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Os provérbios de Don Quijote de la Mancha nas Traduções em Português

("Esse texto tamb�m aparece na Revista Veredas N� 3")

 
Maria Josefa Postigo

1.- Esta comunicação, enquadrada numa linha de investigação mais ampla,1 tem como objectivo contribuir para o estudo da paremiologia contrastiva espanhol-português. Neste trabalho, procedeu-se à selecção dos provérbios do Quijote de Cervantes, confrontando o texto da 1� edição espanhola com o texto da tradução portuguesa de Aquilino Ribeiro, e compararam-se determinados provérbios com o texto de outras traduções para português. Recolhem-se os contextos e provérbios onde se encontram indicadores formais da existência dos mesmos e agrupam-se aqueles cuja fórmula introdutória contém um termo paremiológico. Além disso, analizando vários conjuntos de provérbios, proponho alguns procedimentos de sistematização e, com alguns exemplos, verifico o tipo de correspondência -literal ou conceptual- na tradução.

A comparação entre a língua espanhola e a portuguesa, línguas próximas em muitos aspectos, facilita, geralmente, a tarefa e, no entanto, o primeiro escolho encontramo-lo no título. Se o trabalho fosse em espanhol, para referirmo-nos a este tipo de ditos sentenciosos, não duvidaríamos em entitulá-lo "refranes" em lugar de "provérbios". Mas, refrão/ refrões em português actual comum é estribilho de uma canção e, ainda que sejam utilizadas outras designações, como adágio ou dito ou rifão, preferimos o vocábulo provérbio, utilizado amplamente e pelas razões aduzidas por Chacoto, Funk, Lopes, Brazão (1998, 23).

Os provérbios, expressão verbal da sabedoria dos povos, têm sido objecto de investigação de duas disciplinas diferentes: a linguística e o folclore. Ao tratar-se de um tipo de fraseologismo, foram estudados no âmbito da linguística, mais concretamente no da fraseologia, e, sendo interessantes pelos seus aspectos histórico-culturais, etnológicos e antropológicos, por um ramo específico do folclore: a paremiologia. Actualmente, o estudo dos provérbios aborda-se de maneira conjunta, global e interdisciplinar.

No imortal livro El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha de Miguel de Cervantes abundam as fórmulas expressivas, os diferentes tipos de fraseologismos sentenciosos com maior ou menor grau de fixidez e de idiomaticidade. Este trabalho, pensado numa perspectiva contrastiva, parte de um corpus espanhol/português, e pretende contribuir para um melhor conhecimento e sistematização deste tipo de fraseologismo ou unidade fraseológica que denominamos como provérbio.

2.- Uma enorme quantidade de publicações acerca dos problemas empíricos e teóricos dos fraseologismos referem-se à definição, classificação, diferenças e termos utilizados nas diversas línguas. Dos objectivos que cada trabalho se proponha, depende o tipo de classificação que se adopte. Sem entrar em pormenores, consideramos necessárias algumas precisões de índole terminológica para definir o tipo de fórmulas de que nos vamos ocupar. A linha divisória entre unidades fraseológicas como locução (Casares:1969), frase proverbial e provérbio é escorregadia mas os três tipos têm em comum a chamada função fraseológica básica, ou seja, uma grande eficácia na produção e interpretação da mensagem linguística. Quero apontar as diferenças, apesar da proximidade, entre frases proverbiais e provérbios. Não são objecto desta contribução os fraseologismos, recolhidos no Quijote e traduzidos para português por Aquilino Ribeiro, do tipo que se segue:

"está nas suas tamanquinhas" (A. III, 323)2// está en sus trece. (visorrey, II, 64)3
"misturou alhos com bugalhos" (A. II, 196)// ha mezclado berzas com capachos (Sancho, II, 3)
"faz de tripas coração" (A. I, 134)// saca fuerzas de flaqueza (D.Q. I, 15)
"dar coices contra um sedeiro" (A. III, 303) // dar coces contra el aguijón. ( el castellano, II, 62)
"vão a buscar lã e saem tosquiados "(A.I, 72)// van por lana y vuelven trasquilados (sobrina, I, 7)

