O quarto era amplo e tinha
grandes janelas. Numa das paredes havia uma estante com
livros e espalhadas por todo o lado havia caixas cheias
de brinquedos, carrinhos, aviões, bonecos de peluche...
Frente à janela principal estava uma secretária
com um computador. E, pendurado na parede fronteira à
cama, estava um quadro. Não era um grande quadro.
A moldura era de madeira dourada e o rapazinho lembrava-se
de ter visto aquele quadro toda a sua vida - por outras
palavras, desde que era bebé que aquele quadro
ali estava.
Ele contemplava-o antes de se deitar e de manhãzinha
ao acordar. Representava uma bela casa com fumo a sair
pela chaminé e, lá longe, à distância,
uma amável cidadezinha.
Fosse porque razão fosse, ultimamente o rapazinho
olhava para a pintura com crescente atenção.
Desta forma descobriu uma série de pormenores engraçados...
e as mudanças que se operavam na imagem. Em primeiro
lugar, notou a mudança das estações:
como os flocos de neve de novembro cobriam timidamente
o chão, como o céu se tornava cinzento e,
no dia seguinte, o rapazinho via da sua janela como o
mundo estava coberto de branco... e o mesmo tinha acontecido
na paisagem do quadro. E, se ele se aproximasse, poderia
notar, na recém-caída neve em frente da
casinha, uma fila de pegadas...
Curiosamente, ele não se sentia nem um pouquinho
assustado! Mas compreendeu que aquele era um segredo que
não queria partilhar com ninguém - nem mesmo
com a mãe. E decidiu fazer umas quantas investigações:
queria saber um pouco mais sobre a pintura a óleo
que estava na parede: quem o teria pintado? Quem o teria
comprado? E porquê o teria posto no seu quarto?
Ninguém parecia capaz de responder às duas
primeiras perguntas. A avó parecia recordar-se
de o ter encontrado no seu próprio sótão...
ou seria outro quadro? Sim, era outro, o de um castelo
junto de um lago. Quanto ao motivo pelo qual tinha sido
colocado no seu quarto... bem, simplesmente tinha sido
posto lá. Parecera apropriado, afinal de contas
era uma bela pintura, uma bela casa com uma bela cidadezinha
em pano de fundo. Se se olhasse bem de perto poderia ver-se,
na cidade, a igreja, o banco principal, carros... mas
ninguém se apercebera disso. Era o seu segredo.
Por isso todos os dia ele observava o quadro sabendo que
não se tratava de mera pintura a óleo sobre
tela... era uma espécie de janela para um outro
mundo!
O Inverno chegou e foi-se embora. A Primavera anunciou-se
com céu azul e verdes rebentos nas árvores.
Lá longe, nas cercanias da cidadezinha, o lago
usado para patinagem sobre o gelo estava agora polvilhado
de pequenos barcos.
O tempo passava e o rapazinho continuava a estar atento
ao quadro... parecia que fazia uma descoberta cada dia.
Ele tinha a certeza de que a casinha era habitada... para
começar, saía fumo pela chaminé.
E seria capaz de jurar que tinha notado a suave luz das
lâmpadas da árvore de Natal, no passado Dezembro.
E como se poderia explicar, entre outras coisas, o jardim
cuidadosamente tratado? E a antena que se alçava
no telhado? E ele era capaz de jurar que, um dia, ouviu
mesmo o ladrar longínquo de um cão... mas
isto começava realmente a ser de mais: agora não
se limitava a ver coisas, também as ouvia!
Inesperadamente, o problema surgiu à mesa; ele
não tinha vontade nenhuma de provar o guisado.
Pensava comer um pouco de pão com manteiga e compota,
beber um copo de leite e depois ir para o quarto, a fim
de terminar o trabalho de casa de matemática. Mas
a mãe tinha outra opinião:
-Há aqui qualquer coisa que não está
bem. Encontrei ontem a tua professora no supermercado
e ela disse-me que não prestavas nenhuma atenção
às aulas... até me perguntou se estavas
doente. Realmente, não pareces o mesmo...estás
sempre pálido, cansado, nunca mais brincaste com
os teus amigos, fechas-te no teu quarto...
Nesta altura o pai disse:
-Acho que a tua mãe tem razão, sabes? Estás
mudado...
-Talvez seja apenas cansaço - alvitrou a mãe
- Sentes-te cansado, é?
-Parece-me que não é bem isso - continuou
o pai - É como se ele estivesse obcecado com alguma
coisa... Diz-me, filho, há alguma coisa que te
preocupe? Anda alguém a assustar-te? Podes contar-me,
não tenhas medo...
O rapazinho manteve os olhos fitos no prato. E muito baixinho
disse que não se passava nada de errado com ele.
-Se calhar está nervoso por causa dos exames...
