Geoarqueologia*
Geoarqueologia � um termo utilizado para designar a aplica��o das Ci�ncias da Terra (Geografia F�sica, Geologia, Pedologia, Geoqu�mica, etc) � Arqueologia. O desenvolvimento desta abordagem, e notem que n�o uso o termo �subdisciplina� ou �subcampo� por raz�es que vou deixar mais claras adiante, deu-se por v�rios motivos: um deles est� relacionado ao desenvolvimento natural da Arqueologia, que contava com um n�mero respeit�vel de praticantes. Se for permitida aqui uma observa��o completamente emp�rica, uma disciplina s� parece avan�ar realmente quando a massa cr�tica, ou o n�mero de praticantes, atinge um certo patamar. No caso da Arqueologia norte-americana, um grande aumento no n�mero de praticantes espalhados por um maior n�mero de universidades parece ter promovido o aporte de profissionais de outras �reas, com outras vis�es de mundo e dominando t�cnicas muitas vezes desconhecidas dos arque�logos. Este parece ter sido o caso das Ci�ncias da Terra. O fator acad�mico-demogr�fico por�m � necess�rio, mas n�o suficiente. A colabora��o extremamente proveitosa entre arque�logos, ge�logos e ge�grafos j� se fazia sentir desde meados do s�culo XIX. Esta rela��o arrefeceu em maior ou menor grau na virada do s�culo, uma poss�vel exce��o sendo a Inglaterra. Mais recentemente, temos em Karl Butzer um exemplo de profissional das Ci�ncias da Terra cuja atua��o intensa em Arqueologia resultou em trabalhos extraordin�rios desde o in�cio dos anos 60. Mesmo assim, a vis�o da necessidade de integra��o plena entre Geoci�ncias e Arqueologia demorava a decolar, conforme o pr�prio Butzer chegou a colocar em um artigo de 1982, ao diferenciar a Geologia Arqueol�gica � geologia realizada com um vi�s ou aplica��o arqueol�gica � da Geoarqueologia � arqueologia realizada com a ajuda de m�todos geol�gicos . Mesmo na Inglaterra, a rela��o entre Arqueologia e Geologia era mais do tipo �Geologia arqueol�gica� do que do tipo �Geoarqueologia�. Seria necess�rio um elemento catalizador. A meu ver, um dos maiores motores do desenvolvimento e aceita��o da Geoarqueologia foi, paradoxalmente, a abordagem reconstrucionista. A ansiedade sofrida por arque�logos reconstrucionistas ao compararem o �empobrecido� registro arqueol�gico com sociedades tribais atuais tinha que ser compensada por um corpo de conhecimentos que permitisse a tradu��o de peda�os de pedra e ossos em comportamento humano, e quanto mais detalhado melhor. O fato de que o registro era incompleto n�o era novidade. Mas talvez um estudo minucioso desse registro pudesse permitir o entendimento de regras de parentesco e reparti��o de trabalho, passando por idiosincrasias e ideologia. Uma nova porta se abria, uma nova esperan�a nascia, desde que o registro arqueol�gico fosse devidamente entendido.
A dura realidade � que, independente de constru��es mentais como �s�tio�, �acampamento�, �cemit�rio� ou o que fosse, o registro arqueol�gico � um pacote sedimentar. Deste ponto em diante, ficou claro que n�o se podia mais ignorar o fato de que o registro arqueol�gico era o objeto de estudo, a partir do qual infer�ncias comportamentais poderiam, talvez, serem realizadas.
Desde ent�o, a bibliografia no t�pico cresceu exponencialmente, e permeou v�rias abordagens te�ricas. Revistas especializadas foram publicadas, e nosso conhecimento a respeito de processos de forma��o de s�tios arqueol�gicos alcan�ou um patamar respeit�vel. Ao mesmo tempo, as expectativas reconstrucionistas foram amplamente frustradas. A meu ver, ao se debru�arem sobre o registro arqueol�gico, arque�logos, ge�logos, ge�grafos e ped�logos desvendaram algumas caracter�sticas dos dep�sitos sedimentares que s� puderam ser observadas devido a uma mudan�a de escala. Os problemas atacados pela Arqueologia mostraram que uma vis�o est�tica do registro arqueol�gico est� completamente alienada da realidade. Pressupostos b�sicos da Geologia, tais como a lei da superposi��o de camadas, n�o se verificam necessariamente para o material particulado que constitui as camadas, incluindo os artefatos. Materiais contempor�neos podem se deslocar verticalmente a diferentes taxas, criando padr�es muito distantes dos idealizados �solos de ocupa��o�. S�tua��es consideradas ideais, como cavernas e abrigos rochosos, mostram-se t�o ou mais sujeitas ainda a processos de transforma��o espacial do que correlatos a c�u aberto. Em suma, nada parece ser bem o que se pensava, e isto faz parte da acumula��o de conhecimentos e constru��o de uma ci�ncia. Se ainda h� muito o que aprender, sabe-se pelo menos o que � razo�vel esperar do registro arqueol�gico em termos de informa��o.