Os anteriores exemplos são locuções e frases proverbiais, ou seja, unidades fraseológicas equivalentes a sintagmas verbais que, no discurso, requerem um sujeito para constituir uma oração. Contudo, os provérbios não necessitam de um sujeito e, tanto inseridos num discurso complexo como em determinados contextos situacionais, comunicam um sentido completo, têm significado autónomo. Não possuímos uma definição global de provérbio e nem pela lógica nem pela estrutura o podemos reconhecer. Como afirma M. Gross (1984), o único critério de distinção para reconhecer um provérbio é a intuição. O falante pertencente a uma comunidade linguística é capaz de identificar o provérbio, quer apresente uma forma canónica quer se encontre alterado, quando se integra num texto, produzindo determinado efeito. Às vezes, o reconhecimento torna-se difícil, principalmente quando o provérbio é evocado de maneira alusiva, quando produz determinado efeito ou o discurso é distante no tempo. Nestes casos, o filólogo ocupar-se-á da hermenêutica.

Além de provérbios e frases proverbiais o Quijote inclui outros tipos de parémias.

a) As sentenças ou máximas são fraseologismos que contêm uma doutrina aceite como norma de moral e têm significado literal, não idiomático. Por exemplo, as frases que procedem das Sagradas Escrituras, convertidas em máximas, como:

según oí decir a mi señor, que más vale el buen nombre que las muchas riquezas.(Sancho, II, 33)// "mais vale bom nome que muita riqueza" (A.III, 86).

b) Os dialogismos são refrões dialogados. Nas duas fórmulas, equivalentes, que se seguem, repreende-se aquele que, tendo un defeito, se escandaliza pelos defeitos dos outros, às vezes de menor importância.

"lhe aplique o ditado: disse a sertã à caldeira, tira-te para lá que me enfarruscas" (A.III, 340).
Paréceme [ ...] que vuesa merced es como lo que dicen: Dijo la sartén a la caldera: Quítate allá, ojinegra". (Sancho, II, 67)

3. -A integração do provérbio no discurso realiza-se segundo determinados procedimentos formais que explicitam a existência da fórmula sentenciosa. No Quijote recolhemos as seguintes modalidades:

a.- Procedimentos pouco explícitos, como os tipográficos, com que o tradutor marca o provérbio. A tradução de Aquilino Ribeiro apresenta, ainda que com alguns esquecimentos ou erros, os provérbios em itálico.

b.- Os provérbios são introduzidos por bordões ou caracterizações verbais que conseguem com que a autoridade se translade em colectividade. Fórmulas que Aquilino traduz de maneira aproximada:

Antes he yo oído decir [ ...] que quien canta, sus males espanta. (DQ I, 22).
"sempre ouvi dizer: quem canta seus males espanta" (A.I, 202).
Como dicen, váyase el muerto a la sepultura y el vivo a la hogaza. (Sancho I, 19).
"Já dizia meu pai: o morto ao chão, o vivo ao pão" (A. I, 172).
Tanto vales cuanto tienes, decía mi agüela (Sancho II, 43).
"Tanto vales, quanto tens, dizia a minha avó" (A.III, 147).

c.- Como mostraremos de seguida, a fórmula introdutória costuma conter um termo que alude ao provérbio: adágio, anexim, ditado, dito, provérbio e, mais frequentemente, rifão. São comentários metalinguísticos que, às vezes, não se encontram no original espanhol e que Aquilino acrescenta.

Adágio:

[ ...] y así se cumplió el refrán en ellos de que pagan las veces los justos por pecadores. Cervantes, I, 7).

"[ ...] cumprindo-se o adágio de que às vezes paga o justo pelo pecador" (A.I, 69).

Anexim:

[ ...] antes, por cumplir com el refrán que él muy bien sabía de cuando a Roma fueres, haz como vieres. (Cervantes, II, 54).

"[ ...] antes para se pôr em regra com o anexim que ele sabia de cor e salteado: Por onde vás, assim como vires assim farás"(A,.III, 239).

