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As Relações brasileiras de Almeida Garrett (*)

 
Carlos d�Alge

Ao examinarmos o Espólio Literário de Almeida Garrett, na Biblioteca da Universidade de Coimbra, deparamos com alguns documentos que comprovam as ligações do escritor com o Brasil. Entre estes documentos destacam-se os textos poéticos ou em prosa de ficção, e notas do próprio autor, sobre temas brasileiros. A partir da leitura destes textos notamos um interesse crescente de Garrett pelo Brasil, visto como um país onde surgia uma nova literatura e onde se instalava uma nova sociedade, tornada em breve independente do colonizador. Essa simpatia não só atinge o entusiasmo poético, mas torna-se coerente com o pensamento político do autor, que vê o Brasil como um refúgio, para quando se extinguissem as liberdades em Portugal.

Decidimos, pois, estudar os textos que provam as relações brasileiras, afetivas, literárias, políticas e sociais de Garrett. Examinamos a elaboração do Romanceiro, mostrando a sua gênese e o papel que nela representou uma ligação de infância do autor. Analisamos a ode O Brasil Liberto para documentar a posição ideológica de Garrett, face a sucessos que determinaram a independência brasileira. No Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa deparamos com a primeira crítica literária sobre a iniciante literatura brasileira. A denúncia contra os males do colonialismo está esboçada na história indígena Komurahy, cujo manuscrito só nos foi revelado em 1956, por iniciativa de José Osório de Oliveira.

Mesmo incompleta, a história sugere influências e posições que detectamos e que vamos confrontar, mais tarde, com o romance, também inacabado, Helena, que será a última palavra de Garrett sobre o problema colonial. Dois manuscritos, sob o título O Brasileiro em Lisboa, expõem idéias e estabelecem contrastes entre duas civilizações: a nova, americana; e a velha, européia. Mesmo tratando-se de obra menor, e no gênero de crônica mundana, nela achamos pontos de vista que se identificam com a crítica literária do Bosquejo e apresentam, também, um sabor de novidade, a exaltação do tropicalismo pelo abandono do velho modelo europeu.

Chegamos à conclusão de que as relações brasileiras de Garrett não se limitaram à sua vida familiar, política e social. Elas transcenderam o meramente afetivo e constituem, a par da simpatia pela literatura brasileira, uma irrecusável defesa da liberdade, ou melhor, do novo espírito que presidiu os movimentos políticos em torno de independência dos países americanos, e que, corajosamente, pôs a nu os males do colonialismo.

É, precisamente, no Romanceiro, que vamos encontrar alguns sinais da presença brasileira. Os primeiros elementos da poesia popular saboreou-os Garrett, menino, na Quinta do Sardão, quando ouvia da mulata pernambucana Rosa de Lima as estórias maravilhosas que falavam de mouras encantadas, de cavaleiros andantes, de belas infantas, de enfeitiçados, de D. Aleixo e D. Gaifeiros. Essa mulata havia sido trazida do Brasil pelo avô de Garrett, José Bento Leitão e vivia na Quinta do Sardão, ao sul do Douro, em companhia da avó do poeta, D. Maria do Nascimento, de suas tias e tio João Carlos. É o próprio Garrett quem evoca a figura de Rosa de Lima, em nota ao Frei Luis de Sousa, quando coloca na boca do personagem Telmo Pais palavras que ouvira na infância.

Foi durante o exílio na Inglaterra que Garrett decidiu, a exemplo de Walter Scott, que havia tornado populares, na Europa, os versos de menestréis e trovadores, coligir as lendas e romances populares portugueses. Não esquecera as lições da infância e muito menos as xácaras e lendas contadas pela "Boa Brígida" e pela "velha Rosa de Lima". É ainda em Angra, nos Açores, quando soldado, que encontra outra mulata brasileira, criada de sua irmã, e que lhe narra novos romances que vão enriquecer a sua coletânea. Tão precioso foi esse contato que, além de enriquecer o Romanceiro, salvou-o dum naufrágio, com o confessa Garrett no prefácio à segunda edição do romance Adosinda: "Mas este achado fez mais do que enriquecer, salvou-o porque ao partir para São Miguel, o deixei em Angra com a minha mãe, que Deus tem em glória, que desejava distrair com essas curiosidades que ela entendia e avaliava com tato perfeito e a sensibilidade elegantíssima de que era dotada, alguma hora das tantas em que já lhe pesavam durante as moléstias do último quartel da vida". Efetivamente, os manuscritos do Romanceiro salvaram-se por esse motivo. Outros trabalhos que Garrett havia despachado para Lisboa, pereceram no navio que os transportava e que naufragou na Barra do Douro. Entre estes, uma tragédia sobre o Infante Santo, um poema sobre o tema do Magriço e dos Doze de Inglaterra, e o segundo volume do tratado Da Educação.

