A Lenda do Pintor Deslumbrado
  José Manoel veio do campo para o Reino muito novo, e logo se habilitou como aprendiz do afamado atelier de Jean Silva, pintor conceituado na Corte. Muito atencioso, o garoto logo dominou as artes da reprodução pictórica e, quando seu mestre faleceu, não teve dificuldades para abrir seu próprio estúdio, logo procurado pelos antigos clientes do extinto artista.
   Naqueles tempos bicudos ter uma profissão abalizada pelos cômpares era muito importante, e a rivalidade existente no meio era muito grande, apesar do forte corporativismo. José Manoel tinha dificuldades para pagar os alugueres do seu ponto comercial, apesar de este não ser muito bom. Assim, almejando ampliar seu negócio, viu como grande oportunidade a morte do Rei e a disputa pela sucessão do trono: era um artista e ofereceria seus préstimos ao Senhor Feudal do reino vizinho que por sua vez pleiteava, em razão de longínquo parentesco, herdar as terras lindeiras.
   Após os primeiros contatos, finalmente nosso artífice do pincel partiu em viagem para o país vizinho, onde deveria, já desde o caminho, ir registrando as paisagens, os progressos e conquistas do Senhor Feudal, pois deveria expô-los quando voltasse: a intenção era mostrar ao povo das terras almejadas por este como seu governo era melhor que tudo e todos.
   Assim, mal colocou os pés no estrangeiro local, e um assessor lhe assomou como guia. De fato, seguiram por estradas e caminhos indicados pelo assecla e, quando foi até o castelo do Senhor Feudal, José Manoel ficou efetivamente fascinado com a riqueza, o brilho, o fausto. Logo no primeiro dia retratou o Senhor ao lado de seus ministros, e esboçou mais outras tantas telas registrando os grandes feitos daquele homem que, já estava convencido, seria o melhor rei que seu país poderia almejar...
   Após esta visita, carregou para a terra natal levas de pinturas, e fez com elas verdadeira apologia do feudo vizinho, de como ali imperava o progresso e a felicidade...
   A câmara dos burgos, reunida com seus representantes, designou então um espião para que, incógnito, verificasse a real situação no feudo do pretenso herdeiro real. Dito e feito: disfarçado de andarilho, o espia tomou os caminhos mais diversos e, após apenas dois dias, retornou com seu relatório. Os representantes da Corte, surpresos com a rapidez, fizeram uma sessão especial para escutar os informes obtidos. Todos curiosos para ripostar a crucial questão:
era verdade o que mostravam os quadros do pintor José Manoel?
   _Senhores _ começou o informante _serei breve no meu relato. Tomei muitas estradas abandonadas, vi um povo ignorante, faminto, sem escolas, sem esperança mas, sobretudo, vi um povo oprimido por um senhor tirânico. Aquele, mesmo nobre, que não lhe fizer as vontades, terá morte certa. De fato, os retratos são verdadeiros, há tudo quanto ali se vê. Entretanto, não mostram o sangue sobre o qual foi conseguido tanto fausto e luxo. Não contam que o feudo vizinho não produz sequer um milésimo do tesouro ostentado pelo rico Senhor Feudal, muito menos que esta riqueza é oriunda do saque aos povos vizinhos. Meus senhores, não há milagre ali, apenas o pintor que ficou deslumbrado...

   A assembléia inteira riu-se. Naquela mesma noite foi escolhido um substituto ao velho rei falecido, e o pobre pintor José Manoel... bom, este continua a achar o Senhor Feudal o melhor senhor do mundo, em pleno século XXI...
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