Ditado:

[ ...] si es verdadero el refrán que dice: Dime com quien andas y decirte he quién eres. (Sancho, I, 10)

"Lá reza o ditado: dize-me com quem lidas, dir-te-ei as manhas que tens" (A.II,240);

[ ...] se debió de atener al refrán que dicen: que para dar y tener, seso es menester. ( Sancho II, 58).

"Lembrou-se do ditado: para dar e ter, siso se faz mister" (A.III, 263);

Em alguns casos são evocados vários provérbios sucessivamente:

[ ...] sabiendo un refrán que dicen por ahí, que un asno cargado de oro ligero sube por una montaña y que dádivas quebrantan peñas, y a Dios rogando y con el mazo dando, y que más vale un toma que dos te daré. ( Sancho, II, 35).

"[ ...] devendo saber o que reza o ditado: burro carregado de oiro sobe ligeiro por um monte acima; dádivas quebrantam penhas e vale mais um toma que dois te darei" (A.III, 100).

Dito:

Paciencia y barajar. Y esta razón y modo de hablar no la pudo aprender [ ...] ( primo, II, 24).

"Toca a baralhar e dar cartas não é dito que tenha aprendido [ ...] " (A. III, 10)

Provérbio:

Lo que comúnmente se dice, que debajo de mi manto al rey mato. (Cervantes. Prólogo).

"[ ...] conheces o provérbio: por diante, faço e acato; por detrás, o rei mato," (A.I, 18);

[ ...] el cual cumplió com ellos nuestro refrán castellano que aunque la traición aplace, el traidor se aborrece. (el cautivo, I, 39)

"[ ...] que practicou para com eles a moral do provérbio: paga-se o rei da traição, do traidor não" (A.II, 38):

es común provebio, fermosa señora, que la diligencia es madre de la buena ventura (DQ I, 46).

"É provérbio corriqueiro, formosa senhora, que a diligência é a mãe da fortuna" (A.II, 108).

Rifão:

[ ...] aunque mejor cuadra decir: más vale salto de mata que ruego de hombres buenos. (Sancho I, 21).

"Também não quadra mal este rifão: salta o barranco e não rogues o santo" (A. I, 197);

Hay un refrán en nuestra España, a mi parecer, muy verdadero, como todos lo son, por ser sentencias breves sacadas de la luenga y discreta experiencia, y el que yo digo que: Iglesia, o mar, o casa real (el cautivo, según su padre, I, 39).

"Há um rifão na nossa Espanha, segundo o meu modo de ver verdadeiro como os que o são, tirado da longa e sábia experiência, que diz: Igreja, mar ou casa real." (A.II, 33);

[ ...] se debió de atener al refrán: De paja y de heno [ .. DQ, ] II, 3).

"Por lá se lembrou do rifão: meu ventre pleno, sequer de feno" (A.II, 198);

[ ...] ateniéndose al refrán que dice: cada oveja com su pareja. ( Sancho ,I, 19).

"[ ...] atida ao rifão: cada ovelha com sua parelha, cada um case com seu igual". (A.II, 312).

[ ...] atendiendo al refrán : Haz lo que tu amo mande y siéntate com él a la mesa.( Sancho, II, 29).

"Reza o rifão: sê moço bem mandado, comerás com teu amo o bocado" (A.III, 47);

[ ...] que maguera tonto, se me entiende aquel refrán de, por su mal le nacieron alas a la hormiga. (Sancho, II, 33).

"O meu entendimento é cerrado, mas vejo muito bem onde o rifão quer chegar: Dá Deus asas à formiga para que se perca mais asinha" (A.III, 83).

Desa manera no aprobará vuesa merced aquel refrán que dicen: Muera Marta, y muera harta. (Sancho II, 59).

"Dessa maneira [ ...] não aprovará Vossa Mercê aquele rifão que reza: morra Marta, morra farta" (A.III, 274).

Na língua portuguesa, como acontece noutras línguas românicas, o uso de um ou outro termo para este tipo de sentença de carácter popular, comum a todo um grupo social, breve, expressa em forma sucinta e geralmente rica em imagens, vem marcado por uma preferência de época o que faz com que hoje todas as denominações anteriores sejam susceptíveis de ser usadas.