- sussurrou a mãe. E a hipótese pareceu
sossegar o pai. Também sossegou o rapazinho...
desde que os pais não soubessem do seu segredo...
ele temia que, um dia, os pais viessem a descobrir o que
se passava. E o que se passava era que ele realmente estava
obcecado pelo quadro. Costumava deixar aceso o candeeirozinho
ao lado da cama e ficava a olhar para o quadro até
que os olhos se fechavam de pura exaustão. No dia
seguinte examinava-o, a fim de ver se havia alguma alteração
e depois da escola não brincava com ninguém,
corria para casa, bebia um apressado copo de leite e dirigia-se
para o quarto na esperança de alguma minúscula
alteração que talvez pudesse dar-lhe a chave
daquele enigma... pois agora, meses após ter reparado
nas primeiras mudanças (seria que sempre tinha
havido mudanças, e ele é que não
dava por elas?) ele estava convencido de que havia um
mistério por trás daquilo tudo, e que ele
nunca mais teria paz nem seria o rapazinho feliz que antes
fora -gostando da escola, fazendo os deveres, jogando
à bola- enquanto não descobrisse de que
se tratava.
Uma solução seria tirar o quadro do quarto
e pô-lo noutro lado qualquer, por exemplo no hall.
Chegou a materializar o pensamento e pendurou o quadro
perto da porta de entrada, mas por pouco tempo. Não
conseguiu suportar o enorme vazio que pareceu encher o
quarto. Paralelamente sentiu-se inseguro e pouco à-vontade.
E estranhamente sozinho. Por isso voltou a colocá-lo
no lugar habitual, onde aquele já tinha deixado
uma área mais clara, marcando o sítio onde
estivera pendurado durante tantos anos.
Aconteceu cerca de uma semana depois
daquele jantar durante o qual os pais se mostraram preocupados
com ele e com o seu estranho comportamento. Sentia-se
triste. Na realidade, cada vez se sentia mais triste
e mais sozinho. E frustrado. Mal saía do quarto:
apenas para o que era absolutamente essencial, por exemplo
comer e ir à escola. Durante o resto do tempo
ele limitava-se a fitar o quadro, às vezes com
tanta insistência que os seus olhos ficavam a
arder. E ainda não tinha sido capaz de descobrir
nada. Era irritante. Sentia-se tão desesperado
que até atirava coisas contra o quadro. Outras
vezes sentia vontade de o destruir, de cortá-lo
aos bocados ou até de o queimar. E teve medo
de si próprio, medo de ser capaz de tamanha violência.
Era uma nova imagem da sua pessoa... decidiu que necessitava
de falar com alguém. Talvez com o pai? Mas o
pai estava sempre tão ocupado que mal o ouviria...
Talvez a mãe. Mas a mãe, ele bem o sabia,
era uma pessoa prática, que resolveria o assunto
com alguma decisão drástica, como livrar-se
do quadro. E o mero pensamento de não tornar
a vê-lo encheu o rapazinho de uma intolerável
tristeza.
Também o facto de nunca vir a saber o que estava
por detrás daquele quadro o frustrava. Parecia
um beco sem saída... e naquele dia ele sentia-se
bastante vulnerável. Tinha reparado que, na escola,
ninguém lhe fazia companhia durante a hora do
almoço; já nenhum menino o convidava para
brincar... na verdade, já ninguém sequer
lhe dirigia a palavra. E agora que pensava no assunto
lembrou-se que o aniversário do Joaquim tinha
sido duas semanas atrás. O Joaquim era o seu
melhor amigo... bem, o seu melhor amigo nem sequer o
tinha convidado para a festa!... por outro lado, ele
tinha-se esquecido por completo e nem sequer lhe telefonara
a dar os parabéns... parecia que toda a gente
o evitava. Até os pais lhe pareciam distantes...
Bernardo, o rapazinho, olhava para o quadro desejando
o impossível: oh, se ao menos ele pudesse, nem
que fosse só uma vez, mergulhar naquele pacífico
e estranho mundo... apenas para ver quem vivia naquela
casa, para poder olhar para o mundo de dentro daquela
casa... será que lá vivia um menino como
ele, um menino que, no seu quarto, tivesse na parede
um quadro representando a casa do Bernardo? "Stop!",
ordenou o Bernardo aos seus próprios pensamentos.
"Devo estar a ficar louco!"
...e de repente, tão de repente que ele nem teve
tempo para pensar, a casa do quadro erguia-se à
sua frente. Em carne e osso. Perdão: em madeira
e tijolo. A casa. Uma autêntica casa, com um jardim
a rodeá-la e o portão de madeira que ele
observara tantas vezes. Tudo ali estava, tão
real quanto pode ser a realidade, em frente dele. Como
se caminhasse num sonho, aproximou-se da casa. Nisto
a porta abriu-se e um rapazinho que ostentava um largo
sorriso numa cara sardenta disse-lhe:
"Olá! Entra! A mamã fez um bolo de
chocolate para nós. Entra e vem lavar as mãos
antes de irmos para a mesa. E depois temos a tarde toda
para brincar!
Nessa noite, quando a mãe do Bernardo o chamou
para o jantar, o rapazinho sentou-se à mesa com
uma cara feliz e disse "não, obrigado"
quando ela lhe perguntou se queria mais frango. Ainda
estava cheio de bolo de chocolate!
|
|