Textos



Página dedicada aos textos produzidos pelos médicos residentes da Santa Casa de Misericórdia. Nela você poderá conferir crônicas, narrações e dissertações sobre experiência de vida, vivência médica, desabafos ou qualquer outra manifestação que seja pertinente à realidade do residente.

O jornal da A.M.R. terá neste espaço algumas de suas matérias mais importantes e relevantes. Escreva seu texto!



"17 Anos em 65 Minutos    (Dr. Anfremon D'Amazonas - Residente UTI)

Na sexta-feira morreu a Aline...e eu preciso falar sobre isso:

Aline era uma menina de 17 anos que teve o azar e a infelicidade de desenvolver uma cardiopatia grave e relativamente rara, relacionada ao trabalho de parto, doença sobre a qual sabemos muito pouco e fornecemos apenas tratamento de suporte.

Apenas para se ter uma idéia, o coração de Aline era capaz de bombear apenas 20% do sangue recebido (o normal é acima de 55%)

Nos seus quase 45 dias de internação em UTI teve muitos altos e baixos...

Apesar de ser mãe aos 17 anos, Aline era na verdade uma grande criança que, oriunda de família de baixa renda e com o problema da gravidez na adolescência foi forçada a amadurecer precocemente. No entanto, para ela, não existiam doutores ou enfermeiros, ela conhecia todos pelo nome e nos tratava com se fôssemos seus colegas de escola.

Lembro da primeira vez que disseram meu nome a ela:

"- Ei, tú tem nome de DIGIMON é?" - E desatava a rir como se fosse a coisa mais engraçada do mundo...

Com o tempo, aprendeu os termos técnicos mais comuns e se interessava pelos pacientes que estavam ao seu lado, se alegrava se eles recebiam alta e ficava triste se eles morriam. Eram comum diálogos como:

- Anfremon, a pressão da dona Fulana ficou 7x4 a noite toda...e ela não passou nada bem...

Talvez por total ignorância da gravidade de sua doença ou ainda demonstrando uma incrível vontade de viver, Aline também aprontava as suas...Estando restrita, por orientação médica, a uma ingestão hídrica de míseros 800ml por dia, ela realizava assaltos noturnos furtivos ao bebedouro da copa...

Momentos de elevado altruísmo e espiritualidade também eram verificados no dia-a-dia...Aline ficava triste toda vez que precisava voltar a receber Dobutamina na veia (droga utilizada em casos extremos para aumentar a contração cardíaca)... Ela sabia que aquilo significava uma regressão no tratamento, sabia também que uma vez instalada, a droga não podia ser retirada bruscamente...

Lembro de um diálogo interessante:

- Anfremon, já são 12:00 e você disse que ia reduzir a Dobutamina prá 15 ml/h...

Quando perguntei o motivo da pressa ela respondeu:

- É que minha mãe vem hoje e não quero que ela me veja com o soro, quero que ela pense que eu melhorei...

Por essas e outras, Aline se tornou, nestes 40 dias, o xodó da UTI. Todos os residentes conheciam e gostavam dela, traziam presentes como guloseimas, bolachas e até shampoo da marca que ela gostava...Muito comum era vê-la conversando com a Juliana (sua preferida) na frente do paciente que acabava de sair da cirurgia, ou ainda no quarto dos médicos assistindo TV com a Sara.

No dia em que veio a falecer...ela acordou muito alegre pois a psicóloga arrumou um jeitinho de levar a filhinha dela no hospital...

"- Anfremon, você vai conhecer minha filha??" - Perguntava ela a mim e a todos que iam conversar com ela...Seguindo a linha transcendente-espiritual, da qual reafirmo que sou cético, no entanto, nesse caso não haviam dúvidas...Ela parecia estar esperando apenas isso...

Depois de acompanhar um procedimento que fiz numa paciente que estava na sua frente, ela confidenciou-me que queria que eu estivesse presente caso ela passasse muito mal...

Mal sabia ela que isso era o que todos menos queriam:
- Estar presente na hora em que ela passasse mal...

No final coube a mim, ao Fábio (R1) e ao Marcelinho (R2) - a dura tarefa de vê-la e (tentar) auxiliá-la no seus últimos momentos. Enquanto escrevo e me lembro do que aconteceu, lágrimas vêm aos olhos...e como poderia ser diferente? Como esquecer os gritos de "Me ajuda, eu não consigo mais respirar...", ou ainda "Oh...Deus, por quê comigo??"...Como esquecer dos longos 65 minutos de reanimação, assim prolongada mais por motivos passionais do que propriamente médicos...tudo em vão?

Lembro daquela enquete "Se você um dia estivesse diante de Deus e pudesse fazer uma única pergunta, qual seria?" - a minha seria:

- Por que pessoas tão cheias de vida têm que passar por provações como estas?

Que isto não seja entendido como uma manifestação de ódio ao divino, ou coisa parecida. Tenho certeza que ELE tem um BOM motivo. Eu, no meu mísero entender mas com minha ENORME curiosidade...só queria saber QUAL? "

Moso Corporation.@
R. Capitão Pereira Lago, 250 - Ap. 12
Ribeirão Preto/SP
CEP: 14050-200
Cel: (16) - 9796-5075
Res: (16) - 630-3773

 

Hosted by www.Geocities.ws

1