Em relação à definição dos termos, nem as obras lexicográficas nem os estudos paremiológicos esclarecem muito. Tanto o Vocabulario Portuguez e Latino (1712-21) elaborado por R. Bluteau como o Dicionário da Língua Portuguesa (1949-1959) de A. Morais Silva ou O Novo Dicionário Aurélio da Língua Poruguesa (1986) apresentam definições que remetem de uns termos para outros e as distintas denominações � adágio, aforismo, anexim, ditado, parémia, provérbio, rifão, refrão � resultam sinónimas.

A falta que notámos na língua portuguesa foi a de um estudo sistemático que incluísse uma relação das denominações e a correspondente referência documentada antes e depois da fixação da língua, como fizeram, para nos referirmos ao domínio ibérico, Cotarelo (1917) para o espanhol e, mais recentemente, M. Conca e J. Guia (1993) para o catalão. Nesta linha parece-nos de utilidade dar testemunho dos termos relativos aos enunciados fraseológicos empregues na tradução do Quixote de Aquilino Ribeiro

4.- As traduções para a língua portuguesa

Com considerável atraso � quase dois séculos após a primeira edição (1605, 1� parte; 1615, 2� parte) � publica-se a primeira tradução para português (1794) da imortal obra de Miguel de Cervantes, El Ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha. Seria preciso questionar, à luz dos conhecimentos actuais, os motivos por que o livro universalmente admirado foi traduzido imediatamente para outras línguas europeias e não para a língua portuguesa, quando foi precisamente em Lisboa que se fizeram várias reedições (impressas por Jorge Rodrigues y Pedro Craesbeck) no mesmo ano da primeira edição impressa em Madrid por Juan de la Cuesta. Na minha opinião, não se deixou, nesse tempo, de ler, em Portugal, o Quixote mas, provavelamente, as línguas espanhola e portuguesa, mais próximas que hoje, não precisavam de tradução. É, em finais do século XVIII, que se começa a sentir a necessidade de ler a obra traduzida e se publicam seis pequenos volumes de tradutor anónimo que podia muito bem ter sido realizada por Francisco Rolland, o autor de Adagios, proverbios, rifãos e anexins da Língua Portugueza, volume também publicado pela Typografia Rollandiana em 1780.

Enumeramos, de seguida, a primera e sucessivas traduções para português:

1.-O engenhoso fidalgo Dom. Quixote de la Mancha por Miguel de Cervantes Saavedra, traduzido em vulgar Lisboa, na typografia Rollandiana, 1794. [Rollandiana]4

2.-Historia de D. Quixote de la Mancha por Miguel de Cervantes de Savedra. Edicção enriquecida com gravuras. Lisboa. Typographia Universal, 1853. [Typographia]

3.-O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha por Miguel de Cervantes Saavedra. (tradutores Vizcondes de Castilho e de Azevedo. O vol. II, tradutores Vizcondes de Castilho e de Azevedo e M. Pinheiro Chagas, com desenhos de Gustavo Doré, gravados por H. Pisan). Imprensa da Companhia Litteraria. Vol. primeiro, 1876. Vol. segundo, 1878. (Livraria Chardron, Porto, 1929; Livraria Lello, Limitada, Porto, 1933; as edições modernas do Círculo de Leitores). [Castilho]

4.-O engenhoso fidalgo D. Quichote de la Mancha por Miguel de Cervantes Saavedra. (Tradução do Visconde de Benalcanfor e Luis Breton e Vedra). Desenhos de Manuel de Macedo - Gravuras de D. José Severini. Editor-proprietário Francisco Arthur da Silva. Lisboa, 1877; 2� edição, Livraria Editora. Lisboa, 1930. [Benalcanfor, 1877) [Benalcanfor, 1930]

5.-O engenhoso fidalgo D. Quichote da Mancha por Miguel Cervantes de Saavedra. (Tradução de D. José Carcomo). Ornado com gravuras e impresso a cores. Biblioteca de Instrucção, Lisboa, 1888 ?.5 [Carcomo]