O registro arqueol�gico � uma entidade f�sica com caracter�sticas pr�prias, e porisso algumas abordagens s�o mais bem sucedidas do que outras. Este sucesso depende de dois componentes b�sicos: um � relacionado � pr�pria natureza do material de estudo, ou seja, �s caracter�sticas do registro arqueol�gico, e o outro diz respeito ao tipo de quest�o proposta. Nesse sentido, a abordagem hist�rico-cultural, apesar de seus objetivos estreitos, obteve muito mais resultados do que a �paleoetnologia� ou reconstrucionismo. Devemos ter em mente que o que se sabe atualmente em termos de pr�-hist�ria mundial � fruto antes de tudo da hist�ria cultural, quase intocada pelas inova��es propostas pela �new archaeology�, conforme j� observado por Robert Dunnell. N�o quero dizer que os arque�logos de orienta��o tradicional tivessem um melhor entendimento do registro arqueol�gico. Sem querer, e sem entender porqu�, os arque�logos tradicionais estavam se valendo de caracter�sticas f�sicas dos sedimentos e obtendo resultados satisfat�rios na constru��o de cronologias. O sucesso da hist�ria cultural foi uma quest�o de tentativa e erro.
A abordagem reconstrucionista, por outro lado, dependia de um detalhe milim�trico para que seus objetivos fossem alcan�ados. N�veis discretos deveriam ser separados, solos de ocupa��o teriam que ser mapeados, e o comportamento humano poderia ser desvendado em seus detalhes. Esta, por�m, n�o � a natureza do registro arqueol�gico. A meu ver, temos que explorar o potencial desse registro, ao inv�s de lamentar suas caracter�sticas b�sicas.
Neste ponto, quero deixar claro que n�o acredito que a Geologia ou a Geografia sejam a panac�ia para os problemas da Arqueologia, n�o por causa de qualquer especificidade relacionada � condi��o humana, mas simplesmente por uma quest�o de interesses e de escala. A maneira como a Geologia v� os dep�sitos sedimentares est� de acordo com uma escala da ordem de milhares de quilometros quadrados. A distin��o entre estratos geol�gicos se d� com base em mudan�as de ambiente de deposi��o que se deram ao longo de milhares de anos, traduzidos em espessuras de dezenas de metros. Nem mesmo a Geologia do Quatern�rio trabalha normalmente em uma escala diretamente aplic�vel aos nossos interesses.
Fica patente ent�o a import�ncia de estudos relacionados �s caracter�sticas f�sicas e qu�micas do registro arqueol�gico, o que se chama convencionalmente de Geoarqueologia. N�o creio que Geoarqueologia seja uma �subdisciplina� ou algo parecido. Ao contr�rio da zooarqueologia ou palinologia, que podem ou n�o ser aplicadas dependendo das caracter�sticas espec�ficas de cada s�tio arqueol�gico, todos os s�tios arqueol�gicos s�o potencialmente um problema geoarqueol�gico.
� necess�rio, portanto, investir no conhecimento do registro arqueol�gico porque nossas perguntas n�o s�o as mesmas formuladas por profissionais das geoci�ncias. Do mesmo modo, as perguntas feitas por antrop�logos sociais e etn�logos s�o distintas das nossas. Arqueologia � simplesmente Arqueologia.
O que chamamos hoje de Geoarqueologia, no futuro talvez simplesmente fa�a parte do conjunto de procedimentos rotineiramente aplicados em qualquer pesquisa arqueol�gica. Geoarqueologia � simplesmente arqueologia bem feita e amadurecida do ponto de vista te�rico e de m�todos, nada mais, nada menos.


* Este texto � uma vers�o modificada de um trecho do artigo "As Geoci�ncias e suas Implica��es em Teoria e M�todos Arqueol�gicos", publicado em 1999 na Revista do MAE, Anais da I Reuni�o Internacional de Teoria Arqueol�gica na America do Sul. Suplemento 3, pgs. 35-45.
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