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O ENSAIO NA OBRA DE JOS� CARDOSO PIRES*
 
Petar Petrov
Universidade do Algarve (Portugal)
Universidade de Sófia (Bulgária)

1. De um modo geral, os estudos existentes sobre a obra de José Cardoso Pires quase nunca referem a importância da sua produção ensaística. No entanto, alguns dos seus ensaios constituem verdadeiros textos doutrinários, e isto porque se relacionam directamente com a sua experiência artística. Trata-se, na maioria das vezes, de reflexões que comportam dimensões metaliterárias, quando questionam problemáticas de ordem sócio-cultural e ideológica em estreita conexão com aspectos estéticos.

É o caso, por exemplo, da Cartilha do Marialva (CM), ensaio datado de 1960, cujo conteúdo funciona como intertexto temático de um grande número de narrativas de José Cardoso Pires. Nela, o escritor persegue propósitos de radiografar alguns provincialismos existentes na sociedade portuguesa, ilustrando-os com exemplos reais. Dividida em quatro capítulos, a Cartilha estrutura-se em torno de considerações sobre a época do Iluminismo em Portugal, a essência do espírito do libertino e do marialva, bem como a presença deste na Literatura Portuguesa.

Assinale-se que o termo libertino, cunhado no século XVI, se associa ao "que de melhor, mais audacioso e mais válido nos legaria a Renascença italiana � o gosto pela vida terrena e o sentido do individual e do humano", o que "pressupõe uma intenção de modificar a vida em sociedade" (CM, p. 33). Ora, é exactamente neste aspecto que o espírito marialva difere do do libertino, como se pode deduzir da seguinte definição:

"Marialva é o antilibertino português, privilegiado em nome da razão de Casa e Sangue (...) No convencionalismo popular (...) é o fidalgo (...) boémio e estoura-vergas. Socialmente será outra coisa: um indivíduo interessado em certo tipo de economia e em certa fisionomia política assente no irracionalismo." (p. 11)

Com base nestas considerações, torna-se evidente que, contrariamente ao papel de progresso que subjaz ao perfil sociológico do libertino, o marialva está conotado com valores conservadores que se projectam em alguns domínios da realidade portuguesa, mais concretamente nas relações entre o homem e a mulher e entre o proprietário e o camponês.

No primeiro caso, estamos perante uma postura machista, assente na supremacia do homem no plano social. Na perspectiva de José Cardoso Pires, num país como Portugal, espaço "civicamente menos evoluído" e dominado por um regime repressivo, "a obsessão sexual pode tornar-se como uma sublimação do desejo de autoridade ou como uma compensação de liberdade ou afirmação social transferida para o plano do indivíduo" (p. 69). Como resultado, temos o exibicionismo marialva, no qual o machismo constrói uma mitologia própria, baseada na desigualdade da parceria sentimental, onde a mulher fica registada como "ser fraco por natureza" (p. 81) e "condicionada pelas características biológicas que a reduzem a uma função maternal" (p. 153). Deste modo, "a glorificação das virtudes "femininas" organiza-se (...) em torno dos fundamentos pecado e instinto � dois fulcros donde se irradia por um lado a sagração da autoridade do Pater-Familias e, por outro, a sua superiorização social" (id.)

A referida autoridade exerce-se em forma de obediência e submissão ao marido, como mandam "os conselheiros da portuguesidade": D. Francisco Manuel de Melo em Carta de Guia de Casados, Almeida Garrett nas Viagens na Minha Terra, Júlio Dinis em Uma Família Inglesa, Eça de Queirós em Uma Campanha Alegre, Teixeira de Pascoaes em Arte de Ser Português, e outros no tempo da propaganda salazarista (cf. Cap. IV, pp. 131�172). Assim sendo, para a mulher resta somente a "responsabilização à escala do lar. Para lá disso prudência e mais prudência (...) Defenda-se a "Mulher dos três K", à qual está implícita a trilogia Donzela � Esposa � Mãe" (p. 156).

