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Sobre o Camões de Garrett: além do mito

 
Márcia Vieira Maia

Sendo o resgate da memória cultural uma das vertentes mais exploradas pela literatura portuguesa contemporânea, é justo assinalar que a linha mestra desse percurso - ou seja, a recriação da figura paradigmática de Camões e a releitura de Os Lusíadas como texto fundador - começou a ser traçada nas proximidades do Romantismo. Já nas últimas décadas do século XVIII poetas como Filinto Elísio (ode "Servindo ao Rei e à Pátria sessenta anos") e Bocage (soneto "Camões, grande Camões, ...") projetavam em Camões suas angústias e desgraças; contudo, seria nos primórdios do Portugal oitocentista que significativas transformações sócio-políticas configurariam no país uma situação tal que este poeta se convertesse numa imagem simbólica, como aponta Ofélia Paiva Monteiro:

Sob a derrocada portuguesa das décadas iniciais de Oitocentos, quando às convulsões devidas às invasões francesas, acompanhadas pelo embarque da família real para o Brasil e pela permanência de uma exasperadora tutela britânica, se somaram, por um lado, a difusão da ideologia liberal e nacionalista e, por outro, a adesão a orientações estético-críticas, de frequente proveniência estrangeira, que enalteciam o "génio" criador (imaginativo, vibrátil, individualista, fiel às suas "raízes"e pouco atreito por tudo isso a sujeições canónicas), o perfil humano e poético de Camões mais prestígio adquire ainda, tornando-se para muitos um símbolo da aliança, incompreendida pela mesquinhez ambiente, de hombridade, exaltação, patriotismo e mérito artístico.1

A entusiástica adesão de certa juventude intelectual ao liberalismo, vitorioso na Revolução do Porto (1820), representou um apoio relevante porém insuficiente para impulsionar a aceitação de sua ideologia avançada em âmbito nacional. Rapidamente, o frágil sustentáculo do governo liberal, já corroído por divergências internas, atingiu o colapso ante uma forte resistência da maioria do país, propiciadora da reação absolutista liderada pelo infante D. Miguel. Às perseguições e ameaças subseqüentes ao movimento anticonstitucional de Vilafrancada (1823), o exílio constituiu a derradeira esperança de liberdade para os vintistas, entre eles Almeida Garrett, que chegara a integrar o quadro governamental e agora, refreado em suas aspirações reformistas, partia para a Inglaterra, fixando-se depois na França (1824).

Apreensivo, graças à sua lúcida visão do processo histórico, com o rumo por onde Portugal era temerariamente conduzido e sofrendo ainda as privações de uma vida solitária longe da pátria, intensifica-se em Garrett uma admiração, aliás inerente à sua formação clássica, pelo poeta em que ele, nesse momento, projeta-se a tal ponto de lhe dedicar um conjunto de poemas laudatórios: Camões.

Sua ação é "a composição e publicação d�Os Lusíadas", estruturando-se, de modo análogo à epopéia camoniana, em dez cantos, os quais também aqui são desenvolvidos através do recurso à viagem. É a esta que encontramos relacionada uma primeira linha temática, a saudade, cuja invocação não canônica na abertura do poema demonstra sua "�indole absolutamente nova", conforme aponta Garrett no prefácio da primeira edição do Camões: "Conheço que ele está fora das regras". Ao enfatizar sua insubordinação a quaisquer princípios retóricos, o escritor aí declara: "Não sou clássico nem romântico".2 Compreendendo desde cedo a falsa antinomia entre classicismo e romantismo, Garrett percebe ser apenas formal a oposição entre essas duas correntes estéticas que, de fato, não constituem alternativas excludentes. Daí sua capacidade inovadora de combinar e superar, colocando-se à testa de uma escola verdadeiramente nacional e independente, cujo marco inaugural é justamente a publicação do Camões, em 1825.

