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O processo cognitivo de mesclagem
de vozes na interação lingüística em português

 
Valeria Coelho Chiavegatto
(UERJ/UGF)

1.Introdução

Este trabalho apresenta resultados parciais do Projeto de Pesquisa "O processo cognitivo de mesclagem de vozes".1 Temos como objetivo desenvolver, sob o prisma sócio-cognitivo para análise da linguagem ( Salomão 1999) , alguns dos aspectos teóricos através dos quais estamos investigando correlações entre processos cognitivos e construções lingüísticas no português do Brasil. Enfocamos o processo de embutimento de "outras vozes" à voz do sujeito discursivo na construção da argumentação em situações reais de comunicação.

Fundamentados especificamente na Teoria dos Espaços Mentais, tal como a propõem Fauconnier (1994,1996,1997), Turner (1996), Fauconnier e Sweetser (1996) , Sanders e Redeker (1996), temos como fonte de observação do fenômeno os trechos em que "outras vozes" foram "perspectivizados" pelos sujeitos que detêm os turnos conversacionais nas conversas do Corpus Audio-Gravado do Projeto Prática Reflexiva � Pró-Leitura � coletado pela Universidade Federal de Juiz de Fora- MG (Brasil).

Quando analisávamos o funcionamento dos "Introdutores de espaços mentais em relatos de opinião em português " (os "space builders" conforme Fauconnier 1994) em relatos de opinião em português, verificamos que tais textos expressam a perspectiva dos sujeitos acerca dos fatos, eventos ou falas sobre os quais argumentam, empregando duas modalidades discursivas distintas:

1� - em perspectiva única � enunciados em que a argumentação é construída apenas sob a perspectiva do sujeito discursivo; e

2� - em perspectiva múltipla�enunciados em que "outras vozes" (ou perspectivas) são incorporadas à voz do sujeito discursivo para construção da opinião que expressam.

Nos textos que se constróem em perspectiva múltipla, observamos que, em língua portuguesa, há diferentes formas gramaticais disponíveis para que o sujeito do discurso incorpore "outras vozes" à sua voz . Esta incorporação se projeta na superfície dos enunciados sob a forma lingüística de "citações" que, ora se embutem na voz do sujeito com introdutores de espaços mentais explícitos � verbos dicendi ou alguns marcadores discursivos para introduzir citações � ora implícitos, em que o reconhecimento dessa incorporação depende de inferências pragmáticas processadas pelos interlocutores na situação comunicativa em que os enunciados se atualizam.

Em qualquer dessas formas de expressão de perspectivas, processos cognitivos complexos pré-figuram a representação dessas "outras vozes" na fala do sujeito discursivo, pois há o intercruzamento de informações arquivadas em diferentes domínios cognitivos2 e espaços mentais3 nos quais esses elementos se combinam, suscitando significados originais decorrentes de inferências processáveis a partir da forma discursiva escolhida para tal embutimento. Tais formas permitem que os interlocutores percebam o maior ou menor grau de comprometimento (ou liberdade) do sujeito acerca do conteúdo dos enunciados das vozes que importa para a sua.

2. Estruturas conceptuais e sua representação

Na perspectiva teórica proposta Fauconnier (1994), Fauconnier e Turner (1996) e Fauconnier e Sweetser (1996) e Fauconnier (1997), os significados são entendidos como construções mentais que se processam a partir de instruções fornecidas pelos sinais lingüísticos � as formas da língua. Entendendo os diferentes níveis de estruturação da gramática como partes integrantes do conhecimento que os sujeitos têm arquivados na mente, partimos do pressuposto que as formas lingüísticas não são portadoras de significados, mas guias para a construção de significações em domínios mentais.

Assim considerando, entendemos que os enunciados produzidos ativam correlações entre as formas lingüísticas e estruturas de conhecimentos, de diferentes naturezas, arquivados na mente dos indivíduos desde a mais tenra infância. Tais estruturas passam a estar disponíveis na mente dos indivíduos � como arquivos cognitivos - a partir do compartilhamento de experiências físicas, psíquicas, sociais, culturais e lingüísticas que são processadas pelos indivíduos nas interações que se efetivam nas comunidades às quais se integram.

