LEI SOBRE OS PATRIMÔNIOS ARQUEOLÓGICOS E PRÉ-HISTÓRICOS

Comentário (por Alexandre Figueiredo)
O confuso governo de Jânio Quadros foi marcado por medidas impopulares, por um moralismo excêntrico que superestimava o problema dos desfiles de misses trajadas de biquíni, embora acertasse na proibição das rinhas de galos.

Voltado para os interesses da direita conservadora, o governo Quadros, que não conseguiu controlar a inflação com suas medidas de choque que desagradaram as classes trabalhadoras (que, com o aumento dos preços e outras medidas, perdia o poder aquisitivo de outrora), tentou, na segunda parte de seu curto governo, se aproximar com as forças progressistas identificadas na causa do Partido Trabalhista Brasileiro. A própria carreira de Jânio mostra esta instabilidade ideológica, quando ele transitou, na década de 50, por vários partidos, incluindo o PTB, enquanto preferiu, na candidatura presidencial de 1960, obter o apoio da União Democrática Nacional (UDN), partido conservador que foi tradicional rival do PTB.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional já era uma instituição atuante na preservação da memória do Brasil, e realizava estudos para avaliar os critérios de pesquisa e preservação dos monumentos arqueológicos e pré-históricos. A atuação firme do presidente Rodrigo de Melo Franco Andrade é decisiva neste sentido.

A legislação a seguir foi promulgada pelo Presidente da República um mês antes de sua inesperada renúncia, ocorrida no dia 25 de agosto de 1961. Sua elaboração teve a participação decisiva do antropólogo Luiz de Castro Faria, que era diretor da Divisão de Antropologia do Museu Nacional, e, completamente voltada para a pré-história, a legislação surge devido à destruição em massa dos sambaquis (sítios arqueológicos pré-históricos). É a primeira legislação que estende a preservação do patrimônio para além dos monumentos históricos.


Lei n° 3.924
de 26 de julho de 1961.

DISPÕE SOBRE OS MONUMENTOS ARQUEOLÓGICOS E PRÉ-HISTÓRICOS.

O Presidente da República:
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte lei:

Artigo 1° - Os monumentos arqueológicos ou pré-históricos de qualquer natureza existentes no território nacional e todos os elementos que neles se encontram ficam sob a guarda e proteção do Poder Público, de acordo com o que estabelece o art. 180 da Constituição Federal.

Parágrafo único - A propriedade da superfície, regida pelo direito comum, não inclui a das jazidas arqueológicas ou pré-históricas, nem a dos objetos nela incorporados na forma do art. 161 da mesma Constituição.

Artigo 2° - Consideram-se monumentos arqueológicos ou pré-históricos:

a) as jazidas de qualquer natureza, origem ou finalidade, que representem testemunhos da cultura dos paleoameríndios do Brasil, tais como sambaquis, montes artificiais ou tesos, poços sepulcrais, jazigos, aterrados, estearias e quaisquer outras não especificadas aqui, mas de significado idêntico, a juízo da autoridade competente;

b) os sítios nos quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos paleomeríndios, tais como grutas, lapas e abrigos sob rocha;

c) os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso prolongado ou de aldeamento "estações" e "cerâmios", nos quais se encontram vestígios humanos de interesse arqueológico ou paleoetnográfico;

d) as inscrições rupestres ou locais como sulcos de polimentos de utensílios e outros vestígios de atividade de paleoameríndios.

Artigo 3° - São proibidos em todo território nacional o aproveitamento econômico, a destruição ou mutilação, para qualquer fim, das jazidas arqueológicas ou pré-históricas conhecidas como sambaquis, casqueiros, concheiros, birbigueiras ou sernambis, e bem assim dos sítios, inscrições e objetos enumerados nas alíneas b, c e d do artigo anterior, antes de serem devidamente pesquisados, respeitadas as concessões anteriores e não caducas.

Artigo 4° - Toda pessoa, natural ou jurídica, que, na data da publicação desta Lei, já estiver procedendo, para fins econômicos ou outros, à exploração de jazidas arqueológicas ou pré-históricas, deverá comunicar à Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, dentro de sessenta (60) dias, sob pena de multa de Cr$ 10.000,00 a Cr$ 50.000,00 (dez mil a cinqüenta mil cruzeiros), o exercício dessa atividade, para efeito de exame, registro, fiscalização e salvaguarda do interesse da ciência.

Artigo 5° - Qualquer ato que importe na destruição ou mutilação dos monumentos a que se refere o art. 2° desta Lei será considerado crime contra o Patrimônio Nacional e, como tal, punível de acordo com o disposto nas leis penais.

Artigo 6° - As jazidas conhecidas como sambaquis, manifestadas ao governo da União, por intermédio da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de acordo com o art. 4° e registradas na forma do artigo 27 desta Lei, terão precedência para estudo e eventual aproveitamento, em conformidade com o Código de Minas.