À superioridade relativamente à mulher, junta-se a arrogância com a qual o marialva encara qualquer tentativa de explicação científica do mundo. Provinciano por natureza, prefere o refúgio no campo, lugar de harmonia única e eterna, defendendo um ideário feudal nas relações da terra e do servo. Em contrapartida, encara a cidade como espaço de vícios, donde a desconfiança relativamente a um meio que privilegia transformações sociais e humanas da modernidade. Primitivo e violento, irracional e dogmático, o marialva, segundo José Cardoso Pires, é: "primo � sujeito (...) à tentação de aventuras fáceis; secundo, adepto convicto da desigualdade dos amantes; e, tertio, sectário da fornicação patriarcal, com a demagogia do "popular" e do "castiço", e com resíduos ainda das relações feudais senhor-servo" (p. 96).

O exame mais atento da produção literária de José Cardoso Pires, permite-nos afirmar que o tema do marialvismo encontra projecção num grande número de narrativas dos dois géneros cultivados: os contos e os romances. Trata-se de um caso típico de intertextualidade exoliterária e homo-autoral, porque o intertexto é, por um lado, de natureza não literária e, por outro, porque se manifesta explicitamente em vários textos do autor analisado (cf. Aguiar e Silva, 1988).

Veja-se, a este propósito, a ilustração do espírito marialva nas narrativas breves de José Cardoso Pires, nomeadamente em "Ritual dos Pequenos Vampiros" e em "Dom Quixote, as Velhas Viúvas e a Rapariga dos Fósforos" (cf. Pires, Jogos de Azar, 1963). A primeira tem como história um ritual de violação de uma menor por quatro jovens, motivado pelo propósito de livrar um deles da responsabilidade da sua re1ação anterior com a rapariga. É, ao fim e ao cabo, uma amostra de machismo primário, representado por pequenos monstros, cujo pacto revela o mecanismo subjacente à mentalidade que lhes dita os comportamentos. O esquema moral que daí decorre, apoiado em certos códigos de honra de proveniência religiosa e até legal, proclama a soberania do homem, reduzindo o adultério unicamente à infidelidade da mulher, encarada sempre como figura subalterna, conotada com o pecado original e inferior por natureza.

Quanto ao segundo conto, a problemática do marialvismo aparece explorada mediante a intromissão do narrador que, numa larga sequência em forma de monólogo, tece considerações sobre a questão. Do ponto de vista injuntivo, convém assinalar que se trata de uma estratégia que visa a desmistificação do machismo, representado no texto pelos "modernos militantes do amor". Recorde-se ainda o diálogo imaginado entre a Rapariga dos Fósforos e um marialva, cuja carga semântica remete para o primarismo da mentalidade machista e a prepotência exercida sobre a mulher, considerada, no caso, como objecto de conquista fácil.

No que diz respeito aos romances de José Cardoso Pires, o marialvismo surge como traço característico de várias personagens, como acontece com os protagonistas de O Anjo Ancorado e Balada da Praia dos Cães. Todavia, é em O Delfim, publicado em 1968, que temos a desmontagem do seu espírito, a assumir contornos muito nítidos no comportamento do engenheiro, que representa a mentalidade tradicional incapaz de se moldar aos valores contemporâneos. Recordamos que o protagonista é apresentado como herdeiro do poder numa linha de soberania, defendendo ideias paternalistas, conservadoras e racistas. Por outro lado, o desejo de afirmação do delfim deixa adivinhar o seu machismo quando se refere às mulheres, encaradas sempre sob o prisma da subalternidade. Apegado a valores caducos e ultrapassados, o herói do romance, por ser avesso a qualquer mudança, é uma figura deslocada do tempo actual e irracional na sua visão do mundo. No fundo, representa o anti-libertino que, pela sua ignorância, pelo seu ruralismo e resignação campestre, funciona como entrave ao urbanismo e ao progresso em geral (cf. Petrov, 1996).