Tais conhecimentos são esquematicamente organizados por áreas ou domínios cognitivos, estruturados quer como: "esquemas imagéticos" ( Johnson 1981) , "modelos cognitivos idealizados" (MCIs de Lakoff 97), "enquadres, scripts ou cenários" ( Fillmore 1988). Essas estruturas compõem arquivos mentais permanentes de compactação de conhecimentos. Tais arquivos são acessados e ativados por formas gramaticais ou inferências pragmáticas que se efetivam na interação comunicativa e se integram ao processo de construção dos significados a que as formas lingüisticas remetem. .

Além dessas estruturas permanentes para a construção dos significados, há estruturas provisórias � os espaços mentais � propostos por Fauconnier 1994. Esses espaços são estruturas transitórias de organização da representação do pensamento em uma forma lingüistica. Eles emergem na mente à medida em que pensamento e fala progridem, como "arquivos de trabalho" nos quais as formas lingüïsticas são pré-organizadas para serem projetadas nos enunciados.

Esses espaços são estruturas mentais instáveis, transitórias, pois se desfazem, tal qual "bolhas de sabão no ar", tão logo a seqüência lingüística seja atualizada. Na continuidade do discurso, outros espaços emergem, interligados, numa rede tão dinâmica quanto complexa, pré-organizando a construção dos discursos.

Fauconnier 1994 os propõe como constructos teóricos através dos quais podemos representar (para descrever e explicar) o dinamismo dos processos de referenciação nas línguas naturais e como tais, são localmente processados, dinamicamente estruturados e encadeados uns aos outros, formando uma teia de elos ( links) através das quais nos "movemos" para produzirmos e compreendermos os significados que os enunciados veiculam.

Como um espaço pode gerar outros espaços, linhas imaginárias estabelecem ligações (links) entre eles, entre estes e os domínios cognitivos que acessam ou às situações comunicativas às quais se integram. No desenvolvimento do discurso, espaços de diferentes naturezas entram e saem de foco, tal qual a dinâmica dos processos de pensamento que se representam na linguagem.

Como configuram o dinamismo dos processos de produção e de interpretação dos enunciados lingüísticos, não são estruturas completamente prontas, mas sim, parcialmente estruturadas por informações importadas de diferentes domínios ou por inferências processadas na situação comunicativa na qual se inserem. A eles os sujeitos da interlocução podem adicionar, cancelar ou correlacionar elementos importados de outros espaços ou domínios.

Quando retomados em um ponto mais adiante no discurso ou em outro momento de interpretação, as informações adicionadas ou canceladas dão-lhes nova configuração. Tais possibilidades explicam porque, a cada leitura, nova interpretação pode surgir ou ainda, porque os falantes podem construir significados distintos a partir de uma mesma forma.

Fauconnier e Sweetser (1996:11) dizem que há uma complexa "rede de espaços" configurando os textos produzidos e também, que o efeito produzido pela emergência sucessiva dessas estruturas no processo de compreensão dos enunciados é o de nos "movermos" através dos espaços e dos "links" que os entrelaçam, como se ativássemos "discursos expandidos".

Tais espaços diferenciam-se pelo função que exercem na construção dos enunciados, a saber:

Espaço-base: o espaço em que se compactam o ego (o sujeito discursivo); sua perspectiva acerca da situação comunicativa que se apresenta ( os interlocutores, o tipo de evento comunicativo no qual se insere) e o ponto-de-vista a partir do qual vai representar os eventos em linguagem. Portanto, no espaço-base compacta-se a visão subjetiva do indivíduo que produz as formas lingüisticas.

Espaço-em-foco: o espaço que, gerado do espaço-base ou de outro espaço instaurado, concentra a informação relevante num dado momento de desenvolvimento do discurso, ou seja, o espaço que pré-figura a informação relevante a cada momento do discurso. Esses espaços, quase sempre emergentes a partir de introdutores de espaços-mentais que informam a sua natureza (de tempo, de lugar, de hipótese, de opinião, de crença, de dúvida, de citações, discursivos, etc) se sucedem nos enunciados e podem ser retomados e reativados no prosseguimento do discurso.

