O VAMPIRO
André Koehne
da Academia Caetiteense de Letras
VOLTAR
Ao contrário do que imagina a ficção, os vampiros existem, sim. Estão nos lugares menos suspeitos, nas pessoas que menos desconfiamos. São tantos que um estudioso seria forçado a admitir que as suas categorias chegam aos milhares, tantas quantas forem as emoções humanas.
  Porque, e isto é o que desconhecemos, não há apenas sangue de um tipo. Não me refiro aqui às classificações da vulgar ciência, com seus tipos sangüíneos, fatores rhesus, ou quejandas, e sim a outros
tipos de sangue almejados por seres nada mitológicos que os sugam, absorvem, vivem e sobrevivem deste alimento que exaure as suas vítimas.
  Deolindo era um vampiro. Desde muito novo identificou esta sua vocação. No princípio era meio inconsciente e inconseqüente, mas depois foi que ele notou os resultados, e passou a cercar sua comida, a seduzi-la, para então finalmente dar o golpe - felizmente não mortal - fazendo com que pudesse finalmente absorver dela aquilo de que tanto precisava - e, agora infelizmente, Deolindo passara a depender da estranha nutrição.
  Deolindo vampirizava a piedade alheia. Dependia disto, como o cocainômano visceralmente necessita do alcalóide. Precisava tanto deste sangue alheio que sua vida era uma sucessão de insucessos que serviam para que os demais o socorressem - não porque ele era um desgraçado da sorte, mas porque ele desgraçava a si mesmo, para então conquistar a simpatia e, no golpe final, a
piedade.
  Conheci nosso vampiro quando ainda era muito novo. Naquele tempo eu não entendia as nuanças psicológicas do personagem; sequer era capaz de me defender. Deolindo foi logo me dizendo como era um infeliz, como estava em dificuldades, e desfiou um rosário de queixas, como apenas os vampiros sabem fazer. Foi então que, desviando de assunto, falou-me de um amigo que muito o ajudara. Era um sujeito muito bom, uma alma caridosa, dessas que apenas o episódio do bom samaritano podem espelhar.
  Eu sempre fui muito reticente, mesmo que apenas intuitivamente. Deolindo finalmente disse ter ouvido falar que eu era detentor da coleção de livros de Monteiro Lobato. Emendou que o seu amigo tinha uma linda filhinha que, coitadinha, não conhecia a obra do famoso literato e seu Sítio do Pica-Pau (naquele tempo a TV ainda não fizera o desmanche da obra Lobatiana).
  Então, numa lógica conclusão, Deolindo me procurara para, pensando no amigo que tanto o auxiliara, pedir emprestada minha coleção. Ora, eu não era biblioteca, muito menos as bibliotecas
emprestam coleções. Minha negativa foi recebida com surpreendente naturalidade...
  No dia seguinte alguns conhecidos passaram a me olhar arrevesadamente. Alguns foram até grosseiros comigo, e daí em diante começou uma verdadeira chuva de cobranças. Os amigos diziam que eu era um usurário, um fominha, o próprio mão-de-vaca personalizado. A coisa tornou-se insuportável quando os meus parentes se voltaram contra mim: "Como você é capaz?! O que custa emprestar sua coleção?! Como você é ruim!"
  Era o que ouvia. Tentava contra-argumentar, numa tentativa vã de explicar que não era possível emprestar uma coleção. Mas, quando os juízes já nos condenaram previamente, não há defesa possível. Viver com aquele peso era inviável. Emprestei a minha coleção, e Deolindo nem agradeceu - era quase como se eu lhe estivesse devendo um favor (e na verdade ele acreditava que era isso mesmo). Pegou os livros e sumiu.
  Como eu já antecipadamente adivinhara, ele
presenteara o tal amigo com a coleção, acredito que em pagamento ou em troca de algo. Embora tendo me afastado dele, uma vez constatada a falácia do embusteiro sanguessuga, passei a acompanhar seus passos. Era como se me tornasse um caça-vampiros sem saber. E o processo ia crescendo, paulatinamente. Volta e meia nosso conhecido perdia o emprego, e saía à caça de piedosas vítimas. Chorava, pedia, era sempre empréstimo, era sempre sem retorno.
  Havia períodos de abstenção, naquele tempo. Quando trabalhava, Deolindo raramente usava as suas
habilidades, a não ser para manter-se treinado. Recordo uma vez em que fizera um trabalho gráfico e meu cliente barganhava comigo o preço. Por infelicidade minha, alguém da equipe havia erroneamente entregue o projeto sem que o pagamento tivesse sido feito. Eu havia pesquisado por dois dias seguidos, aperfeiçoado o trabalho, tendo gasto muitas horas naquilo.
  Soube que o cliente estaria num churrasco e fui atrás dele. No meio da barganha, em que o sujeito regateava no preço, surge o Deolindo. O cliente então resolve pedir sua opinião, explicando que lhe tinha feito um reles
desenhozinho. Deolindo então me saiu com esta:
  _ Ora, desenhar é um dom, que Deus dá de graça. A gente tem de dar de graça aquilo que recebe de graça!
  Com gargalhadas os dois saíram, enquanto eu fiquei estatelado, com cara de ovo, sofreando a raiva... Mais uma vez o embusteiro me passava a perna, me lesava, sem que pudesse reagir. A falta de um recibo nos leva a isto.
  Pensei que me fosse possível auxiliar numa mudança de caráter do vampiro. Engendrei um plano para que Deolindo pudesse conseguir uma estabilidade econômica, achando eu que assim ele se tornasse menos afeiçoado a conquistar o alheio exibindo sua triste sina. Foi o que fiz, para minha decepção. Não só ele acreditava que o benemérito era um espertalhão maior que ele, como suas necessidades aumentaram em proporção geométrica. Suas vítimas eram os parentes, muito raramente os amigos (talvez aí a razão pela qual as pessoas sempre tomavam-lhe o partido, no jogo).
  Mantendo-me em cautelar distância do nefasto sugador, pude ver que aos poucos suas artimanhas surtiam menos resultados. As pessoas pareciam se cansar, e reagiam; foi talvez num desses momentos em que não mais lhe dedicavam a piedade socorrista que Deolindo adoeceu. A comoção que provocou foi enorme, choveram auxílios - e Deolindo sarou da gripe.
   Talvez um dia nosso amigo descubra que o Sol pode lhe destruir. O Sol da verdade, que rompe as desmedidas ambições, o orgulho imensurável. Sol de uma verdade que queima todos os males. Talvez, neste dia, Deolindo descubra o mal que semeou, sem proveito algum, senão a aversão daqueles que lhe eram mais caros. Rompendo o imensurável egoísmo, teria quiçá uma luz na alma eternamente sequiosa, matando-lhe o vampiro e fazendo viver o homem honesto que em todos reside, muitas vezes suplantado por uma destas falácias viciantes...
  A nós, distantes, mas ao mesmo tempo tão próximos deste drama em que o próprio vampiro é sua maior vítima, compete apenas contrariar os apiedados de Deolindo que encontramos pelo caminho. As pessoas têm a pena como um sentimento positivo - e não nos compreendem quando dizemos para não senti-la, não para com o Deolindo. Acabam achando que temos o coração duro. Talvez. Mas o fato é que a cruz fechou-nos na segurança de quem não dará crédito a quem não o merece; e o alho da desconfiança perene ainda o espanta e mantém afastado...

  ,,,Até Deolindo descobrir que eu quero meu sangue de volta.
Hosted by www.Geocities.ws

1