6.-Cervantes, D. Quixote de la Mancha. Livraria Editora Guimarães. Lisboa, 19056

7.-Miguel de Cervantes Saavedra, O engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha. (Tradução de Almir de Andrade e Milton Amado). Rio de Janeiro, Livraria José Olympo Editora, 1952. [Andrade]

8.-Miguel de Cervantes Saavedra, O engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha (Traduzido por Aquilino Ribeiro e ilustrado por Lima de Freitas). Edições Artísticas Fólio. Lisboa, 1954 � 1955. 2 Vols. [Fólio]

9.-Miguel de Cervantes Saavedra, O engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha (Versão de Aquilino Ribeiro). Livraria Bertrand. Lisboa 1959; 1960. [A.]

10.-Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha. (Tradução revista por S. Pinto). Éditions Ferni. Genève � Edição Amigos do Livro. Lisboa, s.d. [Pinto)

11.-Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote da Mancha. (Tradução de Daniel Augusto Gonçalves). Clássicos Civilização. Barcelos 1978. [Gonçalves]

12.-Miguel de Cervantes, Dom Quixote (Tradução: Albertina de Sousa). Clássica Editora. Lisboa, 1991. [Sousa]

13.-Miguel de Cervantes, Dom Quixote de la Mancha. (Tradução de Adelino dos Santos Rodrigues). Editorial Minerva. Lisboa, s.d. [Rodrigues].

Alguns provérbios são recolhidos em edições resumidas:

14.-Miguel de Cervantes Saavedra, D. Quixote de la Mancha. (Ilustrações de Alfredo de Moraes). Biblioteca Ideal da Casa Garret, Editora, Lisboa, 1921 [Biblioteca Ideal]

15.-Miguel Cervantes Saavedra, Dom Quixote de La Mancha (Tradução de João Meireles). Colecção Juventude, Editora Educação Nacional. Porto, 1938. (Nova edição, Ensaio preambular de Mário Gonçalves Viana. Adaptação e resumo de Joao Meireles, 1941) [Meireles, 1941]

Outras adaptações são muito livres e não incluem provérbios:

16.- D. Quixote de la Mancha para contar às crianças da Colecção Manecas, Lisboa 1927,

17.- D.Quixote de la Mancha, (Desenhos, adaptação e fotografia de A. Albarrán e A. Perera) Edinter, Lisboa, 1982.

Se a primeira tradução [Rollandiana] é quase idêntica à segunda [Typographia], as que se seguem apresentam características peculiares que na maioria dos casos são fiel reflexo da época. Aquilino Ribeiro, no prólogo à edição [Fólio], faz o seguinte comentário em relação às traduções de Castilho e Benalcanfor que, segundo o tradutor, carecem de naturalidade, mostrando ao longo da obra um pudor exagerado que o original não tem:

"Há em português traduções várias razoáveis. A pudibundaria de Castilho tolheu-o de ser exacto. O culto excessivo do vernáculo prejudicou-lhe também a naturalidade e deslize fluvial que tem o D. Quixote, sem cachopos nem borbotões. De tempos a tempos, empolgado pela ênfase dos pregadores e gongóricos de má morte, dá-nos um Cervantes tiré a quatre épingles, arrevezado e pomposo. Benalcanfor está mais perto do original, em despeito das suas insuficiências. Citar as de um e de outro, para quê? As pequenas inexactitudes ou traduções menos felizes como roto, para roto, em vez de maltrapido, quando roto escorregando para a gíria é sinónimo de pederasta, venta para venda quando é estalagem, zurdo para surdo, quando é canhoto, arriero para arrieiro quando é almocreve, etc., etc., breve dano podem trazer à obra lida em semelhantes textos. Mais grave é a falta de respeito pelo carácter de elocução, tendo-se obrigado a uma brancura de palavras que atraiçoam o texto na essência e na forma. D. Quixote não é livro, porém que se possa enfeudar a nenhuma Biblioteca cor de Rosa [ ...] " [Fólio, LXII].