2. Se a Cartilha do Marialva representa uma espécie de intertexto temático na ficção de José Cardoso Pires, um outro ensaio, intitulado "Memória Descritiva" e publicado em 1977 na colectânea E Agora José? (AJ), fornece pistas para a compreensão da técnica literária cardoseana. Apesar de ter sido escrito a propósito de O Delfim, o texto dá conta da consciência crítica de um prosador obcecado pelo modo de abordagem da realidade, algo que está patente em todo o percurso artístico de José Cardoso Pires.

O ensaio, rico em sugestões do âmbito estético, afigura-se-nos de interesse no que diz respeito à técnica de narração escolhida por José Cardoso Pires e, mais concretamente, às estratégias postas ao serviço da renovação da escrita realista que, como é sabido, ganhou estatuto especial na literatura oitocentista e no movimento neo-realista dos anos 40. Assim, e na perspectiva do escritor português, no realismo de um Eça de Queirós, por exemplo, está patente "um tempo rectilíneo que é o de uma ordem positivista de burgueses bem pautados (AJ, p. 183). Nesta medida, e no que toca ao modo de narrar, a precisão descritiva "resvala para o tom impositivo que anula os valores de sugestão e (...) impede a leitura de se tornar em si uma segunda criação" (p. 141). Preocupado com a margem de liberdade que cada tipo de narração concede ao leitor, José Cardoso Pires defende a estratégia de desconstrução espácio-temporal, factor indispensável para o despertar crítico do receptor. Assim, e no que diz respeito à narração de O Delfim, esta "marcha a custo e com dúvida num amontoado de transgressões à ordem "natural" do método descritivo e com desarticulações em tempo/espaço, metonímias, hiatos, suspensões (...). Daí o carácter polissémico (...) de certos trechos de leitura" (p. 175). A desconstrução pretendida também se relaciona com o modo de articulação das sequências narrativas, ou seja, com as estratégias ligadas à montagem do narrado. Veja-se, neste âmbito, a explicação fornecida por José Cardoso Pires:

"A mudança de enquadramento que o narrador ensaia (...), leva-o à sobreposição, umas vezes, e noutras à dupla imagem (...). Noutras ocasiões ainda muda de táctica, envereda (...) por paralelismos de acção (...) organizando os mesmos componentes dramáticos de maneira diferente como uma "aliteração", digamos, ou, segundo a nomenclatura estruturalista, como uma "visão estereoscópica." (p. 175)

Para além disso, temos uma postura narrativa consciente de que "a contradição engendra a verdade", cuja concretização se verifica mediante o recurso a paralelismos e "percussões de toda a ordem nas esferas de comportamento dos personagens" (p. 177), a distorções de planos de acção, a introdução de ubiquidades, anacronias, anisocronias, etc. Na mesma linha desconstrutiva, temos em O Delfim a presença de inúmeras associações de circunstância, provocando não só movimentações em espaço/tempo, mas também todo o tipo de manobras que atestam a escolha da posição do narrador, neste caso, o seu distanciamento interessado.

A juntar aos dispositivos narrativos que visam "acordar" o leitor, "afastando-o de uma comunhão sentimental com estória" (p. 146), em O Delfim encontramos também algumas intrusões pontuais do autor do romance, cuja intenção, no dizer de José Cardoso Pires, é arrancar o destinatário "para fora da mancha do texto ou muito simplesmente (...) explorar, por efeito, uma função fática" (pp. 146�147).

Evidentemente, e do ponto de vista injuntivo, qualquer organização narrativa, assente no enquadramento de uma pluralidade de acções com a sua disposição e hierarquização, afirma-se como uma operação selectiva e ideológica. No caso do romance em questão, a planificação do tempo, por exemplo, "corresponde a condensar ou a desenvolver os acontecimentos, a revesti-los de certas temperaturas, de suspenses, obsessões e redundâncias ou, pelo contrário, a minimizá-los pela ocultação, pela elipse ou quaisquer artifícios de descompressão" (p. 182). Deste modo, o tempo do discurso revela o modo como se adere à realidade e à sua organização nas suas descontinuidades e contradições; no fundo trata-se do "fluir de uma consciência ideológica, um ritmo de empenhamento ou de repulsa daquele que lê perante aquele que escreveu" (pp. 182�183).

