PAVIO CURTO
PEQUENO REGISTRO DA MEMÓRIA DE CAETITÉ
  É certo que toda cidade tem seus loucos. Em Caetité houve vários. Mas a maioria se perdeu com o tempo, esquecidos na memória dos que já se foram. Para não falar do folclore corrente no auge da ditadura militar, nos anos 70, que pregava serem aqueles que muito estudam não simplesmente inteligentes, mas pessoas  fatalmente condena-das à alienação mental.
  Poderíamos recordar os doudos diplomados,que foram aprovados em concursos públicos, mas talvez melindrássemos pessoas gratas.
  Essa gente, porém, teve formação. Dizem que o rico é excêntrico, enquanto o pobre, este é maluco mesmo. Foram eles que estiveram nas ruas calçadas de pedra, num tempo em que o tamanho da urbe estava restrito a umas poucas e estreitas vias, e Caetité mal recebera o seu Hospital e Maternidade. Estamos falando dos anos 50 e 60 do século XX.
  Vamos encontrar ali uma figura ímpar que inda hoje povoa as lembranças de quantos o conheceram: ZÉ DAS GUINCHAS.
  Guincha, segundo o dicionário, é uma palavra que no Rio Grande do Sul significa poldra, égua... segundo os lexicógrafos, deriva do espanhol falado na Argentina. Como já registrei alhures, é grande a semelhança dos vocábulos sertanejos com o espanhol e com o português arcaico - e apenas isto justifica o uso de guincha no sertão baiano, tão distante dos sulistas gaúchos. Sim, e por que razão o nosso Zé haveria de ser das Guinchas? Perguntei aqui, ali, e acolá, sem sucesso. Um dia, sem muita pretensão, finalmente forcei a memória de Anísio Ledo, o Banjo, e ele me saiu com a provável razão: "diziam que ele foi apanhado certa vez com uma égua...", mas é incrível ver que as peças se encaixavam... zoofilicamente...
  Dele ficaram casos interessantes, que cumpre registrar. Quem era? Não importa. Fato é que jamais houve em nossas plagas um ser humano com uma paciência tão pequena, que perdesse a calma com tamanha rapidez e facilidade.
  Sua tolerância era tão pouca que jamais suportava uma segunda pergunta sobre a mesma coisa. Ser louco já é tarefa nem um pouco fácil; exercer tal oficio numa terra miúda, num tempo em que, só pra ilustrar, o telefone existia para muito poucos, e apenas em rede local (para não dizer que a televisão só chegaria muitos anos depois), devia ser um verdadeiro pasto aos espectadores que, no fim das contas, eram toda a população.
PRIMEIRO CASO: contam que Zé das Guinchas certa feita andava pelo mato quando se viu às voltas com os terrivelmente finos e longos espinhos de quiabento. Ao ser furado uma segunda vez abraçou a planta espicaçante e gritou para ela:
_Quer furar, fura, miserável!
SEGUNDO EPISÓDIO: Zé quebrou o braço, foi ao hospital e recebeu o indefectível gesso. Veio descendo a Avenida Santana com a tipóia sustentando a fratura. Ao vê-lo assim um transeunte perguntou: "Quebrou o braço, Zé?", ao que nosso amigo respondeu afirmativamente. Descendo mais um pouco, outro repete a mesmíssima questão, o que desencadeou a resposta: tirou o braço quebrado da tipóia, ergueu-o sobre a cabeça, e desceu a avenida correndo e gritando para que todos ouvissem:
_Eu quebrei o braço! Eu quebrei o braço! Eu quebrei o braço!
TERCEIRA HISTÓRIA: nosso querido Dininho, filho de D. Virinha, certa feita lhe pagou um cafezinho no antigo bar de Ciro Moreira, que naquele tempo ficava não na casa de Anísio Teixeira, mas no Teatro Centenário. Zé aceitou, e Dininho falou: "Tá bom de açúcar, Zé?". Resultado:
_Se soubesse que ia ter essa perguntação não tinha aceitado essa porcaria!
QUARTO REGISTRO: os médicos do Hospital se cotizaram para dar uns trocados ao Zé. Mas eram trocados mesmo, dinheiro em papel de pequeno valor nos tempos em que a moeda ainda eram os antigos Réis.
Chamaram então o calmo beneficiário, e foram debulhando as notas, que compunham um grande maço... Dizem que nem louco rasga papel-moeda, mas aquela agonia era demais para Guinchas: maior até que a precisão em obter a caridade... recebeu algumas notas e, vendo que elas não paravam de aparecer, estourou:
_Pára! Pára com tanto dinheiro!
CONCLUSÃO:  este homem passou por nosso chão. Deixou-nos há muitos anos, e estaria esquecido por completo em pouco tempo.
Ousou ser louco em Caetité, o paciente Zé das Guinchas, um belo nome para figura tão peculiar. Contam que, ao lhe argüirem se tinha pai, respondia na bucha:
_ E NEM MÃE! 
Fim de papo!
André Koehne
da Academia Caetiteense de Letras
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