5.- Apesar de, por motivos metodológicos e de espaço, nos ocuparmos da análise mais pormenorizada da tradução realizada por A. Ribeiro, cremos ser de interesse fazer um breve périplo por outras traduções do português, comparando os provérbios. No segundo exemplo, recolhemos, para além disso, quando existe, a fórmula introdutória.

[ ...] una golondrina sola no hace verano. (DQ , I, 13).
"Huma andorinha só não faz verão" [Rollandiana, I: 147]
"Uma andorinha só não faz verão" [Typographia: 46]
"Uma andorinha nao faz a Primavera" [A., I: 113]
"Uma andorinha só nao faz verao" [Benalcanfor,1877: 138], [Benalcanfor, 1930: 74]
"Uma andorinha só não faz primavera " [Castilho, 1876,I:80]
"Uma andorinha só não faz a primavera" [Castilho, 1933, :107; 1978,: 125]]
"Uma andorinha só nao faz verao" [Carcamo: 75]
"[ ...] uma andorinha só nao faz o verao" [Rodrigues: 90]
"[ ...] Uma andorinha só nao faz primavera" [Gonçalves: 80]
"[ ...] uma só andorinha não faz o Verão" [Sousa: 91]
"[ ...] uma simples andorinha nao faz a Primavera" [Pinto: 122]
"[ ...] uma andorinha não faz verão" [Andrade, I: 264]
[ ...] aquel que dice: Donde una puerta se cierra, otra se abre. (DQ I, 21: 465).
"que diz: Onde huma porta se fecha, outra se abre". [Rollandiana, 1 :275]
"que diz: Onde uma porta se fecha, outra se abre". [Typographia: 85]
"que diz: Aonde uma porta se fecha, outra se abre". [Benalcanfor, 1877: 205] [Benalcanfor, 1930:141]
"aquele que diz: "Uma porta se fecha, outra se abre". [Castilho, 1876, I, 139 ] [Castilho, 1933:189]
"quando afirma "Uma porta se fecha, e outra se abre". [Meireles, 1941: 75]
"porque são máximas tiradas da experiência e está n�este caso o que diz: mal uma porta se fecha, logo outra se abre".[Biblioteca Ideal, 1941:71]
"aquelle que diz: Aonde uma porta se fecha, outra se abre". [Carcomo, 139]
"aquele que diz: Onde uma porta se cerra, outra se abre.". [Rodrigues, 158]
"aquele que diz: Onde se fecha uma porta abre-se outra" .[Gonçalves, 128]
"aquele que diz: "onde se fecha uma porta, abre-se outra". [Sousa: 155]
"Um ruim se nos vai da porta, outro vem que nos conforta". [A., I: 187]
"Quando uma porta se fecha, outra se abre". [Pinto: 122]
"Onde uma porta se fecha, outra se abre". [Andrade, II, 385]

A selecção destes dois provérbios nas diferentes traduções proporciona dados interessantes para o linguísta, o filólogo e o tradutor. Nas variantes formais das fórmulas podemos observar:

-diferenciação ortográfica,
-sintaxe diferente,
-variante léxical: primavera/verão (cuja justificação está no facto de, em português e espanhol medieval e clássico, verão equivaler a primavera). Consideramos variantes todas as alterações formais de um fraseolexema que não modifiquem o seu significado.

No segundo exemplo há dois fraxeolexemas sinónimos que têm um significado equivalente mas variam na sua estructura lexical.: "Aonde uma porta se fecha, outra se abre" Aquilino traduz por "Um ruim se nos vai da porta, outro vem que nos conforta".

6.- Consideramos que o principal valor do trabalho que apresentámos � e que não dá nas vistas � é contar com um levantamento sistemático, em suporte digital , dos provérbios do Quijote e da tradução realizada por Aquilino Ribeiro. Os exemplos das correspondências aqui estudados, constituem uma pequena amostra desse repertório que não podemos, evidentemente, enumerar neste lugar. Propomos uma abordagem com vistas a uma futura sistematização.