Publicou Garrett a Adosinda, incluindo nos Romances Reconstruídos sete contos, entre eles estes o "Bernal-Francês" e a "Miragaia", e, finalmente, coligiu para o Romanceiro, segundo plano que esboçara, trinta e sete romances, a cinco dos quais deu forma literária. Entre os trinta e dois, destacam-se os romances mais populares e conhecidos no Brasil, "Dom Beltrão", "Dom Gaifeiros", "Dona Ausenda", "Dom Aleixo", "A Nau Catrineta", entre outros. Este último poderá advir da narrativa em prosa, incluída na História Trágica Marítima, sobre o "Naufrágio que passou Jorge de Albuquerque Coelho, vindo do Brasil, no ano de 1565". Para Garrett esta narrativa aproxima-se muito do romance "A Nau Catrineta".

Admitamos, pois, que, a título de exemplo, o romance ou xácara sobre o episódio do naufrágio de Jorge de Albuquerque Coelho, ouviu-o Garrett da cronista-mor da família, a "parda-velha" Rosa de Lima, que o aprendera em Pernambuco, onde eram bem vivas as histórias sobre naufrágios e episódios fantásticos como o da celebrada "Nau Catrineta".

Garrett seguiu fiel aos postulados da nova corrente literária, estudando o verdadeiro espírito português nas tradições do povo, a exemplo do que Scott e o bispo Percy fizeram na Inglaterra. Reuniu e restaurou as canções populares, as xácaras, solaus, romances e rimances, valendo-se dos amigos, das notas deixadas pelo Cavaleiro de Oliveira, e tendo como primeira fonte de inspiração Rosa de Lima, a quem evocará em outras ocasiões.

Aproximou-se, assim, Garrett do fenômeno literário elementar, na lição de Fidelino de Figueiredo, aprofundando a análise do folclore ou da cultura popular. Descobrindo a alma do povo e o seu tesouro artístico, "retemperavam os românticos a sua fibra nacional e encontravam uma inestancável fonte de motivos literários para a inspiração". Ou como já explicara o autor do Romanceiro: "Nenhuma coisa pode ser nacional se não é popular", no prefácio à segunda edição de Adosinda, em agosto de 1843.

O certo é que Garrett sempre olhou com atenção e interesse para a terra brasileira. O pretexto é político e literário. Insurge-se contra a colonização portuguesa na Índia e no Brasil, milita clandestinamente a favor da independência da terra americana. Em 1820 interroga, no Retrato de Vênus, a propósito da descoberta da América, se o sucesso teria sido útil ou prejudicial à Europa. Nesse mesmo ano compõe uma ode em favor da independência do Brasil, a que chama inicialmente de "A esperada e desejada união de Portugal e Brasil", mudando, mais tarde, o título, na compilação do manuscrito original, para "Abençoando o Brasil a causa constitucional de Portugal", conhecida, finalmente, na primeira edição da Lírica de João Mínimo, como "O Brasil Liberto".

No poema, Garrett denuncia o colonialismo e alimenta a esperança de que o Brasil, independente e constitucional, sob o reinado de D. Pedro, seria o "refúgio temporário da liberdade portuguesa", caso o Reino tombasse novamente no absolutismo. O interessante a assinalar, ao lado da temática, é o seu caráter profético. Portugal conduzira ao Brasil os grilhões do feudalismo. A colonização se processara criminosamente em busca de acumular riquezas e transportar o ouro para a metrópole. Torrentes de ouro que segundo Garrett "vieram subverter-se em Lisboa e Madrid".

A servidão feudal, tanto da metrópole como da colônia, é o entre-texto dos versos seguintes, nos quais Garrett, actante da revolução burguesa, endereça todo o seu ímpeto contra o feudalismo, que "ensombrava toda história portuguesa, salvo raras exceções, e estas no plano da cultura".

