel
(SOLDADOS PASSAM MARCHANDO. O SARGENTO INTERPELA O RECRUTA
ALBERTO)
SARGENTO GUIMARÃES
(com imponência) Recruta Alberto!
ALBERTO
(mecanicamente, bate continência.) Senhor!
SARGENTO GUIMARÃES
A esposa do coronel está precisando de um novo ordenança. O
anterior deu baixa. Como você é o menos ignorante dessa
tropa de encostados sociais, vai assumir este posto. (tom ameaçador)
Vê lá, hein? Se fizer qualquer coisa que contrarie a
esposa do comandante Figueiredo, te como o fígado. Entendeu
bem, seu traste?
ALBERTO
(peito estufado) Sim, senhor! Agradeço, senhor!
SARGENTO GUIMARÃES
(sarcástico) Outra coisa. Fiquei sabendo que sua mãe suborna
um recruta pra lhe trazer comida. Não agüento mais ver a
velha choramigar na porta do quartel, por sua causa. Não tem
vergonha, não? Você é militar ou maricas?
ALBERTO
Desculpe minha mãe, senhor! Não vai mais acontecer, senhor!
CENA 4
Residência do Coronel Figueiredo
(MARIA ODETE, ESPOSA DO CORONEL, COM O ORDENANÇA
ALBERTO)
MARIA ODETE
(tom maternal) Alberto, meu rapaz. Eu e meu marido estamos
muito contentes com seus serviços. Vai fazer seis meses...
ALBERTO
(com alguma intimidade) Agradeço, senhora! O coronel e a
senhora são muito bons. Já nem me incomodo quando meus
amigos me chamam de peixinho do coronel.
MARIA ODETE
(rindo) Peixinho? É por isso que as mulheres mais novas dos
oficiais querem você em seus aquários, não?
ALBERTO
(envergonhado, não responde)
MARIA ODETE
(tom maternal) Diga-me, meu rapaz, como são seus pais? Sua
casa? Tem namorada?
ALBERTO
Não, senhora! Não tenho namorada. Só na matinê do cinema,
eu paquero alguma garota. Nada sério. Minha casa fica lá no
subúrbio, Zona Norte. Somos filhos de imigrantes. Os
primeiros do bairro vieram lá do Brás e da Penha. Compraram
lotes e, fins de semana, constróem suas casas. Sempre foi uma
luta.
MARIA ODETE
(rindo, moraderadamente) Por isso é que você fala mançã,
mortandela, sangüiche...
ALBERTO
(súbito entristecimento) Minha mãe viveu um drama terrível.
Eu sou o caçula. Vinte anos atrás, em São Paulo,
houve uma grande epidemia. Tifo. No meu bairro, muitos caíram
doentes. Os hospitais lotaram. A morte trabalhou muito. Levou
muitas e muitas vidas.
MARIA ODETE
(aproxima-se. Dá-lhe maior atenção)
ALBERTO
(olhando o vazio) Na época, eu não era nascido. Meus pais
tinham um único filho, Nelson, de doze anos. Adoeceu com a
febre tifóide. Foi levado para a Santa Casa. Minha mãe
conseguiu ser voluntária para ficar perto do filho, além de
tratar dos outros doentes. Ela não comia. E sofria, sofria,
vendo pessoas morrerem. Todos os dias, as mesmas tragédias. E
a cada óbito, minha mãe se agarrava mais ainda ao filho. Iam
definhando juntos. Como se os dois padecessem o mesmo castigo.
O meu pai, todas as noites levava chocolates para os
enfermeiros e alguns pacientes. E chorava também, vendo
mulher e filho morrendo...
MARIA ODETE
(pegando as mãos de Alberto, penalizada) ...O seu irmão
curou-se? Conseguiu sobreviver?
ALBERTO
Certo dia, minha mãe atendia seus pacientes em outra ala do
hospital. Foi chamada às pressas. Nelson agonizava. Não agüentou.
Morreu nos braços dela. Minha mãe, enlouquecida, saiu
gritando com o filho morto no colo, pelo hospital.
MARIA ODETE
(com lágrimas) Coitada... E quando você nasceu? Dona Assumpção
não superou a dor com a vinda do novo filho?
ALBERTO
Meus pais me sufocaram. Coitados. Queriam me salvar de todas
as dores da vida. Veja, senhora, meus pais até hoje me trazem
balas, aqui no quartel, como se eu fosse um menino. Acho que
eles não querem que eu cresça. Imaginam que podem me perder.
Mais uma perda, entende?
MARIA ODETE
(curiosa) E sua mãe, depois de tudo?
ALBERTO
(sem forças) Até hoje ela grita, correndo pelo quintal de
casa, pedindo socorro. Imagina o Nelson em seus braços. Como
se tudo fosse somente um pesadelo. Que pode acabar a qualquer
momento. Mas nunca termina...
MARIA ODETE
(solidária) Aqui não é o seu lugar. Você precisa ficar ao
lado de seus pais.