3. O processo cognitivo de mesclagem de vozes

Entendemos por "voz" a expressão lingüística através da qual os pensamentos de um sujeito se manifestam em combinações de signos comunicáveis entre os que com ele compartilham do mesmo sistema lingüístico. Portanto, entendemos "voz" como manifestação ideológica do sujeito que a produz, tal qual proposto por Bakthtin 1959/1997).4 Nessa perspectiva, a voz de um sujeito expressa a sua visão (vision) sobre os eventos que lingüisticamente representa (voice).

Em nossa abordagem, "voz" equivale à manifestação da "visão de mundo" dos sujeitos falantes acerca dos fatos ou eventos que lingüisticamente representa. Portanto, as vozes manifestas assumem, no discurso real, significados em função das "perspectiva" com que são apresentadas pelo sujeito que as produziu.

Assim considerando, partimos do pressuposto geral que os sujeitos produzem suas falas de um "ponto-de-vista particular a respeito da realidade referenciada", tal como expresso por Sanders e Redeker 1996:293.5 Assim, a "realidade" que os enunciados instauram são "construções epistêmicas e dinâmicas dos sujeitos discursivos" como amplamente conceitua Langacker 1991.

Na medida em que as falas emitidas estão intrinsecamente correlacionadas ao ponto de vista particular a partir do qual um sujeito representa seus pensamentos em linguagem, quando outras vozes são embutidas em sua voz, outra visão se instaura sob sua perspectiva. Sanders e Redeker apresentam tais processos da seguinte maneira:

Perspectiva é a introdução de um ponto de vista subjetivo que restringe a validade da informação a um sujeito particular ( uma pessoa) no discurso. Um segmento de discurso é perspectivizado quando seu contexto relevante de interpretação é limitado por uma pessoa, embedido no espaço que contém a realidade do narrador ( Sanders e Redeker, 1996:193)

Segundo os conceitos acima apresentados, no processo de integração de "outras vozes" à voz de um sujeito na construção de sua argumentação, estamos diante de um processo de perspectivização.

Na aplicação que Sanders e Redeker fazem da teoria dos espaços mentais para análise da estruturação de diferentes perspectivas em narrativas, na medida em que o espaço que comporta o ponto de vista do sujeito discursivo é o espaço-base (EB1), quando "outras vozes" (opiniões expressos como falas ou pensamentos) são importadas para o enunciado de um sujeito (EGO 1), os espaço(s)-base (EB2, EB3, etc ) nos quais as outras vozes estão configuradas se embutem no espaço-base matriz (EB1) do discurso produzido. Tal estruturação é representada como apresentamos a seguir:

Neste esquema temos:

EGO 1 : como sujeito discursivo que compõe o espaço-base matriz (EB1);

EB1 : espaço-base que comporta a perspectiva ou voz do sujeito discursivo;

EGO 2: o outro sujeito cuja perspectiva vem expressa a partir de EB2;

EB2 : espaço-base produzido pelo sujeito da "outra voz", uma espécie de espaço-base secundário embutido na construção da perspectiva de EGO 1.

No caso de enunciados que possam ser configurados como na sentença esquemática acima representada, são postos em correlação elementos que compõem as duas perspectivas expressas em EB1 e EB2, sob a gerência de EGO1 (sujeito do discurso). A EGO1 cabe a filtragem dos elementos a serem incorporadas à construção da sua própria perspectiva. Tal seleção leva em conta os fatores que EGO1 intenciona apresentar como elementos da construção da própria argumentação e da natureza da interação sócio-comunicativa na qual o processo se inscreve.

Assim, se EGO 1 é o "senhor" das perspectivas que apresenta quando embute "outras vozes em seu discurso" não é a efetiva "voz" de EGO 2 que objetiva apresentar, mas sim, utilizar-se de parte das informações que as outras vozes carreiam para engendrar as significações que pretende construir ao embuti-las em sua própria voz.