Neste poema lírico-épico, o autor, num estilo digressivo, expressa seus próprios sentimentos de nostalgia e desesperança através de um "eu" narrador, claramente identificado com o protagonista; dessa forma, não há, por vezes, uma nítida diferenciação entre as vozes de Camões e de Garrett, mas sim um convergência, acentuada pelas semelhanças tanto biográficas quanto relativas ao contexto sócio-político testemunhado por cada um deles. Esses fatores, segundo Carlos Reis, fazem dessa projeção "não uma simples influência ou referência acessória, mas um fenómeno de recepção e transformação cultural capaz de conferir ao épico os contornos míticos que hoje possui".3

A diegese inicia-se in media res: após anos de penoso desterro, um amargurado Camões desembarca incógnito em terra portugesa, nela sentindo-se um estranho e tendo como único consolo a companhia inseparável de seu escravo e amigo Jau. Um monge oferece-lhes sua humilde pousada, onde, na chegada, deparam-se com um cortejo fúnebre; transtornado, o guerreiro desfalece ao contemplar o cadáver de sua amada Natércia. Durante sua convalencença, Camões permanece sob os cuidados do missionário, a quem finalmente revela, agora em primeira pessoa, seu nome e sua existência de lutas, sofrimentos e mágoas, da qual evoca um único bem:

Todos os meus tesouros são um livro.
Pouco valor, - nenhum tem porventura;
Mas de longas fadigas, do trabalho
Da vida inteira é fruto. Escrito em partes
Com lágrimas há sido, e bem pudera
Com sangue em muitas. Sobre os calvos serros
Das montanhas, nos vales deleitosos,
No campo em tendas, na guarita em praças,
No mar entre o arruído das procelas,
Aos grilhões nos cárceres, - contínuo,
Incessante, indefesso hei trabalhado
Para levar ao cabo a empresa ardida
Deste livro que tanto me há custado.
(Camões, canto quarto, II)

Na seqüência, Camões recorda o momento de sua pungente separação de Natércia, uma paixão correspondida mas cruelmente impossibilitada pelo preconceito social; a seguir, em tom eloqüente, descreve sua viagem marítima ao Oriente, repleta de passagens maravilhosas que parecem concretizar sua predestinação heróica. É imprescindível destacar que, nesse instante da narrativa, Garrett recria a vida de Camões utilizando-se de explícitas remissões a Os Lusíadas, numa sutil inversão do processo de escrita literária: segundo a ordem cronológica depreendida a partir da leitura da obra camoniana, constata-se que diversos episódios autobiográficos primeiramente mencionados nos textos líricos é que são depois incorporados à epopéia e, de forma transfigurada, atribuídos à aventura de Vasco da Gama.

A elegia "O poeta Simônides..."4 exemplifica com precisão esse complexo jogo de reflexões, ao desenvolver uma estreita relação entre poesia e memória, através de opiniões opostas sobre "uma arte singular" que impedisse "o esquecimento / Que enterra em si qualquer antiga história". Enquanto Simônides acredita no valor de uma composição que preserve a memória, o capitão Temístocles, atormentado por lembranças (de guerras), prefere uma arte capaz de fazê-lo esquecer o passado. Esse confronto entre "o propósito das Letras e a conseqüência das Armas"5 é o mote para as reflexões que, a partir daí, Camões apresenta em primeira pessoa. Surpreendentemente, o eu lírico não se identifica com o poeta grego, mas sim concorda com o militar, adotando a perspectiva de "quem se visse estar ausente, / Em longas esperanças degradado" - aliás plenamente compreensível quando o sujeito expressa sua dor em recordar os tempos felizes na miséria. Integrando à elegia fatos (supostamente) verídicos de sua viagem à Índia como soldado, o poeta transporta-se para uma nau a cruzar os mares: "Eu, trazendo lembranças por antolhos, / Trazia os olhos na água sossegada, / E a água sem sossego nos meus olhos". Diante de tão vívido contraste entre o passado e o presente, o eu lírico recorre a um imaginário mitológico, dirigindo-se às ninfas: testemunhas do sofrimento cuja memória ele deseja que retorne à sua terra natal, suplica-lhes que lá o registrem em versos escritos com as conchas, de modo a comover os pastores do Tejo que sempre o ouviam. Mas às idílicas paisagens visualizadas em seus sonhos opõe-se a fúria da natureza que ele então enfrenta ao atravessar o Cabo da Esperança:

A máquina do Mundo parecia
Que em tormenta se vinha desfazendo;
Em serras todo o mar se convertia!
Lutando, Bóreas fero e Noto horrendo
Sonoras tempestades levantavam,
Das naus as velas côncavas rompendo.
("O poeta Simônides...")

Essa ameaça de naufrágio relatada por Camões - e que posteriormente seria incluída em Os Lusíadas personificada no Adamastor - rompe com a atmosfera pastoril até então sugerida. De fato, uma outra referência biográfica vinculada à experiência do poeta como guerreiro vem contribuir para ressaltar o conflito, elucidado por Helder Macedo, "entre os valores naturais do pastoril e os valores cavaleirescos associados à épica".6 No fim da elegia, já tendo vivenciado os castigos da natureza e os do Amor, o sujeito participa da conquista do Oriente, quando reconhece as injustiças das primeiras lutas em que povos mais fracos eram impiedosamente subjugados. Isso o conduz a uma comparação entre os cavaleiros, sempre com a obrigação de combater, e os lavradores, que sobrevivem apenas da terra:

Oh! lavradores bem-aventurados!
Se conhecessem seu contentamento,
Como vivem no campo sossegados!
Dá-lhe[s] a justa terra o mantimento;
Dá-lhe[s] a fonte clara a água pura;
Mungem suas ovelhas cento a cento.
Não vem o mar irado, a noite escura,
Por ir buscar a pedra do Oriente;
Não temem o furor da guerra dura.
Vive um com suas árvores contente,
Sem lhe quebrar o sono sossegado
O cuidado do ouro reluzente.
("O poeta Simônides...")

Na simplicidade da vida campestre, ainda que isenta de riquezas, o eu lírico idealiza uma existência edênica, em absoluta harmonia com a natureza, espaço do canto dos pastores. Um espaço que, nesse momento de exílio, ele só pode atingir através da imaginação: inacessível ao soldado, essa natureza é o mundo do Amor a ser sempre cantado pelo poeta, mesmo que suas palavras sejam incomprensíveis no mundo da guerra:

Bem mal pode entender isto que digo
Quem há de andar seguindo o fero Marte,
Que traz os olhos sempre em seu perigo.
Porém seja, Senhor, de qualquer arte;
Que, posto que a Fortuna possa tanto
Que tão longe de todo o bem me aparte,
Não poderá apartar meu duro canto
Desta obrigação sua, enquanto a morte
Me não entrega ao duro Radamanto;
Se pera tristes há tão leda sorte.
("O poeta Simônides...")

Retornando ao poema de Garrett, adquire evidência a apresentação feita pelo personagem Camões dos grandes conquistadores portugueses, os quais historicamente tiveram uma participação decisiva na expansão do império mas, sem a merecida recompensa, terminaram seus dias doentes e na miséria:

Quem tais milagres de heroísmo e de honra,
Quem tanta glória a tão pequeno berço
Foi tão longe ganhar! Quem a um punhado
De homens, à mais pequena nação do orbe
Deu mares a transpor, veredas novas
A descobrir na face do universo;
Povos a subjugar, reis a humilhá-los,
Ignotos mundos a ajuntar ao velho,
E, a dilatar-lhe a superfície, a terra?
Eles. - E a Pátria, por quem tanto hão feito,
Que digno prémio lhes há dado? - A fome
Num hospital galardoou Pacheco;
A Albuquerque a desonra ao pé da campa;
Castro a pobreza, que os socorros últimos
Sobre o leito da morte mendigava.
(Camões, canto terceiro, XVII)