Artigo 7° - As jazidas arqueológicas ou pré-históricas de qualquer natureza, não manifestadas e registradas na forma dos arts. 4° e 6° desta Lei, são consideradas, para todos os efeitos, bens patrimoniais da União.

CAPÍTULO II
Das Escavações Arqueológicas realizadas por particulares

Artigo 8° - O direito de realizar escavações para fins arqueológicos, em terras de domínio público ou particular, constitui-se mediante permissão do Governo da União, através da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ficando obrigado a respeitá-lo o proprietário ou possuidor do solo.

Artigo 9° - O pedido de permissão deve ser dirigido à Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, acompanhado de indicação exata do local, do vulto e da duração aproximada dos trabalhos a serem executados, da prova de idoneidade técnico-científica e financeira do requerente e do nome do responsável pela realização dos trabalhos.

Parágrafo único - Estando em condomínio a área em que se localiza a jazida, somente poderá requerer a permissão o administrador ou cabecel, eleito na forma do Código Civil.

Artigo 10° - A permissão terá por título uma portaria do Ministro da Educação e Cultura, que será transcrita em livro próprio da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e na qual ficarão estabelecidas as condições a serem observadas ao desenvolvimento das escavações e estudos.

Artigo 11° - Desde que as escavações e estudos devam ser realizados em terreno que não pertença ao requerente, deverá ser anexado ao seu pedido o consentimento escrito do proprietário do terreno ou de quem esteja em uso e gozo desse direito.

Parágrafo 1° - As escavações devem ser necessariamente executadas sob orientação do permissionário, que responderá civil, penal e administrativamente pelos prejuízos que causar ao Patrimônio Nacional ou a terceiros.

Parágrafo 2° - As escavações devem ser realizadas de acordo com as condições estipuladas no instrumento de permissão, não podendo o responsável, sob nenhum pretexto, impedir a inspeção dos trabalhos por delegado especialmente designado pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, quando for julgado conveniente.

Parágrafo 3° - O permissionário fica obrigado a informar à Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, trimestralmente, sobre o andamento das escavações, salvo a ocorrência de fato excepcional, cuja notificação deverá ser feita imediatamente, para as providências cabíveis.

Artigo 12° - O Ministério da Educação e Cultura poderá cassar a permissão concedida, uma vez que:

a) não sejam cumpridas as prescrições da presente Lei e do instrumento de concessão da licença;

b) sejam suspensos os trabalhos de campo por prazo superior a doze (12) meses, salvo motivo de força maior, devidamente comprovado;

c) no caso de não cumprimento do parágrafo 3° do artigo anterior.

Parágrafo único - Em qualquer dos casos acima enumerados, o permissionário não terá direito a indenização alguma pela despesas que tiver efetuado.

CAPÍTULO III
Das Escavações Arqueológicas realizadas por Instituições Científicas Especializadas da União, dos Estados e dos Municípios

Artigo 13° - A União, bem como os Estados e Municípios mediante autorização federal, poderão proceder a escavações e pesquisas, no interesse da Arqueologia e da Pré-história em terrenos de propriedade particular, com exceção das áreas muradas que envolvam construções domiciliares.

Parágrafo único - À falta de acordo amigável com o proprietário da área onde se situar a jazida, será esta declarada de utilidade pública e autorizada a sua ocupação pelo período necessário à execução dos estudos, nos termos do art. 36 do Decreto-lei n° 3.365, de 21 de junho de 1941.

Artigo 14° - No caso de ocupação temporária do terreno, para realização de escavações nas jazidas declaradas de utilidade pública, deverá ser lavrado um auto, antes do início dos estudos, no qual se descreva o aspecto exato do local.

Parágrafo 1° - Terminados os estudos, o local deverá ser restabelecido, sempre que possível, na sua feição primitiva.

Parágrafo 2° - Em caso de as escavações produzirem a destruição de um relevo qualquer, essa obrigação só terá cabimento quando se comprovar que, desse aspecto particular do terreno, resultavam incontestáveis vantagens para o proprietário.

Artigo 15° - Em casos especiais e em face do significado arqueológico excepcional das jazidas, poderá ser promovida a desapropriação do imóvel, ou parte dele, por utilidade pública, com fundamento no art. 5°, alíneas K e L do Decreto-lei n° 3.365, de 21 de junho de 1941.

Artigo 16° - Nenhum órgão da administração federal, dos Estados ou dos Municípios, mesmo no caso do art. 28 desta Lei, poderá realizar escavações arqueológicas ou pré-históricas, sem prévia comunicação à Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, para fins de registro no cadastro de jazidas arqueológicas.