Vejamos os versos:

Oh, virgens plagas de Cabral famoso,
Se bárbaros outrora
Vos levamos grilhões, levamos ferros
(Que também arrastávamos).

A denúncia é posta pelo poeta em termos dialéticos. É todo um processo histórico que nega e afirma. Deixou-nos também Garrett, uma referência ao racismo da colonização brasileira, em versos, no poema inédito publicado por Augusto da Costa Dias, O Roubo das Sabinas. Com efeito, os versos 275 a 284 contêm duas contundentes afirmações contra a cobiça do ouro e destruição da igualdade natural do homem:

Malfadado Brasil; metal p'rigoso
Germe de crimes preço de mil vidas
Que de augusta razão por vil opróbio
A dif�rença da cor veda o ser de homem.
Em loução desalinho a Natureza
O pudor virginal só lhe orna as faces.

Repare-se nos versos "Malfadado Brasil; metal p'rigoso / Germe de crimes preço de mil vidas / Que de augusta razão por vil opróbio / A dif�rença da cor veda o ser de homem".

Esperançoso, Garrett convoca à causa da liberdade, portugueses e brasileiros, antecipando à data em que escreve a ode, dezembro de 1820, a independência do Brasil.

O Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa data de 1826. Nesse ano, Garrett escrevia o Bosquejo para servir de introdução ao Parnaso Lusitano ou Poesias Seletas, coletânea que seria "um extracto das melhores poesias de nossos clássicos". Disposto em sete capítulos o Bosquejo dedica o VI capítulo ao estudo da restauração das letras em Portugal, abrangendo o período que vai do meio do século XVIII até o seu fim. Neste capítulo, Garrett insere observações críticas sobre a literatura brasileira que então apenas se esboçava. Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Basílio da Gama, Frei José de Santa Rita Durão, são alvo da crítica garrettiana. Reconhece Garrett que a literatura de língua portuguesa começa a enriquecer-se com as "produções dos engenhos brasileiros", mas esperava que em uma vasta e rica região onde a natureza é tão pródiga, houvesse mais originalidade, imagens e estilos novos. Julga que a educação européia apagou o espírito nacional dos poetas brasileiros que "receiam de se mostrar americanos". São examinados, em seguida, os poemas Caramuru e Uraguai e as liras de Marília de Dirceu.

Do Caramuru destaca o episódio de Moema e critica Durão por não ter levado mais longe a inspiração sugerida por tão ricos cenários onde se desenvolve a história. O estilo é também observado pelos gongorismos que condena por afetação. O curioso é que do episódio de Moema, Garrett guardou bem o nome, já que o repetiu nos outros escritos "brasileiros". Com efeito, Moema aparece no romance Helena, na história do índio Komurahy e nas crônicas O Brasileiro em Lisboa. Em contrapartida, o Uraguai é elogiado por tratar-se do mais nacionalista dos poemas brasileiros:

O Uruguai de José Basílio da Gama é o moderno poema que mais mérito tem na minha opinião. Cenas naturais muito bem pintadas, de grande e bela execução descritiva; frase pura e sem afectação, versos naturais sem ser prosaicos, e quando cumpre sublimes sem ser guindados; não são qualidades comuns.

Embora Cláudio Manoel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga não lograssem alcançar a temática nacional, nem seus versos se ocupassem dos cenários da terra americana, nem por isso deixam de receber, de Garrett, uma palavra crítica. O primeiro é visto como um dos melhores poetas de Portugal (sic). Diz Garrett que o "Brasil o deve contar seu primeiro poeta". Não obstante predominarem nos seus sonetos "resquícios de gongorismo e afectação seiscentista", Cláudio Manoel da Costa, "deixou-nos alguns sonetos excelentes, e rivalizou no gênero de Metastásio, com as melhores cançonetas do delicado poeta italiano".

Gonzaga viria, na literatura portuguesa, logo depois de Antônio Dinis, pois "o lugar imediato nos anacreônticos pertence a um brasileiro". Esse brasileiro, conhecido pelo nome pastoril de Dirceu, é o autor de Marília, a quem Garrett reconhece méritos incontestes, pois encontra no livro versos de "perfeita e incomparável beleza", embora o censure não pelo que fez, mas pelo que deixou de fazer:

Quisera eu que em vez de nos debuxar no Brasil cenas da Arcádia, quadros inteiramente europeus, pintasse os seus painéis com as cores do país onde os situou.