No espaço mental que configura o enunciado resultante, não há uma "clonagem" da perspectiva expressa por EB2, mas a importação de elementos que EGO 1 considerou relevantes no discurso de EGO2 para "mesclar" às suas e, a partir disso, engendrar a construção de novos significados no novo enunciado produzido.

Portanto, elementos dos dois espaços-base são postos em correlação. Alguns deles se conjugam, outros se excluem e outros, ainda, emergem das correlações novas que a "mesclagem" ativa. As informações que o novo espaço compacta acessam, pelo menos, dois domínios cognitivos diferenciados. É importante destacar que a mesclagem só é possível quando um terceiro espaço ativa homologias entre os elementos que se correspondem nos dois espaços input correlacionados. É a existência desse espaço genérico (EG) que permite o emparelhamento de informações entre os dois espaços de partida (inputs 1 e 2 ).

Os conhecimentos no EG são informações gerais, esquemáticas, compartilhadas pelos dois espaços de partida instaurados. Entre eles, processos conceptuais efetuam correspondências metafóricas, deslocamentos metonímicos, projeções analógicas ou desanalógicas, interrelacionando elementos que compõem os dois espaços. Alguns elementos que compõem os espaços de partida são transferidos para um quarto espaço, estruturando parcialmente a mescla. .

Emergindo numa situação comunicativa diferente daquelas nas quais os espaços input foram produzidos, o espaço mesclado engendra a construção de novos significados. Embora herdando parte dos elementos significativos dos espaços dos quais partiram, a configuração do espaço mesclado produz matizes significativos diferenciados pois, a combinação dos elementos que o constituem é original.

Segundo Fauconnier (1996:194) , o processo de mesclagem é uma operação que permite explicar uma série de fenômenos lingüísticos e ajudar-nos a conhecer melhor a natureza das relações que existem entre construções lingüísticas e processos cognitivos. Entre as condições que devem ser satisfeitas para que um processo de mesclagem ocorra destaca:

1�- O mapeamento parcial das estruturas de parte e contrapartes dos espaços intercruzados nos dois espaços de partida: input1 e 2 ;

2� - O espaço genérico (EG) que se mapeia sobre cada um dos inputs, no qual se refletem as várias estruturas e organizações comuns entre os espaços de partida correlacionados. As estruturas que o compõem são, usualmente, mais abstratas, compartilhadas pelos espaços de partida e definidas como centro dos espaços intercruzados que são mapeados entre si;

3� - O espaço da mescla, onde os espaços de partida (I1 e I2) são parcialmente projetados, tem uma configuração distinta das estruturas proporcionadas pelos espaços dos quais partiu . Espaços mesclados são estruturas compósitas e originais pois, quando as projeções dos espaços de partida são tomadas no conjunto. Engendram-se novas relações utilizáveis, relações estas que não existiam em separado nos espaços de partida.

As informações transferidas dos espaços de partida passam a ser vistas como parte de um ampla estrutura auto-contida na mescla, herdeira parcial dos significados envolvidos para sua construção. Os novos sentidos são construídos a partir do completamento dessas estruturas por conhecimentos anteriores, enquadres, modelos cognitivos idealizados e esquemas culturais que se projetam na estrutura compósita do espaço mesclado. Após elaborada e complementada no EG, a estrutura da mescla é re-elaborada por um trabalho cognitivo desempenhado no interior da mescla, de acordo com sua estrutura e lógica emergentes.

4.Mesclando vozes e visões

Enquadrado nas condições previstas por Fauconnier (1996), o processo de mesclagem de vozes combina a expressão da visão subjetiva do falante através do que é dito através da sua voz com a expressão da visão subjetiva que se representa na voz que importa para a sua. As diferentes modalidade através das quais o processo pode ocorrer estão relacionadas ao que, na construção do seu discurso, o sujeito discursivo pretende focalizar.

Focalização é um conceito introduzido por Genette 1980, na moderna narratologia, para distinguir a representação da experiência subjetiva de personagens cujas "visões" são apresentadas pelo narrador, da representação da voz que efetivamente se verbaliza nas histórias. "Visão" assume o sentido de sub-tipo de domínio epistêmico passível de ser verificado pelo que é dito pelo sujeito discursivo.