CENA 5
Casa dos pais de Alberto,
Assumpção, João e o Sargento Guimarães
se encontram.
(PALMAS NO PORTÃO)
ASSUMPÇÃO
(nervosa) João! É o sargento Guimarães, aí, no portão, de
novo. Vá lá falar com ele. Acabe logo com isso. Não agüento
mais. Nem nos fins de semanas...
JOÃO
(vestindo as calças, apressado) Tem certeza? É todo mês
esse inferno. O que os vizinhos vão pensar? Esse jipe militar
parado aí no portão de casa...
ASSUMPÇÃO
(começa a chorar)
JOÃO
(ofegante e mau humorado) Pois, não! O que o senhor deseja,
sargento, desta vez?
SARGENTO GUIMARÃES
(sorrindo, irônico) Bom dia, senhor João! Como tem passado?
E o seu filho, Alberto? Como vai na vida civil? Uma boa, não?
Família unida. É assim que tem que ser. Sempre falo isso...
ASSUMPÇÃO
(chorando) Sargento, por favor, deixa nosso filho em paz! Já
não basta a humilhação... Você pensa que somos ricos, é?
Somos não. Meu marido sai às cinco da madrugada para
trabalhar e volta às onze da noite. Folga só aos domingos.
JOÃO
(alterado) Cala a boca, Assumpção. Vá pra dentro. Olha os
vizinhos, poxa vida! Deixa que eu resolvo.
SARGENTO GUIMARÃES
(ombros encolhidos) Ô, seu João. Péra aí. Tô aqui como
amigo. Vim para ajudá-lo. Tenho que levar um calmante pro
doutor, médico do quartel. Quer que explique de novo? Tim tim
por tim tim? Só mais três parcelinhas, e tudo resolvido. É
isso aí.
JOÃO
(indignado) Não é tim tim por tim tim. O que vocês querem
é tutu e mais tutu. Um em cima do outro. Você falou da vez
passada que era a última, lembra-se?
SARGENTO GUIMARÃES
(solene e falso) Não. O senhor está enganado. Francamente. Nós,
lá no quartel, gostávamos do recruta Alberto. Queríamos o
bem dele. O tempo todo. Ele era o peixinho do coronel. Só na
manha. Tá me entendendo? Poderia seguir carreira, até. Mas
dona Assumpção ia toda santa semana chorar as pitangas pra
mim, lá no quartel. Queria liberar o filho do serviço
militar. Insistiu tanto que eu me compadeci dessa pobre mãe.
Intercedi junto ao doutor médico para arrumar as coisas pro
Alberto bater asas como passarinho. Livre! Corremos riscos,
mas seu filho ficou livre, não é mesmo? O menino tem tanta
sorte...
JOÃO
(cabisbaixo.) ...Tá certo. Tá certo. Vou abrir a carteira
pela última vez. Tome aqui os três cheques. As três
parcelas que você falou. E nunca mais volte aqui.
SARGENTO GUIMARÃES
(sorrindo, bate continência.) Sim, senhor! É uma ordem. E
ordem não se discute. Adeus. Ah! só pra deixar claro: nunca
em hipótese alguma NINGUÉM poderá saber desse nosso acordo.
Entendeu bem, senhor João?
JOÃO
(abana a cabeça, concordando.)
CENA 6
Anos depois. Nos recintos do DEIC
BRAGA, CHEFE DOS INVESTIGADORES
Ô “Bertão”. Dá o alerta pra turma, rápido. Tem
advogado, filha da puta, lá na portaria, com papel da justiça
querendo fuçar por aqui. Está procurando o Vieirinha.
ALBERTO
(rindo) Pode deixar, chefia. A gente enrusti o sacana. O filho
da puta não vai encontrar ninguém na carceragem. O Vieirinha
nunca entrou aqui no DEIC, não é, chefia?
BRAGA, CHEFE DOS INVESTIGADORES
É isso aí, “Bertão”. Vai lá na portaria receber esse
puto. Dá canseira nele. Roda o prédio todo. Faça o cara de
palhaço...
ALBERTO
(atende a ordem. Vai à portaria)
(NA PORTARIA)
ADVOGADO
(revoltado) Minha liberação está demorada, por quê? Estão
ganhando tempo? Eu sei bem como vocês trabalham...
PORTEIRO DO DEIC
(irônico) Êeeeee... Calma aí, doutor. Tô fazendo o que
posso. Não ganho tanto para trabalhar assim rápido...
Pronto. Chegou o Alberto, que vai acompanhar o senhor.
(ALBERTO E O ADVOGADO VÃO EM DIREÇÃO AO ELEVADOR)
PORTEIRO DO DEIC
(irônico, chama atenção do advogado, que se vira) Doutor!
Doutor! Não posso deixar de desejar: boa sorte!
ADVOGADO
(nada responde. Continua caminhando)
PORTEIRO DO DEIC
(fala em tom baixo) Que o seu cliente se foda.
