Apologia à Marginalidade: Favela e Declínio Espetacular Mercantil

 

O que se pode, com as ferramentas que dispomos hoje, mudar todo o cenário social? Certamente as técnicas e a sua má utilização pela lógica de mercado já foram descastardas do leque de uma revolução permanente. A luta contra o espetáculo – forma de comportamento ligado à passividade e aceitação das situações – desta vez fora o alvo das críticas globais. O que vimos nos telejornais brasileiros a partir do dia 12 de maio de 2006 foi simplesmente à negação do espetáculo. Com a chamada “O CRIME ATACA”, a revista televisiva Fantástico (cujo nome só reafirma a sua condição sensacionalista), além de fazer a defesa da polícia de São Paulo, ainda desviou os ataques do PCC, contra empresas privadas (bancos e ônibus coletivos) e postos policiais, para toa a sociedade paulista. Mas por que tanto medo da marginalidade?

Nos últimos tempos tem sido comum lermos em filmes e documentário (Cidade de Deus, Carandiru, Falcão) a vida dos favelados em diferentes ambiências. E com tanta chuva ONG’s nas portas da Globo e companhia, até que a publicidade da periferia criou quadros em programas e até incentivou a produção cinematográfica. No entanto o discurso continua sendo o da “inserção social”. Essa invenção burguesa que tenta esquecer da necessidade do “exército reserva de mão-de-obra” para a manutenção do capitalismo,  ignora a existência de uma sociedade em meio às favelas e periferias em geral. Inserir socialmente é dizer em outras palavras que a única sociedade é a da classe média urbana, e que todo o resto, exceto o da classe alta, está deslocada às margens. Há também os que dizem sobre inserir as minorias na sociedade, quando se esquecem que estas ditas minorias são em realidade são a completa maioria de toda a sociedade mundial.

O que há de tão duro na marginalidade que choca tanto o capitalismo? Desde muito cedo este sistema de relações sociais aprendeu a comprar seus inimigos e pô-los a seu serviço. E neste caso o Estado foi um dos melhores meios. A marginalidade então é a condição insuportável de um capitalismo que quer ser total. Está a margem do sistema é, sobretudo, não compactuar, conscientemente ou não, com ele. A falta de um RG (que por aqui chamamos de identidade), de um telefone fixo, e mesmo de uma conta em banco não são os fatores essenciais de uma marginalidade, mas características de sujeitos que muitas vezes só farão parte do Estado depois de mortos.

Aqueles intelectuais oriundos dos tempos da ditadura militar que creram que sua sistematicidade epistêmica e suas leituras de Marx poderiam revolucionar a sociedade se viram frustrados diante da democracia. Os estudantes, que quando compram algo compram livros e não armas, também se vêem muito pequeno para enfrentar tamanho inimigo. O proletariado debaixo das asas dos sindicatos hoje se preocupa mais com míseros salários e negociações. A luta contra a passividade se viu em indivíduos que de tão esquecidos romperam quadros conceituais de nossa vã sociedade.

O PCC longe de ser o instrumento revolucionário atual, é junto com todos os atores sociais marginais indivíduos que de diferentes métodos empenham forças contra a passividade. A leitura pobre de nossos vizinhos e demente dos jornalistas que criticam o tráfico de drogas aqui e acolá ignora que ele só é possível pelos instrumentos legais da sociedade mercantil – exportação em massa de milhões de litros de acetona legais para a Bolívia. Nossa moral tão próxima da burguesa prefere ver a favela com os mesmos olhos que os republicanos de outrora viram Canudos, e que os jornalistas cariocas viram o cangaço. A leitura possível e o princípio de luta devem se unir contra o espetacular, enxergando nestes ataques nada mais do que resistência. Afinal de contas se esta batalha fosse apenas por mercado de drogas, que diabos teriam despendido esforços para queimar bancos e ônibus privados?

A apologia que podemos, e devemos fazer à marginalidade se unirão a de tantos outros que se uniram à negação de todo um sistema. As considerações sobre de Hakim Bey sobre a  TAZ (Zona Autônoma Temporária) como um lugar em meio ao sistema, mas invisível a ele, se unem ao mítico herói imaginista do Projeto Luther Blissett, onde todos podem ser vândalos, criminosos, artistas e se identificarem como homônimos do Projeto. Todas essas “aberrações” pós-modernas e de superação cultural sempre preferiram as derivas nas periferias que as inventudes dos novos turismos. Ser marginal é definir-se muito bem em que lado está da luta de classes e quais suas disposições para se vender ao Estado. Da favela, que sempre julgamos ignorantes e que só precisam de educação, se constrói uma das maiores lições que os resistentes devem aprender no âmbito da cultura e da política.

Se voltarmos a 1955 na cidade de Los Angeles, exatamente no bairro de Watts, deixaremos de sentir-nos só. Ali humanos chamados de “negros favelados” tiveram como estopim uma repressão policial, que fora suficiente para iniciar saques e uma verdadeira guerrilha urbana. Diferente de outros movimentos, os humanos de Watts pilharam todas as mercadorias – com exceção de armas, munições, medicamentos, comida e água – nas periferias do bairro e atearam fogo. Negaram o espetáculo e a mercadoria. A disposição era de guerra ao mercantil e o fizeram bem. A resistência durou dias, e diferente do que se dizia nos meios de comunicação, a população estava bem consciente do que estavam fazendo.

“A favela é um problema social”. O canto que ecoa nos discos comprados por toda a burguesia revela o quanto à favela é um problema, mas é um problema apenas para o centro (mercado). A favela é espaço construído sem a intervenção direta do Estado, feita pela força e dedicação de indivíduos que constroem um lugar que pode ser tido como pobre, porém próprio. Neste universo de liberdade e luta há pouco espaço para a contemplação do original, tudo é desviado – no sentido defendido por  Mustapha Khayati em seu artigo “As Palavras Cativas” –, e se ganha um novo sentido a serviço de uma realidade a se criar. Diferente dos play-boys e patricinhas que ganham shoppings a conversar em inglês para se diferenciar dos que não sabem outro idioma, a linguagem na favela é inteiramente construída para fins pragmáticos. O celular que não é para chamar atenção, mas para organizar ataques e o tráfico, jamais fora lançado no mercado com esta intenção. Ruas e guetos construídos pelos moradores revelam um simbolismo em que a psicogeografia do ambiente mostra signos de liberdade, sendo a plástica da favela o principal jogo da luta contra os inimigos: uma guerrilha que supera os limites físicos. “A favela é um problema social”.

 

Ralidjha Isabeli, 15 de maio de 2006

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