O capítulo VI do Bosquejo tem uma palavra final sobre o malogrado Antônio José da Silva, o Judeu, de quem Garrett assinala algum talento, especialmente no Alecrim e Manjerona. Embora Garrett não registre nenhuma influência brasileira no dramaturgo, que nascido no Rio de Janeiro foi supliciado em Lisboa em 1739.

O certo é que o Bosquejo realiza uma análise crítica das primeiras obras marcadamente brasileiras, embora em outra análise, aparecida no mesmo ano em que Garrett publica o seu trabalho, de autoria de Ferdinand Denis, o Résumé de l�Histoire Littéraire du Portugal suivi du Résumé de l�Histoire Littéraire du Brésil, cite este historiador outros nomes de autores brasileiros do século XVII.

De onde proviria o indianismo de Garrett? Para Ofélia Paiva Monteiro, no exemplar estudo sobre a formação do poeta, além da leitura dos textos literários do século anterior, comentados no Bosquejo, junta-se a influência de outro livro de Ferdinand Denis, aparecido em 1824, em Paris, as Scènes de la nature sous les tropiques, et de leur influence sur la poésie; suivies de Camoens et José Indio. Ao contrário de Bouterwek e Sismondi, bem como de Garrett, que escreveram sobre autores brasileiros sem conhecer o Brasil, Ferdinand Denis, observa Guilhermino César, tradutor do Résumé, antes de escrever sobre os poetas brasileiros "veio devassar a terra com seus próprios olhos. Por três anos (1816-1819) percorreu parte do país, demorando-se principalmente na Bahia, onde enriqueceu sua experiência de rapaz. Conviveu com a mocidade baiana. Amou. Sofreu na solidão o desamparo do emigrado. Estudou. Observou. De modo especial, apreciou a natureza exuberante, os costumes estranhos, aprendendo a tolerar a rudeza do clima, o primitivismo e o agreste das coisas. Para empregarmos a terminologia de Araripe Júnior, foi o primeiro historiador "obnubilado" da literatura brasileira.

Com efeito, as Scènes de la nature propunham-se, a partir de dados brasileiros, mostrar os efeitos da natureza sobre a imaginação dos homens dos países quentes, revelando ao Europeu o partido poético que poderia retirar de cenas tão mal conhecidas. Denis incluiu no volume observações feitas a algumas tribos indígenas. Os capítulos XVIII e XIX são dedicados aos Machakalis, tribo a que pertencia um certo Koumourahy, fonte, conclui Ofélia Paiva Monteiro, da "história brasileira" de Garrett.

O episódio dos Machakalis e a história do índio Koumourahy são considerados precursores do indianismo romântico brasileiro para Léon Bourdon, citado por Guilhermino César na introdução ao Résumé.

José Osório de Oliveira, que publicou o fragmento, até então inédito, não atinou com a influência de Ferdinand Denis, na "história brasileira" de Garrett. Julgou que o indianismo do autor provinha da leitura, exclusivamente, do Caramuru e do Uraguai. À influência de Denis, poderíamos juntar, tendo como data da elaboração do Komurahy, o possível ano de 1833, o convívio com os estudantes brasileiros em Paris, notadamente com Porto Alegre, que certamente transmitiram a Garrett detalhes sobre a natureza brasileira. Acrescente-se também a ideologia de Garrett, contrária ao despotismo, à servidão do índio, aos prejuízos causados pela colonização, e à cobiça imperialista, que ele entrevê, por mais de uma vez, quer no poema O Brasil Liberto, quer no artigo Da Europa e da América, publicado n�O Popular, em que, violentamente, clama contra o feudalismo insaciável da opressão.