ADVOGADO
Por favor, Alberto, leve-me para a carceragem principal. Eu
sei que há outras. Cá entre nós, agora que estamos
sozinhos... Eu sei que vocês esconderam o meu cliente. Ele tá
frio aqui dentro. Mas tenho evidências. Fortes evidências.
Uma equipe trouxe ele para cá. Leva quinhentinho só para me
dizer se ele está vivo.
ALBERTO
Que isso doutor!? Quer comprometer minha carreira? Não pego
pau de ninguém. Vou fazer de conta que não ouvi essa
afronta. (OS DOIS SAEM DO PALCO)
(MOMENTO DEPOIS, O ALBERTO E O ADVOGADO ENTRAM NO PALCO)
ADVOGADO
Pô! Assim não dá. Já fomos em todos os andares. E nada.
Estou com os pés fervendo. Vocês não vão entregá-lo
mesmo. Mas vou falar uma coisa. Na linguagem de vocês. Pode
espalhar: se eu pegar o puto que está escondendo meu cliente,
vai se danar. Espere pra ver. (sai revoltado)
BRAGA, CHEFE DOS INVESTIGADORES
(chega, feliz.) E aí, “Bertão”? O advogado filha da puta
deu muito trabalho? Eu sei que você não leva nenhuma grana.
Gosta do seu serviço, não é mesmo? Ô gente boa,
tamos com pouco pessoal por causa do feriado de amanhã. Daqui
a pouco vamos colocar os hóspedes no pau-de-arara e descer o
cacete. Vamos inaugurar os azulejos novos. Fica mais fácil de
lavar e tirar as marcas de... você sabe, né. Precisamos da
sua ajuda.
(rindo) Já tá noite, este é o horário da verdade. Da
recreação. Você vem?
ALBERTO
Pode deixar, chefia. Tô nessa.
(BLACK-OUT)
(OUVEM-SE GRITOS DE DOR E SONS DE ESPANCAMENTO.)
CENA 7
Luz em foco sobre Alberto e a lápide
NOUTRO DIA. FERIADO DE FINADOS. NO CEMITÉRIO. ALBERTO USA A LÁPIDE
DOS PAIS COMO SE ESTIVESSE DIANTE DE UM CONFESSIONÁRIO.
ALBERTO
(meigo) Oi, Mamãe. Oi, papai. Hoje vim aqui visitar a campa
da família. Como vocês estão? Tá tudo largado. Abandonado.
Esse mato todo... Vou dar um troco na administração. Vão
dar um trato. Não se preocupem. Ontem à noite trabalhei até
mais tarde, lá no DEIC.
(NO CANTO OPOSTO, NO PALCO, FOCO SOBRE CENA DE TORTURA. TRÊS
HOMENS SENTADOS, ALGEMADOS. ALBERTO VAI AO ENCONTRO DELES.
ALBERTO CONTINUA COM O “MONÓLOGO” )
Sabe papai, pegamos esses caras (fala apontando os três
homens sentados) e demos choque, porradas...
(com sentimento de vingança pratica as mesmas cenas de
tortura) eu peguei o cassetete com as duas mãos, e bati...
bati... bati... até não agüentar mais... Eu queria
continuar batendo, mas não podia. Eu estava exausto, sem forças.
Toma seus filhos da puta, seus sacanas. Vão pagar também
aqui na carceragem... (Alberto perde as forças e vai
descansar sobre a laje tumular) Pronto, papai, eles pagaram
por tudo o que você passou naqueles dias da minha juventude.
Pela humilhação. Eu descontei neles. Não quis nem saber.
(entram em cena, centro do palco, soldados da P.E. empurrando
João, pai de Alberto. Alberto interage com a cena. Em cantos
opostos do palco há luzes destacando a lápide e os três
homens torturados, sentados.) Lembra-se papai, quando uma
sindicância militar descobriu o esquema de baixas do Exército?
Descobriu vários cheques na conta do oficial médico e do
sargento Guimarães? Inclusive aqueles três últimos do
senhor. (chorando) A Polícia do Exército nos
prendeu. Eu e o senhor tratados como bichos. Lembra como
apanhamos? Ainda vejo o interrogatório. Eles pisando em cima
do senhor, papai. E o senhor gritava, gritava... (Alberto põe
as mãos nos ouvidos. Os soldados da P.E. torturam João que
grita de dor) Pare de gritar, papai. Minha cabeça vai
estourar. (Alberto volta à laje tumular e encosta o rosto
junto da foto da mãe. Fala infantil) Mamãe, se tiver
epidemia de tifo, outra vez, a senhora vem cuidar de mim?
Igual que cuidou do Nelson? A senhora vai me amar igual?
O Nelson está aí desse lado, com a senhora e o papai? Por
que vocês não falam nada? O que sobrou da minha vida? (olha,
em seqüência simultânea: os três homens torturados e a Polícia
do Exército com os coturnos sobre João e para a lápide)
(após um silêncio, chora compulsivo, ajoelhado)
Eu estou sozinho... estou com frio.
(grita com desespero)
PAPAI, MAMÃE, O QUE VAI SER DE MIM?
(BLACK-OUT)
FIM