De todos, a guerra cobra um tributo que ele próprio, como soldado, também pagou: "O viço de meus anos se há murchado / Nas fadigas, no ardor sevo de Marte" (Camões, canto quinto, II). Mas agora, ao resgatar do esquecimento aqueles que dedicaram suas vidas a uma pátria insensível em reconhecer-lhes seu valor, o Camões garrettiano pratica sim a arte da memória inventada por Simônides. Uma arte que o poeta romântico acredita ser imprescindível para o reerguimento da nação portuguesa, já que exercida como estratégia de intervenção ideológica num contexto que exige de cada cidadão consciente um clamor patriótico:

Qu�é desse esp�rito que animava os fortes?
Qu�é desse vivo ardor de fama honrada
Que faiscava em lusitanos peitos,
E arriscadas acções, a empresas grandes,
A mais que humanos feitos os levava?
Extiguiu-se, acabou. Já fomos Lusos;
Fomos: - de nossa glória o brado ingente
Breve será clamor que geme longe,
Como voz de sepulcros esquecidos
Balda soando no porvir que a ignora.
(Camões, canto quarto, XI)

O contraste entre o passado e o presente, que na elegia camoniana manifesta-se apenas num nível pessoal, aqui abarca também o nacional: "Pátria, oh Pátria! - dizia - é pois um sonho / Essa visão, que por celeste a tive?" (Camões, canto quarto, XV). Todavia, o vislumbre de que a trajetória lusitana da glória à decadência só poderia recuperar seu sentido ascendente através de um inconformismo transgressor é compartilhado por Camões e Garrett, cujas vozes mais uma vez se confundem:

.....................De indignado
Ergui a voz, clamei contra a vergonha
Que o nome português assim manchava,
Esconjurei as sombras indignadas
Dos heróis fundadores de um império
Que tão bastardos netos destruíram.
Em vão clamei; as minhas verdades duras
Mole ouvido os tiranos ofenderam:
Puniu desterro injusto a minha audácia.
(Camões, canto quarto, XII)

Na seqüência do poema, o monge que acolhera Camões, impressionado com a qualidade da obra que ele lhe confiara, decide intervir em seu favor junto a um amigo na corte para que a epopéia possa ser apresentada a D. Sebastião. Convocado pelo monarca para uma audiência, Camões, revigorado ante a perspectiva de uma consagração gratificante, dirige-se ao palácio, onde é apresentado pelo aio Dom Aleixo ao rei:

"Ei-lo, senhor, o nobre cavaleiro
Que desejas ouvir."
- Sim, quero ouvi-lo,
Quero e desejo: não ignoro o preço
Das boas letras, nem de um raro engenho
A estima desvalio: em prol da Pátria
Uns obram coa espada; cumpre a outros
Coa pena honrá-la.
(Camões, canto sétimo, IX)
 
Atento o jovem rei fitava ansioso
O guerreiro cantor que o nobre aspeito
Tinha como de glória resplendente,
E na divina inspiração aceso.
(Camões, canto sétimo, XII)

Solenemente, Camões vai recitando versos que, ora compõem uma paráfrase de Os Lusíadas, ora são citações exatas - alusões essas que Garrett inclusive indica em notas. A motivação nacionalista sem dúvida é a determinante na seleção dos episódios, na ênfase dada aos valores guerreiros de audácia, força e coragem. Assim, exaltando os feitos dos heróis portugueses, o poeta conquista a admiração do monarca:

Não sabia em que modo lhe mostrasse
Ao vate sublimado o rei mancebo,
O entusiasmo, o vivo prazer d�alma
Que lhe inspiraram as canções divinas.
Louva a escolha do assunto, a arte engenhosa
Que num só quadro magestoso e grande
Todos uniu da portuguesa história
Os memorando feitos, varões dignos
De eternidade e fama: louva o �stilo
Nobre e terso, de pompa e singeleza,
Qual o pede a matéria; .............
(Camões, canto nono, I)