Pela nossa parte, podemos afirmar que a estrutura de O Delfim veicula também o tema ligado à própria escrita, na medida em que o narrador investiga o seu fazer literário. O desvendar deste processo é concretizado pelo recurso à ironia e à auto-ironia, aos diversos registos enunciativos, e pela presença de vários comentários meta-discursivos que, ao questionarem as relações entre produção narrativa e realidade, contribuem decisivamente para a auto-representação da literatura.

Se as ideias expostas em "Memória Descritiva", relativamente à técnica narrativa de José Cardoso Pires, encontram plena realização no seu romance O Delfim, a consciência oficinal de escrita literária manifesta-se de modo particularmente agudo ao longo da evolução artística cardoseana. Recordamos, a este propósito, os seus primeiros livros de contos, Os Caminheiros e Histórias de Amor, publicados respectivamente em 1949 e 1952, cuja especificidade formal os afasta dos esquematismos do Neo-Realismo ortodoxo, conotado com uma retórica do concreto, adversa às potencialidades da linguagem literária (cf. Reis, 1983). Do ponto de vista semântico-pragmático, pode dizer-se que a prosa de estreia de José Cardoso Pires se compatibiliza com a visão neo-realista pelo elevado teor de crítica de uma sociedade, espaço de injustiças e desigualdades. No entanto, a sua escrita manterá o compromisso com a realidade de uma forma inovadora, com a adopção de uma postura particular de observação e representação. Assim, a nível expressivo, é de assinalar: a objectividade conseguida pela secura da linguagem que evita o supérfluo, a retórica balofa e os pormenores descritivos; a presença de diálogos coloquiais, com a exploração de diversos sociolectos que situam as personagens em contextos espácio-temporais precisos. A nível técnico-literário, verifica-se: o recurso a elipses que conduzem a uma singular economia narrativa; a caracterização indirecta das personagens pela eleição da focalização externa; o aproveitamento da técnica cinematográfica pelo privilégio do enfocamento visual do modo de contar.

Por seu lado, nos seus primeiros romances, O Anjo Ancorado (1958) e O Hóspede de Job (1963), que antecedem a publicação de O Delfim, José Cardoso Pires introduz novas técnicas de narração, tais como: violação da cronologia no plano temporal, com o recurso a analepses e prolepses; aprofundamento da técnica cinematográfica pela exploração do travelling; organização sequencial por alternância, com o abandono do princípio de causalidade; subestimação da história, com destaque para a personagem e não para a acção.

Por fim, os últimos romances de José Cardoso Pires, Balada da Praia dos Cães e Alexandra Alpha, publicados respectivamente em 1982 e 1987, representam um aproveitamento arquitextual do género do romance histórico, entendido no sentido lato. Do ponto de vista retórico, assinale-se a estratégia de multiplicação de enfoques pela adopção de diferentes pontos de vista, as frequentes intromissões do narrador relacionadas com as suas funções e a utilização de uma impressionante gama de processos transtextuais, com as quais se faz a revisão crítica de épocas determinadas, quase sempre sob o prisma da sátira, do humor e do sarcasmo (cf. Petrov, 1996).

3. A par do tema do marialvismo, devidamente radiografado em a Cartilha do Marialva, e da especificidade técnica de escrita literária, defendida em "Memória Descritiva", afigura-se-nos de interesse examinar um outro ensaio, publicado em 1977, cujo conteúdo dá conta de certas preocupações que regem o mundo ficcional de José Cardoso Pires após o 25 de Abril. Trata-se do texto intitulado "Prefácio Natural do Medo", inserido na colectânea E Agora José? (AJ), que pode ser interpretado como programa ideológico nas suas edições depois de 1974.

