A ARTE CONTRA O MUSEU-FRANQUIA

O Brasil vive um momento de transformações e questionamentos das distorções e injustiças cometidas na administração pública, muitas delas oriundas do autoritarismo enraizado no nosso sistema político e nas mentes de algumas autoridades. Um caso gritante de autoritarismo e falta de transparência na gestão pública é o processo de implantação do Museu Guggenheim – Hermitage – Kunsthistorishes – Rio, que o Prefeito da cIdade, Sr. César Maia, está tentando nos impor.

É certo que esse é apenas um dos pontos que estão associados a um problema mais amplo na área cultural, cujo debate é urgente. Em nível nacional, é necessário que se chegue a uma definição democrática das prioridades no campo da arte e da cultura, o que passa pela discussão do Programa Nacional de Apoio à Cultura, como aponta Yacoff Sarkovas (Valor Econômico 03/01/2003). Nesse processo está incluída a revisão do projeto de renúncia fiscal, ou seja, a Lei Rouanet.

Nós artistas visuais, curadores, críticos, museólogos, historiadores de arte e arte-educadores consideramos também urgente a criação de uma área no Ministério da Cultura que possa debater uma política de apoio à produção de arte contemporânea, para que não se perpetuem iniciativas desastrosas, despropositadas e arcaicas, incapazes de compreender como se dá a economia atual das artes no Brasil e no mundo. Sabe-se que a dinâmica das artes visuais se passa através de um circuito de arte com demandas próprias e específicas que é necessário debater e estudar, de modo a atualizar seus modelos de funcionamento e efetivar a implantação de uma política específica para o setor.

Entretanto, a implantação do Museu Guggenheim, pela maneira como vem sendo negociada e, sobretudo, pelo volume de recursos públicos envolvidos em sua construção e manutenção, nos obriga a reinvindicar que as autoridades tratem deste assunto imediatamente, o que significa que exigimos mais respeito pelo interesse público e que não se atropele e ignore abertamente os diversos segmentos sociais envolvidos neste projeto.

A Prefeitura do Rio de Janeiro tem conduzido o processo de maneira ao mesmo tempo espetacular e obscura. O apelo sedutor e grandiloqüente dos traços espetaculares da obra, que quer ganhar o contribuinte pela propaganda, contrasta com a falta de informações em vários aspectos que envolvem o projeto, ou seja, financeiro, artístico, urbanístico, arquitetônico, social, comunitário, jurídico e legal.

Do ponto de vista financeiro, como foi publicado (O Globo – 4/2/2003), a construção do museu custaria em torno de 190 milhões de dólares, ou seja, cerca de 684 milhões de reais (na cotação do dia 21/02/2003), e somam-se ainda mais 45 milhões de dólares de outras despesas como royalties, projeto, etc. (O Globo, 8/2/2003). Depois de pronto, financiamos ainda anualmente as exposições com o apoio da Lei Rouanet, no valor de 9 milhões de dólares, e também o seu deficit anual, calculado em 12 milhões de dólares. Este será pago com recursos da cidade do Rio de Janeiro, muito provavelmente através de leis de incentivo à cultura, mas também com a ajuda da legislação federal para entidades sem fins lucrativos e organizações sociais de interesse público (Estudo de Viabilidade - Rio Estudos, N º 79 – 22/11/2002).

O projeto foi apresentado como um pacote, envolvendo a presença do museu em um plano de reurbanização de uma área importante da cidade, cujo conteúdo é obscuro. Em meio a um cenário financeiramente tão complexo, e ao mesmo tempo tão pouco transparente, é exigida uma leitura atenciosa para que se perceba sua inviabilidade. Um dos pontos nebulosos diz respeito à própria manutenção do museu. O prefeito assegura que este se manterá com a verba de patrocínio e de recursos públicos, ou seja, proveniente da renúncia fiscal. Assim, o "gigante-elefante-branco-titanic-cultural" entraria na cidade competindo pelas mesmas verbas que nossas precárias instituições culturais. Não se fez ainda um estudo sobre o impacto que a vinda do Guggenheim terá sobre tais instituições, mas o que se pode presumir é que acarretaria em uma considerável diminuição de projetos financiados, o que implica em significativo corte de pessoal especializado empregado na área. Também não se tem falado do funcionamento do museu que, pelo mesmo estudo de viabilidade, traria suas exposições e seu quadro de funcionários, fornecendo "conhecimento especializado em desenvolvimento, administração, operações, coleções e programação....além do nome forte, internacionalmente respeitado" (Rio Estudos, N º 79 – 22/11/2002). É do próprio estudo de viabilidade, encomendado pela prefeitura, a seguinte conclusão (página 33):

“Este relatório é o resultado de um estudo de dez meses realizado por uma equipe internacional sofisticada. Ao final não produziu uma resposta ‘sim ou não’ ou ‘vai ou não vai’. Em vez disto, foi confirmada a argumentação do trabalho apresentado no Capítulo 1, ‘Introdução’, para o desenvolvimento do Museu Guggenheim no Rio, produziu um conjunto de resultados que indicam que o Museu poderia ser um risco para ambas as partes e desenvolveu um conjunto de temas que necessitam ser satisfatoriamente tratados antes que as mesmas continuem com o projeto a fim de que este tenha uma razoável probabilidade de êxito.” (grifos nossos)

Ou seja, a própria conclusão do relatório indica a necessidade de se aprofundar o debate sobre o projeto envolvendo a implantação do Museu.