Essa cena sintetiza toda uma mística romântica configurada em torno de um verdadeiro culto camoniano: somente nessa estética é concebível idealizar um D. Sebastião extasiado a ouvir versos d�Os Lusíadas. É significativo que, numa releitura contemporânea da epopéia, a mesma situação seja imaginada de forma radicalmente diversa, contudo perfeitamente verossímel. Na peça Que farei com este livro?, José Saramago também recupera o período da vida de Camões entre o seu retorno da Índia - considerada uma "doença de Portugal"7 - e a publicação d�Os Lusíadas - obra cujo destino é aí questionado. Porém, se Garrett privilegia a concepção de um herói romântico, Saramago acaba por traçar um painel crítico da época - as disputas de poder na corte, os sonhos de conquistas do rei, a ameaça inquisitorial - enquanto apresenta as dificuldades enfrentadas pelo poeta para editar sua epopéia. É com esse objetivo que Camões vai ao Paço e, aproveitando-se da passagem do séquito de D. Sebastião pela sala onde se encontra, ousadamente dirige a palavra ao rei:

Neste livro que aqui vedes tenho escrito os feitos dos vossos antepassados e as navegações, do povo de que sois senhor.

Permiti, senhor, que vos leia, e que as ouça a corte, algumas oitavas, estas que não há muitos dias compus, a dedicatória a Vossa Alteza. Sabereis...

(D. Sebastião, que tem ouvido indiferente, avança para o outro lado e retira-se [...]. Luís de Camões permanece como estava, com um joelho em terra, segurando os papéis abertos. [...])8

Ao invés desse humilhante desprezo, no poema garrettiano o rei concede a Camões honrosos elogios e, enaltecendo sua virtude, promete-lhe a devida mercê. Essa recepção calorosa do monarca com efeito agiliza a publicação da obra: "Correra a fama do louvor, do preço / Que dera o rei ao sublimado Canto. / Pronto se oferece quem germanas artes / Em dar-lhe vida e propagá-lo empregue." (Camões, canto nono, XVIII) No entanto, um destino fatídico abate-se sobre o poeta:

Arqueja exangue,
Definha à míngua, só, desamparado
Dos amigos, do rei, da Pátria indigna,
O cantor dos Lusíadas. - Ah! como!
Que é das gratas promessas do monarca?
Que é de tanta esperança lisonjeira?
(Camões, canto décimo, II)

Valorizando, na biografia camoniana, os aspectos mais de acordo com o gosto romântico, Garrett delineia com perfeição a imagem do poeta maldito, conferindo-lhe toda uma aura mítica. Na incompreensão generalizada que o relega a um injusto esquecimento, a Camões resta apenas a solidariedade do amigo Jau:

.... tristes horas, dias, meses passam
Arrastados e longos - qual o tempo
Para infelizes anda -, sem que a sorte
Mais ditosos os visse, ou a amizade
Menos unidos. - Mas a mão tremente,
Encarquilhada e seca já sobre eles
Ia estendendo a pálida indigência,
E a fome... a fome alfim. ..............
(Camões, canto décimo, XIV)

Já no leito de morte, Camões recebe por carta a notícia do desastre de Alcácer Quibir - "das mãos trémulas / A epístola fatal lhe cai: �Perdido / É tudo pois!� ". Desconsolado, "Os olhos turvos para o céu levanta; / E já no arranco extremo: - �Pátria, ao menos / Juntos morremos...�- E expirou coa Pátria." (Camões, canto décimo, XXIII) Essa imagem canonizada do poeta coincide com a celebrada em outras manifestações românticas inseridas num movimento internacional de exaltação camoniana, em particular o quadro de Domingos Sequeira "A morte de Camões".