No ensaio em causa, escrito três anos após a Revolução dos Cravos, José Cardoso Pires chama a atenção para a "tonalidade do pôr-do-sol que se avizinha" na cena política portuguesa, porque, segundo o autor, "o fascismo português (...) continua livre graças à liberdade que conquistámos e que ele explora" (AJ, p. 284), liberdade esta relacionada, em primeiro lugar, com o banir do conceito de fascismo, assunto comentado na seguinte passagem:

"Talvez o fascismo em Portugal não tenha sido nada mais que uma palavra, uma corrupção verbal; uma simples imagem-fantasma do paternalismo de mão severa. Pelo menos, é o que se deduz da leitura do passado que nos está sendo imposta pelos comissários morais da democracia. Silêncio, há que escutá-los, aos novos homens-bons deste nosso fim de século: eles são a independência institucionalizada". (p. 285)

Repare-se na ironia com que José Cardoso Pires trata a tentativa de se corrigir a História, ironia detectada também na célebre expressão de Eduardo Lourenço, "o fascismo nunca existiu", com a qual amargamente se ironiza, no dizer do primeiro, "uma mentira vertical" (p. 285).

"Prefácio Natural do Medo" estrutura-se em torno de uma ideia central, anunciada em termos de "a reabilitação da repressão" (p. 286), cujo desenvolvimento obedece a uma exposição repartida em cinco partes, com considerações do autor e extractos de documentos, relatórios e notícias de jornais. O primeiro assunto que preocupa o escritor português é a manobra de se "diluir o passado" (id.), mediante o esvaziamento do seu conteúdo e a absolvição do seu lado criminoso. Tudo, segundo José Cardoso Pires, "pela margem mais pusilâmine da lei" (ibid.), o que contribui para o enraizar da desconfiança, o fomento do sectarismo e do desentendimento sociais. Nesta linha de pensamento, temos a "apolitização legalista do crime político e do terrorismo de Estado praticados pelos seus agentes directos" (p. 288), ou seja, o oficial acusado é apresentado como um "desprotegido", o "elo duma hierarquia onde (...) o pecado vai sendo transferido até que (...) se faz do diabo um anjo escarnecido e de Deus o culpado final" (p. 287). Daí "as hierarquias do sofisma", que têm a ver com a intocabilidade "dos grandes responsáveis da ditadura portuguesa" (p. 290) durante os governos de Salazar e Caetano.

Estreitamente relacionada com esta questão está a "dispersão da culpa", que ocupa as páginas dedicadas ao tópico "reumanizar os carrascos" (p. 292), nas quais encontramos reflexões sobre o destino dos agentes da polícia política, a PIDE. Na perspectiva de José Cardoso Pires, "a transferência em cadeia das responsabilidades" desses agentes, acaba por ser uma forma de "reumanização do pide" (p. 291). Assim, o seu papel sinistro e escabroso deixa de estar associado à imagem do perigo, para passar a assemelhar-se à de "um funcionário rotineiro e despolitizado" (id.). Deste modo, chega-se à "desmarginalização" do "agente da ex-polícia fascista", como outra etapa da reabilitação, com a qual se pretende "aproximar o pide da comunidade que sempre o marginalizou" (p. 297). Por fim, "a reabilitação ad judicem" (p. 300), é conseguida mediante as "maquinações dos legalistas" (p. 303), traduzindo-se na absolvição e na recuperação profissional de ex-polícias, "promotores de justiça, militares identificados com a extrema-direita" (p. 305) e "informadores de várias matizes � burocratas, industriais, operários, professores, sacerdotes" (p. 309).

Como resposta às preocupações cardoseanas expostas no "Prefácio Natural do Medo", funciona o romance Alexandra Alpha, datado de 1987, que é uma espécie de visão panorâmica da sociedade portuguesa dos anos imediatamente antes e depois do 25 de Abril. Essa sociedade é representada no texto por gente bem instalada, cuja caracterização remete para o imobilismo, comodismo, conservadorismo, duplicidade e falsidade. Um quadro um tanto fatalista, se se entender que este material humano simboliza parte da consciência crítica até ao 25 de Abril e a intelligentsia portuguesa depois desta data, ou seja, os potenciais governantes do novo sistema democrático que substituiu a ditadura. No contexto das narrativas de José Cardoso Pires esta é uma das mais incómodas, pela subtileza com que se desmistificam as ilusões de uma sociedade nova, que possui ainda muito da mentalidade da que desapareceu, teoricamente, com a Revolução dos Cravos.

