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Comunidade Ars Dei 

   

A Páscoa de Jesus e nossa Páscoa.

 

A A cada ano, quando chega a primavera, no hemisfério Norte, cristãos e judeus celebram a festa da Páscoa. Ambas as celebrações coincidem no sentido libertador do fato que comemoram e na sua vigência atual. No entanto, se diferencia, no próprio fato: saída do Egito, para os judeus; morte e ressurreição de Jesus para os cristãos. Diferem em seus protagonistas: Moisés e o núcleo dos clãs que formariam mais tarde Israel; Jesus e a totalidade dos homens chamados a formar a nova humanidade. Diferenciam-se também no significado da libertação: libertação da escravidão física que impede “o serviço de Deus” (Ex 5, 1.6-9); libertação da escravidão moral do pecado que afasta o homem de Deus. Por último, trata-se de ritos diferentes, havendo uma pequena diferença quanto à data: enquanto a Páscoa judaica (Pessach = passagem) coincide com o plenilúnio (lua cheia) do mês de nisã (março-abril), a Páscoa cristã é celebrada no domingo seguinte a esse plenilúnio.

            A Páscoa cristã está, porém, vinculada em sua origem ao Pessach judaico. Em um ambiente de Pessach tiveram lugar os acontecimentos salvadores que constituem a Páscoa cristã: a morte e ressurreição de Jesus, seu trânsito (Pessach) da existência humana ao Pai. Ou melhor, a Páscoa parte do próprio Pessach judaico, pois com a celebração desta festa por Jesus e os seus, ou em seu contexto, é que tiveram início os referidos acontecimentos.

            Cada domingo, dia do Senhor, é para os cristãos uma verdadeira Páscoa. A Eucaristia que, reunidos em comunidade de fé celebramos, nada mais é que a atualização do mistério pascal, na espera vigilante do retorno de Jesus (cf. 1 Cor 11, 26). Tanto a Páscoa da primavera como a Páscoa de cada domingo referem-se, por um lado, ao mistério da cruz e à ressurreição de Jesus, e por outro à última ceia. A celebração destes acontecimentos históricos em nossa liturgia é feita em termos de ceia de Pessach.

            Isso nos faz ver a importância que o conhecimento da Páscoa judaica tem para ambientar e compreender a ceia que Jesus celebrou com seus discípulos na última noite de sua vida entre nós. Ao mesmo tempo, a análise desta ceia – ritos, palavras, gestos – far-nos-á penetrar no sentido autêntico de nossas celebrações eucarísticas. Descobrimos que tais celebrações são algo mais que um rito religioso, rotineiro e gregário muitas vezes, de que devemos participar a cada semana; são a vivência gozosa, aqui e agora, por uma comunidade de fiéis, dos fatos que instauraram os novos tempos, dentro dos quais nos encontramos.

            Ao evocarmos juntos, judeus e cristãos, um fato do passado que faz parte das respectivas tradições: a libertação de Israel da escravidão do Egito pela mão poderosa de Deus, fazemos nossa essa libertação e, ao mesmo tempo, expressamos que é tarefa urgente alcançar a verdadeira liberdade para todos os homens e mulheres, pelos únicos caminhos que essa liberdade se alcança, ou seja, seguindo a direção e o rumo que Deus nos indica.

            Os cristãos, por sua vez, compreendem a reinterpretarão feita por Jesus deste fato histórico e as novas dimensões humanas e cósmicas que lhe confere. Páscoa não é somente a liberdade física de um povo que sofre a escravidão em uma terra estranha, mas a liberdade de outras escravidões mais profundas que afetam a todos os homens e mulheres e em todos os tempos: as do pecado e do mal. Como conseqüência, é também a libertação e a iluminação da criação inteira pela morte e ressurreição de Jesus Cristo.

A escravidão física e a escravidão moral, esta última em especial, são dois terríveis males que existem em nosso mundo, duas “pragas” ou “chagas” de nossa sociedade, contra as quais, sem interpretações distorcidas ou interessadas, sem oferecer, sob vistos de liberdade, outras formas de escravidão, hão de lutar todos aqueles que alcançaram já a autêntica liberdade e acreditam nela. Por meio da Páscoa, judeus e cristãos vêem-se comprometidos em uma tarefa comum e um comum esforço. Para ambos, a Páscoa é a festa da liberdade.

            Mas tanto judeus como cristãos sabem, por uma longa história e por uma dolorosa experiência, que não conseguimos alcançar aqui nem a plena liberdade nem a plena alegria, nem a plena paz, dons do reino que há de vir. Por isso, judeus e cristãos estamos também unidos na esperança comum: a dos tempos messiânicos, a do reino de Deus. Desta maneira, a festa da Páscoa nos faz olhar o passado onde tem sua origem e nos impulsiona a viver seu profundo sentido e suas exigências no nosso hoje, obrigando-nos também a construir o amanhã que aguardamos. Por isso, a Páscoa é igualmente uma festa da esperança e uma confirmação de nossa fé na justiça, na fraternidade, na paz entre os homens e mulheres de boa vontade e na ação de Deus na história.

Idênticas exigências tem para um cristão a Páscoa do domingo, quando nos reunimos em torno do altar e atualizamos a morte e ressurreição de Cristo, até que Ele venha. Tal celebração nos leva a viver tais exigências no acontecer e no afã de cada dia.