Quando um sujeito importa outra voz para construir sua argumentação, o faz de seu "ponto-de-vista". Portanto, a voz do outro é perspectivizada sob a gerência do sujeito discursivo, a quem cabe a responsabilidade pela escolha do modo de focalizar a voz do outro. Assumimos como Ball (1990), que refinou a tipologia de focalização proposta por Genette (1980) , que o narrador é sempre o focalizador.

Na interação lingüistica usual, o processo ocorre da mesma forma que o observado nas narrativas. A outra voz pode ser focalizada de diferentes maneiras a partir da visão do sujeito que gerencia o processo. Portanto, voz e visão se mesclam para construir novos significados nos enunciados resultantes.

Por enquadre entendemos o recorte com que um enunciado opera numa cena comunicativa maior na qual se insere. Traduzindo o que Fillmore 1986 denomina de "frame", o enquadre é a moldura que circunscreve um enunciado produzido por um sujeito. Portanto, cada voz é um recorte de uma cena comunicativa empreendido pelo sujeito discursivo. .

Assim, os espaços que se mesclam põem em correspondência:

1.um EGO : o sujeito produtor de um enunciado);

2.um ENUNCIADO : o que efetivamente foi dito , manifestação, portanto, da voz de um sujeito determinado;

3.um ENQUADRE : um recorte na cena comunicativa mais ampla na qual a voz emitida se insere.

Portanto, na mesclagem de vozes, desde o espaço genérico, as correspondências se efetivam entre um sujeito genérico � alguém que emite sua voz (EGO); um enquadre genérico, emoldurando todo e qualquer enunciado produzido; e o conteúdo que enunciados em si veiculam.

No processo de mesclagem de vozes:

- perspectivas de dois sujeitos se emparelham: a da voz de EGO1 e a da voz de EGO2 sob a gerência da visão de EGO1. Portanto, o conteúdo dos enunciados que os dois sujeitos produzem também são postos em correlação e alguns se seus aspectos são selecionados para virem constituir o significado no espaço mesclado;

- enquadres diferenciados : um da situação ou evento na qual a voz importada se insere; outro, o da situação ou evento comunicativo que está em desenvolvimento. Somente um deles é transferido para a mescla, engendrando um enfoque original diferente dos estabelecidos nos enquadres de partida;

- no quarto espaço, mesclando aspectos dos espaços de partida e herdando parte dos significados que veiculam, seu significado é complementado na nova situação comunicativa em que as vozes se mesclam.

Discordamos do que propõem Sanders e Redeker (1996), para os quais, no processo de perspectivização há um espaço-base que se embute no espaço�base que configura a voz do sujeito discursivo. O que acontece é um processo de mesclagem tal qual descrito neste trabalho em que, dependendo da modalidade discursiva escolhida pelo sujeito para sua efetivação, as transferências efetivadas são diferenciadas e, em decorrência, as inferências que engendram seus significados na nova situação, também. Vejamos:

No modo direto, EGO1 restringe a validade da informação à perspectiva de EGO2 ao focalizá-la com introdutores de espaços mentais de citação explícitos, não se comprometendo explicitamente com o que é dito no ENUNCIADO 2 pois, é a partir da visão de EGO2 (ENQUADRE 2) que a "outra voz" é representada.

No modo indireto, embora o ENUNCIADO 2 venha sintaticamente transformado para ser embutido no ENUNCIADO 1, é sob o ENQUADRE 1 ( a visão do sujeito discursivo) que é a outra voz é representada. Como significado decorrente dos elementos importados para a mescla, temos a divisão de responsabilidades entre os sujeitos discursivos e da outra voz. Logo, EGO1 se compromete parcialmente com a voz que importa para a sua.

No modo indireto-livre, como o ENUNCIADO 2 é integralmente apresentado como se fosse de EGO1 , sem marcas sintáticas do embutimento, é sob o ENQUADRE 1 que é apresentado. Assim, é sob a perspectiva (visão subjetiva) de EGO1 que o ENUNCIADO 2 é representado ( ENQUADRE 1) . Não há, portanto, focalização de que foi um outro sujeito quem o proferiu. Tal modalidade engendra inferências sobre um total comprometimento de EGO1 com o conteúdo da voz de EGO2 que importa para a sua, pois, é sob sua própria "visão" que a representa.