Com o intuito de problematizar as tentativas de branqueamento do passado, José Cardoso Pires apresenta-nos o romance Balada da Praia dos Cães, galardoado com o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores no ano de 1982. O seu projecto ideológico, em manifesto diálogo com o teor do ensaio "Prefácio Natural do Medo", prende-se com propósitos de examinar criticamente a História portuguesa mais recente a partir de um facto real: o assassinato de um capitão do exército português, ocorrido em 1960 e perpetrado pelos seus companheiros, evadidos de uma prisão, onde estavam sob a acusação de cumplicidade numa intentona contra o regime político na altura. Construído em forma de narrativa policial, o romance apresenta dois planos narrativos: um centrado nas etapas de investigação da morte do capitão e outro a incidir sobre os acontecimentos compreendidos entre a data da sua fuga e o dia em que é encontrado o seu cadáver.

Do ponto de vista axiológico, o protagonista da investigação policial surge caracterizado como um homem solitário, obcecado e frustrado, cujo comportamento doentio se repercute na esfera da sua vida afectiva. Por seu lado, a personagem principal do segundo plano narrativo, pelo seu carácter machista e paternalista, vive em permanente conflito com os seus companheiros, o que será a causa do seu assassinato. O espaço social no qual se inserem as acções é marcado pela estagnação e o imobilismo, resultado da vigência de um regime fascista que impõe uma vivência em estado de terror e de medo. Em consequência, personagens, espaços e acontecimentos estruturam a temática central do romance que se pode sintetizar como a da opressão generalizada exercida por um sistema que promulga diferentes formas de violência e alienação (cf. Petrov, 1996).

Deste modo, a Balada da Praia dos Cães, ao apresentar uma sociedade "morta", de impossível revelação, corrobora ideologicamente as preocupações de José Cardoso Pires relativamente a um tempo histórico concreto, respondendo também a uma afirmação sua, apresentada em forma de nota no seu livro de contos, O Burro em Pé, em 1979:

"Muita coisa mudou no país que outrora foi comarca à margem e que hoje é pátria de homens felizmente. Mas há desmemória e mentira a larvar por entre nós e forças interessadas em desdizer a terrível experiência do passado, transformando-a numa calúnia ou em algo já obscuro e improvável." (p. 120)


Referências Bibliográficas

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de, Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina, 1988.

PETROV, Petar, O Realismo na Ficção de José Cardoso Pires e de Rubem Fonseca, Universidade de Lisboa (Tese de Doutoramento policopiada), 1996.

PIRES, José Cardoso, Os Caminheiros e Outros Contos, Lisboa, Edição do Centro Bibliográfico, 1949.

__________ Histórias de Amor, Lisboa, Gleba, 1952.

__________ O Anjo Ancorado, Lisboa, "O Jornal", 1984.

__________ Cartilha do Marialva, Lisboa, Dom Quixote/ Círculo de Leitores, 1989.

__________ O Hóspede de Job, Lisboa, "O Jornal", 1983.

__________ Jogos de Azar, Lisboa, "O Jornal", 1985.

__________ O Delfim, Lisboa, Círculo de Leitores, 1986.

__________ E Agora José, Lisboa, Moraes, 1977.

__________ O Burro em Pé, Lisboa, Moraes, 1979.

__________ Balada da Praia dos Cães, Lisboa, "O Jornal", 1982.

__________ Alexandra Alpha, Lisboa, Dom Quixote, 1987.

REIS, Carlos, O Discurso Ideológico do Neo-Realismo Português, Coimbra, Almedina, 1983.


Nota

* Este trabalho foi apoiado pelo Instituto Cam�es e pela Funda��o para a Ci�ncia e a Tecnologia atrav�s do Programa Lusit�nia.

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