É notoriamente sabido, internacionalmente, que a Fundação Guggenheim está passando por um processo de deficit e desmoronamento, decorrente da política expansionista implantada pelo mesmo Sr. Thomas Krens, seu diretor nos últimos 15 anos, que agora negocia com o Prefeito.

A política do Sr. Thomas Krens de aumentar a visibilidade do museu através de satélites-guggenheims, que teriam a função de "prover a Fundação de suporte financeiro e economia de escala para exposições e aquisições" (Lee Roesenbaum, Opinion Journal, The Wall Street Journal Editorial Page, 10 de Dezembro de 2002, disponível em http://www.opinionjournal.com/la/?id=110002748), atende aos seus objetivos de criar uma rede global de financiamento para a Fundação Guggenheim. Incluir nessa rede, de iniciativa privada, os recursos públicos do Rio de Janeiro pode até ser legítimo, mas pode não interessar a nós, contribuintes e cidadãos cariocas e brasileiros.

Enquanto os interesses da Fundação Guggenheim parecem bem claros, os argumentos e estudos apresentados pela Prefeitura do Rio de Janeiro são confusos e ineficientes, não trazendo a questão em sua totalidade. Claramente, o Museu Guggenheim é apenas instrumento secundário em um processo mais amplo envolvendo interesses financeiros de grandes dimensões. A maneira pouco transparente de condução desse processo aponta para a evidência de que as questões artística, cultural e educacional estão relegadas a segundo plano, e o processo de implantação está sendo movido por outra conjunção de interesses, nem tão nobres, inocentes ou utópicos.

Nos últimos vinte anos, a arte contemporânea brasileira conquistou respeitabilidade e reputação internacionais, com profissionais de seus mais diversos segmentos participando de importantes eventos em várias partes do mundo. Tal credibilidade os qualifica como legítimos inerlocutores a serem ouvidos e consultados em projetos do setor que sejam de interesse da população do Rio de Janeiro.

Cabe a nós, então, perguntar:

Por que deveríamos comprometer um volume tão grande de recursos num projeto cujas condições parecem tão desfavoráveis?

Por que aprovaríamos uma decisão tomada de maneira tão precipitada, sem consulta aos profissionais das várias áreas envolvidas?

Por que um município com tantas dificuldades financeiras e sem uma política cultural clara e transparente direcionada a todos os segmentos das artes, deveria comprometer um volume tão escandalosamente grande de recursos num só museu?

Por que a comunidade artística brasileira e do Rio de Janeiro, amplamente qualificada e respeitada internacionalmente, vem sendo sumariamente ignorada, quando se trata de um projeto de grande porte que a afetará diretamente?

Diante do desempenho autoritário dos nossos representantes públicos, nos solidarizamos com todos aqueles que estão exigindo transparência e zelo no uso do dinheiro público e, principalmente, que a Prefeitura apresente todos os esclarecimentos sobre os pontos obscuros do projeto.


Veja em anexo o que foi levantado sobre O Guggenheim, a Lei Rouanet e outras renúncias fiscais federais.

Rio de Janeiro, 05 de março de 2003


Assina este documento o grupo artesvisuais_políticas, formado por artistas visuais, críticos, curadores, historiadores de arte, arte-educadores e museólogos reunidos no Rio de Janeiro para debater sobre políticas culturais e a construção do Guggenheim-Rio, e conectados, através da internet, a um abaixo-assinado, atualmente com mais de 400 assinaturas, contra o uso do dinheiro público na construção do Guggenheim-Rio.

grupo artesvisuais_políticas
Adriana Guanaes, Aimberê Cesar, Alex Hamburger, Alexandre Dacosta, Alexandre Lambert, Ana Lúcia Milhomens, Ana Muglia, André Alvim, Armando Mattos, Beatriz Luz, Beatriz Pimenta, Bob N, Bruno Lopes Lima, Cecília Cotrim, Christina Bocayuva, Clarisse Tarran, Cristina Pape, Daniela Mattos, Elisa de Magalhães, Ernesto Neto, Fabiana Santos, Fábio Carvalho, Gisele ribeiro, Glória Seddon, Guilherme Andries, Guilherme Chaves, Isabel Sodré, Isadora Bonder, Ivana Monteiro, Jacques Kalbourian, Joana Traub Csekö, Judith Miller, Julia T. Csekö, Laura Lima, Leila Franco, Lia do Rio, Lígia Teixeira, Livia Flores, Lola Machado, Luis Andrade, Luiza Interlenghi, Márcia X., Marília Jaci, Marssares, Marta Strauch, Mauricio Ruiz, Mauro Espíndola, Otavio Avancini, Patricia Canetti, Rachel Korman, Ricardo Basbaum, Ricardo Ventura, Rita Barroso, Romaric Sulger Büel, Sandra Porto, Sheila Cabo, Simone Michelin, Stela Costa, Suely Fahri, Tiago Rivaldo, Vandir Gouvea, Wilton Montenegro.

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