No processo de mesclagem, o domínio do "dizer" (VOICE) e o do "representar" (VISION) se representam em modalidades discursivas diferenciadas: a direta, a indireta e a indireta-livre. Como os elementos transferidos em cada uma dessas modalidades são diferenciados, suas combinações engendram as inferências que processamos acerca do grau de comprometimento do sujeito com as falas que mescla às suas, processo que a configuração apresentada a seguir, a título de exemplificação de análise, permite observar.

Configuração de mesclagem de vozes no modo direto.

O enunciado resultante do intercruzamento de vozes, além de reproduzir parcialmente alguns dos significados suscitados pelas vozes dos sujeitos que foram intercruzadas, permite que outros significados sejam construídos na situação comunicativa na qual se atualiza.

5.Conclusões

Diante do exposto, se há formas gramaticais distintas para atualização desse "embutimento" e estas são governadas pela "perspectiva" do sujeito discursivo, não estamos, efetivamente, diante de um processo "polifônico" (Bakktin 1997/1959) � pois não são as perspectivas das outras vozes que se manifestam, mas sim a voz de um único sujeito que delas se apropria para expressar a sua "visão" sobre os fatos que representa na linguagem.

Ao efetivar a mesclagem de sua voz a outras vozes, o sujeito discursivo instrui a interpretação de seu comprometimento com a voz que importa para a sua, a partir do modo discursivo que escolhe para manifestar tal processo. Além da seleção de informações que efetua na voz do outro em função da argumentação que pretende construir, a forma que escolhe para efetuar tal embutimento engendra inferências sobre as relações que se processam entre a perspectiva do sujeito discursivo e a das vozes que embute na sua ao ser cotejada com a nova " moldura comunicativa"6 na qual se atualiza.

Assim entendendo, verificamos que a modalidade formal para atualizar a mesclagem no discurso funciona como guia epistêmico para as inferências a serem processadas pelos interlocutores. No processo de interpretação dos enunciados, a modalidade discursiva - ora no modo direto, no indireto ou no indireto livre � deixa, portanto, transparecer o grau de adesão ( ou não) do sujeito discursivo com os significados que as " outras vozes" que incorpora às suas veiculam.


Referências Bibliográficas

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Notas

1. Parte do Projeto Integrado do Grupo de Pesquisa Gramática e Cognição: "O processo cognitivo de mesclagem na análise lingüistica do discurso" do Grupo de Pesquisa Gramática e Cognição (UERJ/UGF,UFJF,UFRJ), no qual atuam como bolsistas PIBIC-UERJ : Isa Lúcia Lucia Brandão de Medeiros (CNPq-UERJ-1999), Vanessa Villarinho (Pibic-UERJ-1999) e Ana Angélica de Souza Ribeiro (Pibic-UERJ� até 07/1999).

2. Domínios Cognitivos: constructos teóricos que permitem representar estruturas permanentes de armazenamento de conhecimentos por áreas de sentidos, arquivados na memória dos indivíduos, e pré-disponíveis para a construção dos enunciados lingüisticos

3. Constructos teóricos que representam os processos de organização de pensamentos em linguagem, parcialmente estruturados por importação de elementos de domínios mentais, pré-organizando os processos de referenciação. (Fauconnier e Turner 1996, Fauconnier e Sweetser 1996), Fauconnier (1994, 1997).

4. Portanto, não estamos conceituando voz de um ponto de vista acústico-articulatório no qual é entendida como qualidade de ondas sonoras produzidos ou percebidos pelos humanos (Robins, 1981:105).

5. Perspective is the introduction of a subjetive point of view taht restricts the validity of the presented information to a particular subject (person) in the discourse. A discourse segment is perspectivized if its relevant contexto of interpretation is a person-bound, embedded space within the narrator's reality ( Sander e Redeker 1996:293) :

6. Moldura comunicativa está sendo sendo usada no sentido de "frame" de Filmmere (1988) , que estamos traduzindo por "enquadre".

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