Voltemos ao Komurahy garrettiano. A história, como foi dito, ficou incompleta. Em outubro de 1833 Garrett retornava a Lisboa, deixando o exílio parisiense. Restabelecido o governo legítimo na capital do reino, terminariam os ódios e inimizades, nascido no desterro ou no Porto. Terminariam? Houve uma trégua, contudo, que permitiu a Garrett reorganizar a sua vida. Em paz com os políticos e vendo triunfar a causa da liberdade, não havia por que continuar em Paris. Interrompe as atividades literárias para dar lugar a novas e urgentes tarefas revolucionárias. Já anatematizara demasiadamente o governo, já lutara em prol da liberdade e contra todas as formas de obscurantismo. Não adiantava prosseguir na contestação dos malefícios da colonização. Novas missões lhe estavam reservadas na reforma das instituições. A saga do índio Komurahy ficaria para depois. Renasceria, muito mais tarde, em Helena, romance que, se terminado, poderia levar adiante o projeto mal esboçado no exílio.

A exaltação e a defesa do índio não se fazem em Garrett à maneira de Rousseau. Ao denunciar a injustiça social, exalta, simultaneamente, a causa da liberdade. Possivelmente lera os Essais de Montaigne, e conhecera as idéias do notável pensador acerca dos selvagens. Para o mestre francês, errada era a pretensão do europeu em julgar bárbaros e silvícolas. Bárbaros seriam os povos a quem o europeu alterou os processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificou.

Os silvícolas que visitaram a França e tiveram contato com o ensaísta conheceram os procedimentos da ente civilizada. O rei entreteve-se com eles. Uma das observações, anotada, entre outras, por Montaigne, vale a pena transcrever:

Observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (em sua linguagem metafórica a tais infelizes chamam "metades"); e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais.

A 1 � de abril de 1845 publicou-se em Lisboa o primeiro número da Ilustração, Jornal Universal, que Garrett ajudou a fundar e para o qual escreveu o prólogo. Divulgou ainda nesse número vários trabalhos literários: os versos de Metamorfose, que no livro de Fábulas e Contos, tem o nome de O Casquilho (janota); O Bernal-Francês; o artigo O Inglês; e a crônica em forma de carta O Brasileiro em Lisboa. Segundo Gomes de Amorim, Garrett já havia publicado este texto, com pequenas diferenças, no jornal Entre-acto, em 1837. A crônica vem assinada por Jacaré-Paguá. O título e o artigo são coincidentes, até certa parte, com o manuscrito de Garrett. Todavia o manuscrito deixa entrever uma segunda parte, ou melhor uma segunda crônica que não chegou a ser publicada.

O texto divulgado n�A Ilustração, assinado por Jacaré-Paguá, é vazado em forma de carta, do brasileiro que em Lisboa escreve à sua querida Moema, separado do objeto de sua adoração por milhares de léguas, e que se compraz a descrever o modo de vida lisboeta, na segunda metade do século, tecendo aqui e acolá algumas comparações, tão a gosto do escritor, entre as virtudes e defeitos do velho mundo em contraste com a jovem terra americana. Já no início da crônica, assevera o missivista que se divertia mais em Curitiba do que em Lisboa. O que pode parecer um disparate se compararmos, ao tempo, as duas cidades; o nome de Curitiba soaria exoticamente para o cronista. As frutas tropicais, que o escritor descrevera nas páginas do Komurahy, são aqui lembradas:

Fazes idéia tu, Moema querida, do que é uma laranjeira aqui? É um mesquinho e rasteiro arbusto comparado com as nossas. Aqui a natureza não coroou o ananás rei das frutas da terra, nem pendurou a jaca ponderosa do capitel dórico de verdura que sustenta a cúpula frondosa dos pomares...

Fala-se da vida lisboeta, dos vapores para Almada, do outro lado do Tejo, do ônibus para Benfica e para o Lumiar, e das Lojas que vendem gelados. Os banhos de barca da capital também são descritos pelo irreverente Jacaré-Paguá, que nos pinta uma cena do dia-a-dia lisboeta. Realmente, os banhos de barca estavam na moda, na segunda metade do século. Fala-se do Passeio, onde desfilam os elegantes, das comédias em voga, de Dumas e de Scribe, da música de Donizetti e das primas-donas. O dia vai ao fim e com ele a crônica. Despede-se o escritor de sua Moema:

Adeus, até o número seguinte, maracujá-açu do meu coração! Limonada refrigerante dos meus ardentes desejos, eu te bebo com o pensamento de cá desta aridez da velha Europa. Adeus!