Uma imagem que será reconstruída, ao longo da literatura portuguesa do século XX, por uma escrita que procura desvelar no poeta sua dimensão humana encoberta pelo mito. Ao preencher ficcionalmente as lacunas da biografia de Camões, Saramago o imagina argumentando com Frei Bartolomeu Ferreira sobre as passagens de Os Lusíadas que mais desagradariam ao Santo Ofício, com ênfase no episódio da Ilha dos Amores, relegado a um plano secundário no poema garrettiano. Em Que farei com este livro?, quando o censor questiona-lhe sobre o canto nono da sua epopéia, Camões responde:

Vossa Reverença bem sabe que o prémio das grandes acções, ou vem tarde, ou não chega nunca. Por isso me pus a imaginar um lugar do mundo, uma ilha, longe das terras habitadas pelos homens, onde os heróis fossem recebidos de acordo com o seu merecimento, coroados de flores, satisfeitos em seus gostos.9

Ainda que relutante, o frade acaba por conceder ao livro seu aval, não sem antes afirmar: "viésseis vós menos recomendado, e estou que não deixaria passar tão em claro [...] a insistência e a pertinácia com que lisonjeais os gostos sensuais".10 Esse destaque dado por Saramago ao erotismo da epopéia é reduplicado na própria peça: ao reeencontrar Francisca de Aragão, uma antiga amante desejosa de retomar o relacionamento, o poeta consegue fazer com que a adormecida paixão seja parcialmente revivida através das glosas que lhe dedica. Já na perspectiva romântica de Garrett o sentimento amoroso é transferido para um plano absoluto, restando a Camões apenas a lembrança deixada por Natércia.

Na obra camoniana, graças à complementaridade humanística entre as armas e as letras, a poesia ressurge como arte suprema de criar e imortalizar heróis - os mareantes, que em sua viagem épica são divinizados e recuperam a perdida Idade de Ouro; o próprio poeta, que em sua viagem existencial transcende sua condição humana e, num derradeiro ímpeto, lança seu clamor libertário a um mundo em desconcerto:

"Que naus são essas que ufanosas surcam
Pelo esteiro do Gama? Pendões bárbaros
Varrem o Oceano, que pasmado busca,
Em vão! nas popas descobrir as Quinas.
Em vão; da haste da lança escalavrada
Roto o estandarte cai dos portugueses.
 
"Cinza, esfriada cinza é todo o alcáçar
Da glória lusitana... uma faísca,
Esquecida a tiranos, lá cintila:
Mas quão débil que vens, sopro de vida!
Um só momento com vigor no peito
O coração te pulsa. Exangue, enferma
Só te ergues desse leito de miséria
Para cair, desfalecer de novo.
(Camões, canto décimo, XIX e XX)

É essa faísca que ainda hoje cintila em cada uma das múltiplas imagens de Camões que os tempos nunca cessam de refletir.


Notas

1. Ofélia Paiva Monteiro, "Camões (na literatura romântica portuguesa)", Dicionário do romantismo literário português (Coord. Helena Carvalhão Buescu), Lisboa, Caminho, 1997, p.72-76.

2. Almeida Garrett, Camões, Lisboa, Livros Horizonte, 1973, p. 29-30.

3. Carlos Reis. "Intertextualidade e ideologia: uma imagem romântica de Camões", Ensaios de metodologia e de crítica literária, Coimbra, I.N.I.C./ Centro de Literatura Portuguesa, 1982, p.59-62.

4. Luís de Camões, Obra completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1988. p.355-360.

5. Helder Macedo, "O poeta Simónides e o capitão Temístocles", O amor das letras e das gentes; in honor of Maria de Lourdes Belchior Pontes, (Ed. João Camilo dos Santos e Frederick G. Williams), Santa Barbara, University of California / Center for Portuguese Studies, 1995, p.100-104.

6. Helder Macedo, "O poeta Simónides e o capitão Temístocles", Op. Cit. p.102.

7. José Saramago, Que farei com este livro? ,Lisboa, Caminho, 1980, 2 ed. p.49.

8. José Saramago, Que farei com este livro?, Op. Cit., p.75.

9. José Saramago, Que farei com este livro?, Op. Cit., p.122.

10. José Saramago, Que farei com este livro?, Op. Cit., p.123-124.

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