6.1- Para comunicar a ideia de que por um pormenor ou amostra se conhece o original, uma das fórmulas mais utilizadas em espanhol é por el hilo se saca el ovillo que Cervantes põe na boca de Sancho, ou na boca de D. Quixote ou do narrador:

[ ...] por el hilo se saca el ovillo. (DQ, I, 4). // "pelos domingos se tiram os dias santos" (A.I, 55)

Por ese hilo que está ahí saque el ovillo de todo.(Sancho, I, 23). // "Só se for pelo fio que se chegue a desembrulhar a meada" (A. I, 215)

[ ...] por el hilo del gitano sacó el ovillo de su asno. Cervantes. I, 30). // "E, como pelos domingos se tiram os dias santos [ ...] " (A.I, 312)

[ ...] por el hilo sacaremos el ovillo. (DQ, II,12). // "Pela letra, avaliaremos dos seus pensamentos" (A.II, 256)

Otras traduções para português oferecem outros proverbios sinónimos:

"pela unha se conhece o leão" [Rollandiana, 46]
"pelo dedo se conhece o gigante" [Pinto, 61]
Por el hilo se saca el ovillo.
"pelos domingos se tiram os dias santos"
"pelo dedo se conhece o gigante"
"pela unha se conhece o leão"
Tradução literal. "Pelo fio desembrulha-se a meada"
Tradução do sentido pontual no texto."Pela letra, avaliaremos dos seus pensamentos"

Observando o quadro acima, verificamos que podem haver diversas fórmulas para um mesmo conceito. São provérbios sinónimos, existentes, ou que existiram na mesma língua e cuja ideia chave e significado estão próximos.

6.2.- A função fraseológica básica de eficácia e imediatez expressiva manifiesta-se ao longo da tradução de Aquilino. Na maior parte das correspondências que propõe, realiza uma tradução, em nossa opinião, "correcta" ao utilizar um provérbio equivalente, ou seja, com correspondência conceptual .

a).- Tradução "correcta" é a que apresenta Aquilino ao utilizar um provérbio equivalente com correspondência conceptual: Assim, para advertir que ninguém deve fazer nem falar daquilo que não entende:

1.- Quien las sabe, las tañe. (Sancho,II, 59)

"Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão? (A. III, 278)

Veja-se outro exemplo:

2.- [ ...] buenas son mangas después de Pascuas. (DQ, I, 31).

"O que se não faz em dia de Santa Maria, faz-se ao outro dia" (A.I ,316)

b).- Quero aludir ainda, com dois mais exemploas, aos provérbios equivalentes, formal e semánticamente similares, por motivo da relação de parentesco linguístico.

3.-A buen entendedor, pocas palabras. (Sancho, II, 37).

" A bom entendedor, meia palabra basta" (A.III, 112)

4.- No con quien naces, sino con quien paces (Sancho, II, 10). (DQ II,68).

"Não com quem nasces, senão com quem pasces" (A.II, 240). (A.III, 343)

c) .-Noutros casos surge a tradução literal. Não existe ou não encontrou ou, nessa ocasião, não o tradutor utilizou o provérbio equivalente. Conservam-se os elementos do provérbio espanhol, mas em português não se sente como tal. Tal ocorre com:

5.- [ ...] pues Dios Nuestro Señor se la dio, San Pedro se la bendiga.( DQ ,II, 56).

"[ ...] pois Deus vo-la dá, S. Pedro vo-la abençoe" (A.III, 254)

Em relação ao exemplo anterior, constatamos que o tradutor socorreu-se de diferentes opções. Provérbio equivalente (a) e tradução livre.

6.-[ ...] a quien Dios se la dé, San Pedro se la bendiga. (DQ I, 44).

"[ ...] Deus nao fia toucas, que tira a umas e dá a outras" (A.II, 102)

d) .- e tradução livre

7.-[ ...] a quien Dios se la diere, San Pedro se la bendiga. (DQ, II, 64).

"[ ...] e confiemos no juizo de Deus" (A. III, 323)

e).- A par dos acertos, há casos em que Aquilino não comprende a alusão ao provérbio ou não encontra o provérbio adequado e tradu-lo por uma expressão idiomática. Tal acontece com o último provérbio utilizado por Cervantes no Quijote, essencial, segundo Zuloaga (1997: 638), para compreender o alcance da obra:

8.-[ ...] en los nidos de antaño no hay pájaros hogaño.( DQ , II, 74).