Contudo, o manuscrito desta primeira crônica, a partir da página cinco, difere do original publicado. Até lá, mantém-se coincidente. A partir daí, Garrett insere comentários sobre a poesia brasileira, que queria portuguesa no desenho, mas americana no colorido. Retoma o mesmo ponto-de-vista do Bosquejo. Senão vejamos:

Sim senhor, queria o Brasil uma poesia brasileira � isto é, portuguesa legítima no desenho, americana no colorido. (...) Chateaubriand, Bernardin de Saint-Pierre e Cooper são os três modelos que os Brasileiros deviam estudar.

Garrett já aludira, no Bosquejo, ao analisar a lírica de Tomás Antônio Gonzaga, ao modelo captado do autor de Paulo e Virgínia.

Confessa o cronista que a Europa já está cansada da poesia e que os poetas devem procurar refúgio no novo mundo, onde Apolo fará de magnólias e de flores do cafezeiro a sua coroa de louros. Baco substituirá o vinho pela "bela cachaça" e os poetas terão à sua disposição "coco e bananas" que sempre é melhor do que "morrer no hospital como eles por cá morrem".

A mania pelos nomes tirados dos romances em moda é satirizada por Garrett nestas páginas manuscritas. Diz o cronista que "são os romances as novelas da moda as que presidem as fontes baptismais de Lisboa". Prevalecem os nomes castelhanos: Conceições, Piedades, Penhas, Pilares, Remédios ou os franceses por imitação das personagens do roman-fleuve de Eugene Sue. No manuscrito que daria corpo à segunda crônica de O Brasileiro em Lisboa, se publicada, estende-se Garrett na apreciação dos nomes. Confessa ser uma de suas manias o nome da mulher. A propósito dirige-se a Moema, em tom faceto: "não sei, Moema, se tivesses outro nome, se eu te amaria como te amo. Ponho às vezes na minha imaginação � e tremo!... o que seria de mim se tu te chamasses Joaquina, ou Maria Joana, ou Perpétua, ou Dionísia, ou enfim Domingas!..."

A crítica tão ao gosto d�O Toucador, segue o mesmo espírito que interpreta a literatura atual, nas Viagens, no trecho em que Garrett alude aos figurinos franceses de Dumas e Eugene Sue.

No A quem ler, que precede a edição das Folhas Caídas e das Fábulas e Contos, de 1853, escreveu Garrett:

Tais são as Folhas Caídas, última palavra até agora, mas que não será a derradeira do nosso poeta: afoitamente o confiamos. (...) As Folhas Caídas não são o fim, são a transição.

Realmente, não seria aquele livro a sua última palavra. E não foi, testemunha Gomes de Amorim, porque "já as tinha escrito quando começou o formosíssimo estudo Helena, que ficou incompleto. Se o concluísse, segundo plano que traçara, teria deixado nele o melhor dos seus trabalhos em prosa". O projeto de Garrett era grandioso. Se acabado, seria a síntese das suas idéias, do seu humanitarismo, da ideologia que abraçara na juventude, quebradas as arestas e acalmado o ímpeto revolucionário, sem qualquer perturbação ou incômodo. Se não lograra dar corpo ao Komurahy, por impossibilidade de levar avante um protesto contra a cupidez da colonização, por força de voltar a Lisboa sob o patrocínio do governo legítimo e dos liberais no poder, poderia realizar em Helena, ao fim da sua carreira, aquela síntese. E se não o fez, não foi porque o impedissem ou porque não tivesse vagar para tanto. Impediu-o a fatalidade, a morte que ocorreu no ano seguinte.

A causa da libertação dos escravos interessara Garrett desde os anos da vida acadêmica. No ano em que publica o "A Quem Ler" das Folhas Caídas e em que está a escrever Helena, advoga, no Conselho Ultramarino, não só o fim da escravatura como também o direto de os escravos, depois de libertados, entrarem em gozo de todos os direitos civis. Por sua iniciativa redige-se a Organização e Regimento da administração da justiça nas províncias de Angola, São Tomé e Príncipe e suas dependências, para o qual Garrett escreve um relatório, que é levado pelo secretário Gomes de Amorim ao respectivo tribunal. Para a elaboração desse relatório, interrogara Garrett o seu secretário acerca dos costumes e viver dos escravos no Brasil, com fizera, com relação a Angola, ao seu amigo Teixeira de Vasconcelos.

