A conquista do espaço no tempo do poder

1.      A ciência a serviço do capital, da mercadoria e do espetáculo, não é outra coisa se não o conhecimento capitalizado, fetichismo da idéia e do método, imagem alienada do pensamento humano. Pseudograndeza dos homens, seus conhecimentos passivos de uma realidade medíocre é a justificação mágica de uma raça de escravos.

2.      Faz tempo que o poder do conhecimento tem se transformado em conhecimento do poder. A ciência contemporânea, herdeira prática da religião da Idade Média cumpre – em relação com a sociedade de classes – a mesma função: compensa a estupidez cotidiana dos homens com sua eterna inteligência de especialista. Canta em cifras as grandezas do gênero humano, quando não é outra coisa que a soma organizada de suas limitações e alienações.

3.      Da mesma forma que a indústria destinada a liberar os homens do trabalho pelas máquinas, não tem feito até o presente mais que aliená-los mediante o trabalho nas máquinas, a ciência – destinada a libertá-los histórica e racionalmente da natureza – não tem feito nada a não ser aliená-los em uma sociedade irracional e anti-histórica. Mercenária do pensamento separado, a ciência trabalha para a sobrevivência, e não pode então conceber a vida mais que como uma fórmula mecânica ou moral. Assim, não concebe o homem como sujeito, nem o pensamento humano como ação, e por isso ignora a história como atividade premeditada, e faz dos homens “pacientes” de hospitais.

4.      Fundada sobre a falácia essencial de sua função, a ciência não pode fazer mais que mentir a si mesma. E seus pretensiosos mercenários têm conservado de seus sacerdotes ancestrais o gosto e a necessidade do mistério. Parte dinâmica na justificação dos estados, o corpo científico guarda zelosamente suas leis corporativas e os segredos de Machina ex Deo, que fazem deles uma seita miserável. Não há nada assombroso, por exemplo, em que os médicos – carpinteiros da força de trabalho – tenham uma escrita ilegível: é o código policial da sobrevivência monopolizada.

5.      Mas se a identificação histórica e ideológica da ciência com os poderes temporais mostra claramente que é a servidora dos estados, e não engana por tanto a ninguém, tem sido necessário esperar até agora para ver desaparecer as últimas separações entre a sociedade de classes e uma ciência que queria permanecer neutra e “ao serviço da Humanidade”. De fato, a atual impossibilidade de investigação e aplicação científica sem uns meios colossais tem posto o conhecimento, espetacularmente concentrado, em mãos do poder, e o tem dirigido para os objetivos do Estado. Hoje não há ciência que não está ao serviço da economia, do exército e da ideologia; e a ciência da ideologia mostra sua outra cara, a ideologia da ciência.

6.      O poder, que não pode tolerar um vazio, não tem perdoado jamais os territórios do além por ser terrenos vagos liberados à imaginação. Desde a origem da sociedade de classes, sempre temos posto no céu a fonte irreal do poder separado. Quando o Estado se justificava religiosamente, o céu estava incluído no tempo da religião; agora que o Estado quer justificar-se cientificamente, o céu está no espaço da ciência. De Galileu a Werner Von Braun, não é mais que uma questão de ideologia de Estado: a religião queria preservar seu tempo, e não tinha por tanto nada que fazer com o espaço. Ante a impossibilidade de prolongar seu tempo, o poder deve restaurar seu espaço sem limites.

7.      Se o transplante de coração é ainda uma miserável técnica artesanal que não faz esquecer os massacres químicos e nucleares da ciência, a “conquista do Cosmos” é a maior expressão espetacular da opressão científica. O especialista do espaço é ao pequeno doutor o que a Interpol é à polícia de bairro.

8.      O céu prometido em outro tempo pelas curas humilde a sotana (?) negra é tomada de assalto pelos astronautas de uniformes brancos. Assexuados, neutros, superburocratizados, os primeiros homens a sair da atmosfera são as vedetes de um espetáculo que flutua dia e noite sobre nossas cabeças, que pode dominar as temperaturas e as distâncias, e que nos oprime desde o alto como o povo cósmico de Deus. Exemplo de sobrevivência em seu mais alto grau, os astronautas fazem, sem pretender, a crítica da terra: condenados ao trajeto orbital – desprezível pena de morrer de frio e de fome –, aceitam obedientemente (“tecnicamente”) o tedioso e a miséria dos satélites. Habitantes de um urbanismo da necessidade em suas cabines, prisioneiros do aparato científico, são o exemplo – in vitro – de seus contemporâneos que não escapam, apesar da distância, dos desenhos do poder. Garotos-propaganda, os astronautas flutuam no espaço e saltam sobre a superfície da Lua para fazer os homens caminhar para o tempo do trabalho.

9.      E se os astronautas cristãos do Ocidente e os cosmonautas burocratas do Leste se entretêm com a metafísica e a moral laica – Gargarin “não viu Deus” e Borman rezou pela pequena Terra – é na obediência à sua “ordem de serviço” espacial onde devem encontrar a verdade de seu culto. Como no caso de Exupéry, o santo, que falou das profundidades desde uma grande altitude, mas cuja verdade tinha a tripla condição de ser militarista, patriota e idiota.

10.  A conquista do espaço forma parte da esperança planetária de um sistema econômico que, saturado de mercadorias, de poder e de espetáculo, ejacula no espaço quando chega às portas do céu derramando suas contradições terrestres. Nova América, o espaço deve servir aos Estados para suas guerras, para suas colônias: para enviar aos produtores-consumidores que se tomarão assim à liberdade de superar as limitações do planeta. Província de cumulação, o espaço está destinado a converter-se em uma acumulação de províncias, para as quais já existem leis, tratados e tribunais internacionais. Novo Yalta, a partilha do espaço mostra a incapacidade de burocratas e capitalistas para resolver, aqui na Terra, seus antagonismos e suas lutas.

11.  Mas o antigo topo revolucionário, que hoje rói as bases do sistema, destruirá as barreiras que separam a ciência do conhecimento generalizado do homem histórico. Quantas mais idéias do poder separado, mais poder das idéias separadas. A autogestão generalizada da transformação permanente do mundo pelas massas fará da ciência uma banalidade básica, e já não uma verdade de Estado.

12.  Os homens entraram no espaço para fazer do Universo o terreno lúdico da última revolta: aquela que irá contra as limitações que impõe a natureza. E, derrubados os muros que separam hoje os homens da ciência, a conquista do espaço já não será a “promoção” econômica ou militar, e sim a floração das liberdades e realizações humanas conseguidas por uma raça de deuses. Entraremos no espaço, não como empregados de uma administração astronáutica, nem como “voluntários” de um projeto de Estado, e sim como senhores sem escravos que passam inspeção em seus domínios: todo o universo em um saco para os conselhos de trabalhadores.

 

Eduardo Rothe, 1969

Artigo publicado na revista nº 12 da Internacional Situacionista, setembro de 1969.
Segunda tradução (espanhol-português) por membros do coletivo Gunh Anopetil.

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Ver também: Os Situacionistas e a automação

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