"O que lá vai, lá vai." (A.III, 380).

A fórmula portuguesa ,"expressão de uma atitude resignada e compreensiva de aceitação, de perdão de coisas desagradáveis do passado" (Santos, 1990, 218), equivale sucintamente ao provérbio espanhol; no entanto, resulta numa menor riqueza expressiva porque a expressão idiomática não possui funcão icónica, (= não apresenta o conteúdo mediante uma imagem concreta de orden visual) e possui uma função lúdico-poética (= configuração fonoestilística) mais rudimentar.

Registar os provérbios e os diferentes dados de maneira objectiva, clara e útil é o objectivo principal da nossa linha de investigação. Dos vários campos que Julia Sevilla propõe para a sistematização de dados ("Propuesta de sistematización paremiográfica" [ Sevilla, 1991: 31-39] e cuja ficha-modelo está sendo enriquecida pela equipa que ela coordena), o nosso esforço, neste momento, está orientado no sentido de encontrar, a partir do corpus espanhol, a correspondência conceptual na língua portuguesa; por outro lado, e paulatinamente, da mesma forma que fazemos com o provérbio espanhol, elaborar um material que conste de diversos elementos: formalização do núcleo ou núcleos que conseguem a identificação por parte do utilizador, da estrutura rítmica e gramatical, etc.. Muitas são as dificuldades, e muito ambicioso o objectivo, se considerarmos as variedades da língua portuguesa e da língua portuguesa em diacronia. Mas apesar das dificuldades, é possível.


Bibliografia

BRAZÃO, J. Ruivinho, Os provérbios estão vivos no Algarve Lisboa, Editorial Notícias, 1998.

CASARES,J., Introducción a la lexicografía Moderna. Revista de Filología Española Anejo LII (Madrid, 1950)

CERVANTES, Miguel de, Don Quijote de la Mancha. Barcelona, Instituto Cervantes. Crítica, 1998.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de, O engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha (Versão de Aquilino Ribeiro), Lisboa, Livraria Bertrand ,1959.

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Notas

1. Paremiologia contrastiva (espanhol ,catalão, francês, italiano, português e provençal). Estudo linguístico e contrastivo aplicado à tradução e ao ensino de línguas, (DGES. PB-97-0322-C04) é um projecto de investigação espanhol do grupo de investigação coordenado por Julia Sevilla e subsidiado pelo Ministério de Educação e Cultura. Por outro lado a Direcção General de Enseñanza Superior do Ministério de Educação e Cultura de España apoiou (entre Janeiro e Julho de 99) o projecto Automatização de corpora textuais de enunciados fraseológicos: espanhol e português que levei a cabo sob a orientação de Elisabete Ranchhod no Centro de Automática da Universidade Técnica de Lisboa (CAUTL-IST).

2. A citação da tradução de Aquilino Ribeiro da editorial Bertrand contém a abreviatura A. (= Aquilino Ribeiro), o volume e a página. Citamos pela edição de Bertrand (1959) que na tradução é idêntica à publicada em 1954 pela editorial Fólio. Difierem nas ilustrações e no prólogo de Aquilino, mais extenso na Fólio.

3. A citação do original espanhol contém: as siglas da personagem que emprega o provérbio (D.Q. = Don Quijote; as restantes personagens não aparecem com abreviatura); a parte (I ou II) do livro e o capítulo da Edição, em papel, do Instituto Cervantes. Barcelona, Crítica, 1998.

4. O parêntesis recto que aparece no final de cada edição refere-se à abreviatura utilizada nas citações deste trabalho. As citações contêm também o número da página.

5. Na publicação não aparece a data de publicação; mas indica essa data o trabalho de Cordeiro de Sousa, "El Quijote en la B.N. de Lisboa" in Revista de Archivos, Bibliotecas y Museos LXII, 2 (Madrid,1956).

6. Nas bibliotecas públicas portuguesas, só encontrámos o primeiro fascículo. O trabalho de Cordeiro de Sousa de 1956 não regista esta edição comemorativa do tricentenário da primeira edição.

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