Parágrafo único - Dessa comunicação deve constar, obrigatoriamente o local, o tipo ou a designação da jazida, o nome do especialista encarregado das escavações, os indícios que determinaram a escolha do local e, posteriormente, uma súmula dos resultados obtidos e do destino do material coletado.

CAPÍTULO IV
Das Descobertas Fortuitas

Artigo 17° - A posse e a salvaguarda dos bens de natureza arqueológica ou pré-histórica constituem, em princípio, direito imanente ao Estado.

Artigo 18° - A descoberta fortuita de quaisquer elementos de interesse arqueológico ou pré-histórico, artístico ou numismático deverá ser imediatamente comunicada à Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ou aos órgãos oficiais autorizados, pelo autor do achado ou pelo proprietário do local onde tiver ocorrido.

Parágrafo único - O proprietário ou ocupante do imóvel onde se tiver verificado o achado é responsável pela conservação provisória da coisa descoberta, até o pronunciamento e deliberação da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Artigo 19° - A infringência da obrigação imposta no artigo anterior implicará na apreensão sumária do achado, sem prejuízo da responsabilidade do inventor pelos danos que vier a causar ao Patrimônio Nacional, em decorrência da omissão.

CAPÍTULO V
Da remessa, para o exterior, de objetos de interesse Arqueológico ou Pré-histórico, Histórico, Numismático ou Artístico.

Artigo 20° - Nenhum objeto que apresente interesse arqueológico ou pré-histórico, numismático ou artístico poderá ser transferido para o exterior, sem licença expressa da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, constante de uma "guia" de liberação na qual serão devidamente especificados os objetos a serem transferidos.

Artigo 21° - A inobservância da prescrição do artigo anterior implicará na apreensão sumária do objeto a ser transferido, sem prejuízo das demais cominações legais a que estiver sujeito o responsável.

Parágrafo único - O objeto apreendido, razão deste artigo, será entregue à Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

CAPÍTULO VI

Disposições Gerais

Artigo 22° - O aproveitamento econômico das jazidas, objeto desta Lei, poderá ser realizado na forma e nas condições prescritas pelo Código de Minas, uma vez concluída a sua exploração científica, mediante parecer favorável da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ou do órgão oficial autorizado.

Parágrafo único - De todas as jazidas será preservada, sempre que possível ou conveniente, uma parte significativa, a ser protegida pelos meios convenientes, como blocos testemunhos.

Artigo 23° - O Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas encaminhará Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional qualquer pedido de cientista estrangeiro, para realizar escavações arqueológicas ou pré-históricas no país.

Artigo 24° - Nenhuma autorização de pesquisa ou de lavra para jazidas de calcário de concha, que possua as características de monumentos arqueológicos ou pré-históricos, poderá ser concedida sem audiência prévia da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Artigo 25° - A realização de escavações arqueológicas ou pré-históricas, com infringência de qualquer dos dispositivos desta Lei, dará lugar à multa de Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros) a Cr$ 50.000,00 (cinqüenta mil cruzeiros), sem prejuízo de sumária apreensão e conseqüente perda, para o Patrimônio Nacional, de todo o material e equipamento existente no local.

Artigo 26° - Para melhor execução da presente Lei, a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional poderá solicitar a colaboração de órgãos federais, estaduais, municipais, bem como de instituições que tenham entre seus objetivos específicos o estudo e a defesa dos monumentos arqueológicos e pré-históricos.

Artigo 27° - A Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional manterá um Cadastro dos monumentos arqueológicos do Brasil, no qual serão registrados todas as jazidas manifestadas, de acordo com o disposto nesta Lei, bem como das que se tornarem conhecidas por qualquer via.

Artigo 28° - As atribuições conferidas ao Ministério da Educação e Cultura, para o cumprimento desta Lei, poderão ser delegadas a qualquer unidade da Federação, que disponha de serviços técnico-administrativos especialmente organizados para a guarda, preservação e estudo das jazidas arqueológicas e pré-históricas, bem como de recursos suficientes para o custeio e bom andamento dos trabalhos.

Parágrafo único - No caso deste artigo, o produto das multas aplicadas e apreensões de material legalmente feitas reverterá em benefício do serviço estadual, organizado para a preservação e estudo desses monumentos.

Artigo 29° - Aos infratores desta Lei serão aplicadas as sanções dos artigos 163 a 167 do Código Penal, conforme o caso, sem prejuízo de outras penalidades cabíveis.

Artigo 30° - O poder Executivo baixará, no prazo de 120 dias, a partir da vigência desta Lei, a regulamentação que for julgada necessária à sua fiel execução.

Artigo 31° - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Brasília, em 26 de julho de 1961;
140° da Independência e 73° da República.

Jânio Quadros
Brigido Tinoco
Oscar Pedroso Horta
Clemente Mariani
João Agripino

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