Em virtude do mandamento de Jesus, os cristãos não só comemoram a cada ano, a cada “primavera”, o acontecimento histórico da ceia com os discípulos, sua morte e sua ressurreição, mas também, desde nossas próprias origens, celebram a “fração do pão” ou Eucaristia, instituída por Ele, no âmbito de uma ceia ritual de Pessach, na última noite de sua vida. Sobre esse fato, que molda a vida da comunidade cristã ao longo dos séculos, restou-nos o relato histórico pormenorizado, satisfazendo-se nosso justo interesse de conhecer ou nossa curiosidade, além de ser a referência a uma ação litúrgica que recolheu e esquematizou as palavras e ações de Jesus nessa ceia. Por estas ações e estas palavras, o conteúdo do Seder (ordem, o que se deve seguir no serviço da ceia Pessach, e se denomina assim ao conjunto de ritos e costumes que regula esta ceia) judaico adquiriu um significado totalmente novo e uma dimensão sem suspeita: o significado e a dimensão que terão daí em diante as ceias que irão de celebrar os que nela crêem.

            Entretanto, ao celebrar, dentro de um âmbito litúrgico, a “fração do pão” ou Eucaristia, não nos referimos apenas à ceia da última noite, mas também aos acontecimentos que tiveram lugar poucas horas depois e culminaram com a morte de Jesus na cruz. Para esses acontecimentos é Jesus quem aponta mesmo com suas palavras, quando, ao partir o pão, fala do corpo “entregue” e, ao tomar em suas mãos o cálice de vinho, fala do “sangue derramado”. Portanto, banquete e sacrifício.

            Também nós devemos ter em conta ambas as dimensões da Páscoa, se quisermos compreender o que celebramos em cada Eucaristia. Quando nosso olhar se dirige, ao mesmo tempo, à sala da ceia e ao Calvário; quando, ao mesmo tempo, contemplamos Jesus partindo o pão com suas mãos e passando o cálice de vinho, e derramando seu sangue na cruz; quando essa Eucaristia for para nós, ao mesmo tempo, sacrifício e banquete, somente então poderemos entender o significado das palavras de Jesus: “Façam isto em memória de mim”, e o sentido de nossa presença, junto a outros, ao redor da mesa de um altar.

            Nossa Eucaristia não tem unicamente a dimensão histórica. É algo mais que pura referência ao passado ou evocação de um acontecimento distante no tempo. Esse acontecimento havemos de vivê-lo em nosso hoje, e o que ele significa deve realizar-se no agora de cada celebração. Toda a ação litúrgica é, assim, memorial da paixão de Jesus Cristo, de sua ressurreição, de sua admirável ascensão, memorial de nossa redenção, enquanto esperamos sua vinda gloriosa. A Páscoa judaica havia de ser também “memorial” (zikkarón) em homenagem a Javé, segundo diz o livro do Êxodo (12, 14) E como tal foi celebrado por Jesus.

O “memorial” caracteriza-se por evocar o fato passado, tornando-o presente em cada geração. Por isso, o mistério pascal, que recorda e realiza a libertação de outras formas de escravidão do homem, tampouco é apenas a evocação histórica da morte de Jesus e a afirmação de nossa fé em sua ressurreição, mas sim, ao mesmo tempo, é essa morte e essa ressurreição atuando hoje no seio da comunidade e do pecado que operam sobre ela. A celebração desse mistério assegura, além disso, a continuidade da ação libertadora e salvadora de Deus, por meio de Cristo, ao longo dos séculos. Por isso, o significado da Eucaristia não se esgota nem com a evocação do acontecimento pascal, nem com sua atualização; tem também uma projeção para o futuro dos amanhãs sucessivos e para o futuro indeterminado e desconhecido do retorno de Cristo. Eis a aclamação: “Anunciamos vossa morte, proclamamos vossa ressurreição. Vinde Senhor Jesus!”.

            Tudo naquele noite foi sendo relacionado com sua própria morte, tão próxima, e também com a vinda do reino de Deus que, por meio dela, iria estabelecer-se, de modo definitivo, no mundo. Nossa Páscoa, a que celebramos no “dia do Senhor” adquire, por isso, seu pleno significado quando em nosso hoje realizamos o que Jesus fez e nos mandou fazer, com a mesma intenção dele, mas projetando nosso desejo e nossa esperança quanto ao banquete escatológico, prometido por Jesus, consumação de nossa libertação e salvação.

            Se seguimos com atenção todos os passos, as ações, os gestos e as palavras de Jesus na ceia da Páscoa, ratificados depois por sua morte e ressurreição, compreenderemos as exigências que tem para os cristãos, como indivíduos e como sociedade, a celebração da Eucaristia. Essa celebração supõe que, entre os discípulos de hoje, como entre os de ontem, não podem existir discussões, intrigas ou traições para impor-se aos demais, para dominá-los, para ser os primeiros; nem pode haver, como tem ocorrido, inclusive em nossos dias, obscuras maquinações para erguer-se com o poder, político ou religioso, para chegar a ser uma personalidade ou grandes senhores como os poderosos do mundo.

            Entre os discípulos de Jesus, como expressão da autêntica liberdade conseguida dentro de nós mesmos e alcançada para todos, o vínculo de união apenas pode ser o do amor (cf. Jo 13, 34ss; 15, 12.17), um amor semelhante ao que Ele lhes tem (lavando-lhes os pés) e igual ao amor do Pai. O amor cristão ultrapassa qualquer fronteira levantada pelos homens e vai além de qualquer uma das linhas de separação que traçamos nos mapas e nos corações.

 

Abençoada Páscoa!

Pe. Pedro Alberto Kunrath* - Pucrs.

 

* Pe. Pedro Alberto Kunrath é

professor doutor da Pontifícia

Universidade Católica do Rio

Grande do Sul e pároco do

"Santuário Nossa Senhora da

Paz" (Porto Alegre).

 

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