Um dos trechos desse relatório merece ser destacado por bem expressar os sentimentos de Garrett, podendo, ainda, servir de introdução a Helena:

A civilização que destrói a escravidão e a escravatura e pugna pela liberdade e igualdade dos homens, sem distinção de raça ou de cor daria pouco, não daria o que promete, se desse somente a pátria aos que reinvidica da escravidão. Quer, e há de dar-lhes também a cidade, isto é, a existência completa dos homens.

É, portanto, Helena a derradeira palavra do escritor. Iniciado em 1853, prosseguiu Garrett na redação do manuscrito durante o ano seguinte, não continuando mais, em virtude de seu estado físico e da doença de que lhe resultou a morte. O manuscrito de Helena compõe o número 69 do Espólio literário, e é precedido de uma folha com notas sobre os personagens do romance.

A exploração do índio pelos "estrangeiros cobiçosos e egoístas", a "crapulosa civilização das cidades" em confronto com as aldeias indígenas, berço de nações poderosas, fadadas a extinguir-se e morrer às mãos dessa mesma civilização, formam o entre-texto de Helena, que aflora nos capítulos finais, os quais Garrett deixou sem título, talvez porque o quisesse fazer ao passar a limpo o borrão que escrevera quase a jato, ou porque já a doença o impedia de levar avante o projeto.

Observa-se que esse entre-texto é o mesmo do Komurahy e d�O Brasil Liberto: a denúncia contra o colonialismo, a defesa intransigente do homem e da liberdade, contra toda a forma de opressão e de injustiça social.

Não se pode recusar a Garrett uma consciência brasileira. Consciência que se esboça, na infância, através das histórias e lendas contadas por Rosa de Lima, pelas lembranças colhidas em casa de seu avô José Bento Leitão, e que vai ganhar forças no convívio com os camaradas brasileiros, nas sociedades secretas de Coimbra, com os versos dedicados à causa do Brasil, com a prosa doutrinária em defesa dos ideais democráticos. Consciência que se adensa no exílio ao compartilhar com os brasileiros, quer exilados, quer em estudos, os ideais literários e políticos da terra americana; e mais tarde, ao reencontrar em Gomes de Amorim e no contato com os brasileiros ou portugueses torna-viagem, experiências e afetividades, que alimenta desde a época em que menino andava às voltas com os velhos fantasmas da quinta do Sardão.

Essa consciência é a de que só há virtude na liberdade. Virtude que podemos constatar: está presente nos textos � chamemo-los brasileiros � de Garrett.


Bibliografia(**)

Almeida Garrett, Komurahy; história brasileira, Revista do Livro, Rio de Janeiro, 1 (1-2), 1956.

_____________, O Brasileiro em Lisboa, A Ilustração, Lisboa, 1 (4), 1845, p. 53-54.

_____________, Obras Completas, Lello & Irmão, 2 vols, Porto, 1963.

_____________, O Romanceiro de Garrett, Introdução, seleção de textos e notas por A. do Prado Coelho, Livraria Clássica, Lisboa, 1943.

Augusto da Costa Dias. O jovem Garrett, introdução à edição d�O Roubo das Sabinas, Poemas Literários I, Portugália Editora, Lisboa, 1968.

Ferdinand Jean-Denis, Résumé de l�histoire du Brésil, Lecointe et Durvy, librairies, Paris, 1826. Resumo da história literária do Brasil, Livraria Lima, Porto Alegre, 1968.

Francisco Gomes de Amorim, Garrett. Memórias Biographicas, Imprensa Nacional, 3 vols., Lisboa, 1884.

Henrique de Campos Ferreira Lima, Inventário do espólio literário de Garrett, Publicações da Biblioteca da Universidade de Coimbra, 1948.

José Osório de Oliveira, Um Garrett brasileiro; influência do Brasil em Portugal, Revista do Livro, 1 (1-2), Rio de Janeiro, 1956.

Michel de Montaigne, Dos Canibais, Ensaios, Abril Cultural, São Paulo, 1972.

Ofélia Milheiros Caldas Paiva Monteiro, A formação de Almeida Garrett; experiência e criação, 2 vols, Centro de Estudos Românicos, Coimbra, 1971.


Notas

(*) Resumo da tese de Livre-Docência em Literatura Portuguesa, apresentada à Universidade Federal do Ceará.

(**) Restrita ao resumo da tese de Livre-Docência, objeto desta comunicação.

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