Tinha vestido o melhor fato,
aquele de lapelas de veludo que guardava para os acontecimentos
com A grande. Acontecimentos que, infelizmente, eram cada vez mais
raros. Eram cada vez em menor número as festas para as quais
era convidado. E aquelas, poucas, para as quais recebia em casa
um bilhetinho de convite, ou acabava por esquecê-las, ou ficavam
tão longe que ele, por seu turno, escrevia um bilhetinho
em que agradecia o convite e desculpava a sua ausência. O
pior é que acabava por se esquecer de os botar no correio
mas pronto, sobrava a intenção... e os bilhetes, que
se amontoavam num poeirento recanto do escritório. A verdade
é que já não tinha forças nem disposição
para viajar para o estrangeiro. E era cada vez mais perigoso, agora
o tráfego aéreo era tão intenso que ao mínimo
descuido, trás! uma colisão... e ele já não
tinha saúde para estas coisas. O problema, ou parte do problema,
estava em que a família se dispersara. Uns tinham regressado
às origens, como afirmavam e, se por lá se davam mal,
o orgulho impedia-os de o reconhecerem e muito menos de voltarem
para trás. Havia o caso do primo Hipólyto, que agrupara
a mulher, as amantes e a extensa prole e se pusera a caminho dos
bosques do norte europeu... para regressar volvidas escassas semanas.
Com a desculpa tosca de que não tinham arranjado casa em
condições. Então e o primo Malaquyas? Esse,
com a mania dos arbustos genealógicos, ou lá o que
era, tinha empreendido demorada viagem pelas terras da Hungria.
E isso para descobrir, erradamente, que todos eles descendiam de:
a) um morcego megalómano ou: b) um lobo mongolóide
ou: c) uma escada de corda. Estava agora a soro num hospital qualquer,
dedicando-se à leitura de manuais de geometria descritiva
nos momentos de lucidez.
E quanto à Marylina? Dera em vestir de branco e recusava-se
a pintar o cabelo de negro, como manda a tradição.
Mostrava uma clara tendência por iates, aviões privados,
carros caros e casas de luxo, acabando por entrar na vida política...
um escândalo para a família !
Quanto a ele, Abelardo Drak Cool, como cidadão pacato que
era, pois bem, ficara em casa. No sentido mais literal do termo:
vivia ainda entre as paredes que o tinham visto nascer. A casa não
era já pálida sombra sequer do que fora no tempo do
seu apogeu, mas os seus trezentos e vinte e quatro anos não
eram muito exigentes: o caixão, a cripta arejada e uns quantos
ratos e coelhos vadios para saciar o apetite, mais não pedia.
Ainda fora crédulo ao ponto de julgar que as novas gerações,
os filhos, por exemplo, ou até os sobrinhos, sei lá,
se dariam ao trabalho de remodelar o velho solar, mas qual quê!
Eles queriam era discotecas, roupas de marca e fotografias no papel
cuchê da imprensa cor de rosa. Eram uns imprestáveis!
Mas ele, ele lá ia mantendo, a duras penas, valha a verdade,
a tradição. Continuava a festejar o Halloween, para
citar só um exemplo, muito embora as grandiosas festas de
antanho se achassem reduzidas a pequena reunião íntima.
E uma vez por mês, a fim de não perder a prática,
transformava-se, a custo, em morcego. Dava um voozinho de reconhecimento,
que no geral acabava em cabeçada contra um candeeiro público,
após o que se seguia um coma profundo cuja duração
era variável. Às vezes, por desfastio e a fim de divertir
os sobrinhos-netos, deixava-se tocar pelos raios do sol nascente,
transformando-se em montinho de leves cinzas. Aquilo é que
os catraios se riam e batiam palmas! Depois eram só umas
horinhas na plácida escuridão do sarcófago
egípcio (prenda de aniversário da avó Gwendolina,
há quantos anos!) para ficar como novo. Também, apesar
do avançado da idade, treinava a sua resistência aos
malefícios do alho, ingerindo umas doutas capsulazinhas com
extracto do dito, de manhã e à noite.
Mas desta vez estava a levar a coisa mais a sério; esmerara-se:
não faltava o lacinho a preceito, em vez da gravata de que
nunca gostara e, apesar da devastação produzida por
inúmeras gerações de traças, o fato
estava ainda assaz apresentável. Já não diria
o mesmo dos sapatos, cujos saltos cambados e o verniz estalado denunciavam
mais de dois séculos de uso diário. Mas enfim, pormenores.
Aliás, o que contava não era a indumentária,
mas sim o estado de espírito. E esse não podia ser
mais positivo
A ocasião assim o justificava. Havia dias (perdão:
noites) que rondava a loja de aluguer de vídeos: eram quase
onze horas, ela devia estar prestes a sair. Por ela, entenda-se:
uma rapariga alta, razoavelmente bonita, de ar saudável:
as faces rosadas assim sugeriam. Ah, e com um bónus: não
fumadora! Sim senhor, hoje é que era, já estava tudo
arqui-planeado, agora era só deixar-se ficar, cuidadosamente
dissimulado na sombra da entrada do prédio onde ela geralmente
esperava o namorado. Era hoje que ia quebrar a sua triste dieta,
dar rédea solta aos seus instintos, libertar a sua verdadeira
natureza, saborear o elixir da vida... em palavras mais prosaicas:
ia espetar os caninos no pescoço de alguém: assim
que apanhasse a rapariga a jeit... ah, ali vinha ela, passo decidido
a afastar o fresco da noite. Envolveu-se ainda mais na negra capa,
vestimenta obrigatória para qualquer vampiro que se preze,
via-a aproximar-se, todos os seus sentidos estavam alerta, o coração
a pulsar, desmesurado... e os olhos a lacrimejar de súbito,
protestando contra uma qualquer impureza que se alojara numa vista
e estava a interferir com as lentes de contacto. Esfregou e abriu
os olhos. Ali mesmo, a centímetros dele, achava-se agora
aquele pescoço tenro. Reprimiu uma gargalhada de triunfo
e descerrou os maxilares. Milímetro a milímetro o
seu corpo foi-se felinamente aproximando do da jovem. Susteve a
respiração: era importante que a vítima não
desse por nada, era uma questão de prestígio pessoal
e além disso uma descarga de adrenalina transtornaria o doce
sabor do sangue fresco. Chegara o momento! Sentia o calor do corpo
da sua presa, aspirava-lhe o perfume do cabelo, distinguia-lhe o
pulsar de uma veia no pescoço... abriu a boca o mais possível...
e tornou a fechá-la, atónito. Raios partam a falta
de memória! Tinha-se esquecido da dentadura.
|