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Garrett, Machado e os diários

 
Laura Areias � I. Camões
Tulane Univ. - New Orleans

Ao Professor Helder Macedo

À medida que se vai penetrando na obra de Machado de Assis sente a gente que aquele coloquialismo, despreocupado mas erudito, as digressões, o tu-cá tu-lá com o leitor, o aproximam mais de um certo Romantismo que dos seus contemporâneos.

Entrei no escritor por uma espécie de sala de visitas, arrumada, formal, hierática - a obra da 1.� fase. Passei aos aposentos interiores e foi um salto: a intimidade da alcova - um fervilhar ou dissimular de sentimentos, amores proibidos, acusações, frustrações, e sempre, cada vez mais mordaz, impiedosa, a crítica do autor acirrando, provocando, desnorteando o leitor. Eram os Brás Cubas, os Quincas, Esaús e Dom Casmurros.

Machado de Assis, pela primeira vez depois de Ressurreição (I, 116) cita os seus inspiradores, Sterne e Maîstre, no prólogo das MPBC (I, 513). Ainda que Garrett não seja, como os outros, citado pelo próprio defunto, esse "esquecimento" será mais tarde reparado, em resposta à carta que lhe enviara Macedo Soares, aludindo às Viagens na Minha Terra na advertência à terceira edição das Memórias Póstumas (I, 513). Não posso por isso mesmo dar totalmente razão a Pedro Manuel Calheiros que acusa de "injusta ou envergonhadamente ausente o nome de Garrett", a quem considera provavelmente o modelo mais familiar de Machado, na evolução do seu estilo (569).

Helder Macedo partilha a opinião de Gondim da Fonseca quanto à admiração deste pelo seu antecessor, admitindo igualmente a superioridade do Mestre que Garrett, com o seu génio pioneiro, tinha ajudado a formar, nunca chegando a saber que as suas Flores sem Fruto tinham afinal frutificado sob o clima brasileiro... Mas vê em Viagens na Minha Terra e Esaú e Jacó o momento em que as difereças entre os dois autores mais intimamente convergem . (199)

A associação entre os dois escritores surgiu-me porém mais nítida quando "passei dos aposentos íntimos para a sala de jantar", isto é, ao passar da intimidade das paixões e vícios humanos para um ambiente mais familiar, mais envolvido pela melancolia e solidão que vemos marcar o inverno das nossas vidas, mais longe da violência da maturidade. São as alegrias e tristezas de um casal na meia idade, as rabugices e as andanças diárias de um diplomata  aristocrata reformado, os seus ditos espirituosos e as suas maneiras convencionais (curiosamente Garrett, e até o Carlos da "história de Joaninha" também viveram em Inglaterra), a sua maliciosa ironia com Dona Cesária, enfim, a bonomia sarcástica das reuniões de família com os íntimos da casa no ambiente informalmente elegante de uma casa de jantar - o Memorial de Aires.

Talvez esta imagem me tenha sido sugerida pelo significado da cena do jantar das bodas de prata do casal Aguiar (25.I.88). Tudo ali converge, em embrião: a alegria e a nota melancólica, a companhia e a solidão, a gravidade e a ironia, intimidade e elegância e o anúncio de uma história: o arrancar da viúva à viuvez , que se vai encaixando na moldura, o diário do narrador. Depois de me ter referido à discussão sobre as influências literárias em Machado de Assis, passarei a cotejar as duas obras mostrando como dos géneros estabelecidos pelas poéticas clássicas se evoluiu para formas que chamamos modernas, ensaiando novos discursos, a sua justificação e a sua relação com a Literatura, nas perspectivas de Todorov e Bakhtin.

As Viagens na minha Terra, começando por aludir à Voyage autour de ma chambre de Maistre, traçam um programa, para quatro dias (cap I,8). Espécie de crónica, caldeada por comentários e divagações. Garrett anuncia um récit assistemático, um inclassificável livro de viagens. Parecendo estar ausente um plano prévio de encadeamento de assuntos, será a representação e a reflexão que vão dominar, ao sabor das circunstâncias, da escolha pessoal ou do acaso. Neste ponto parece-me possível estabelecer um paralelo com o Memorial quanto ao propósito e realização do processo narrativo. Machado de Assis já se referira, no Prólogo, à "obra difusa" e à "forma livre" de MPBC. Agora, na Advertência ao Memorial, não faz mais que remeter o leitor para Esaú e Jacob onde o Conselheiro Aires é já personagem, num tom nonchalant, sem pachorra para grandes elaborações (I, 1096). A sua forma de diário de dois anos, dia-a-dia, a data, quando não o momento, manhã, tarde ou noite, a hora exacta, leva o leitor ao conhecimento dos factos "reais": "circunstâncias, anedotas, descrições e reflexões" (Assis, I, 1096), por etapas, como a viagem de Garrett (assinaladas em cap.I,9, cap.III,24, cap.XLIX,320). É esta essencialmente projectada no futuro, apanhando o acontecimento real, em flagrante, com sustos e sobressaltos (cap.II,23), embora a atitude pedagógica em que se empenha faça o narrador revolver o passado, "recuperando acontecimentos exemplares de espírito nacionalista"  (Carvalho, 36) na explicação de lendas, (Garrett: cap.XXIX e XXX), alcáçovas, muralhas e outros monumentos (cap.XXVII e XXVIII), túmulos de heróis (XXXVII) ou de santos (cap. XXXIX e XL). A sua publicação, por capítulos, na Revista Universal Lisbonense a partir do mesmo ano de 1843, dá-lhe toda a vivacidade da crónica, sobre o acontecimento. Ambos os autores anunciam - mas enquanto Machado propõe uma narrativa que talvez interesse, "desbastada e estreita" porque não houve "pachorra nem habilidade"  de a redigir na forma do último "romance" (I, 946), Garrett graciosamente se ufana da sua "obra-prima, erudita, brilhante de pensamentos novos, uma coisa digna do século". E previne o leitor, com sufixos desdenhosos, de que não se trata de "quaisquer rabiscaduras da moda com o título Impressões de Viagens que fatigam as imprensas da Europa" (cap.II,16-17), nem brochurinha dos Boulevards de Paris, como irá provar. Antes um mito (...) o progresso da civilização simbolizado nos dois princípios nietzschianos, espiritualismo e materialismo: "E eis aqui a crónica do passado, a história do presente, o programa do futuro." (cap.II,18)

A "impossibilidade" de uma classificação clássica quanto ao género literário em ambas as obras, aponta para o que Todorov apresenta como marca de modernidade a partir do sec. XIX: "cette pression impétueuse de la littérature qui ne soufre plus la distintion des genres et veut briser les limites." (1978, 44) Não se trata do desaparecimento dos géneros antigos mas a sua evolução para outros novos, diz ainda o crítico, (45) num dos quais, o Diário, creio se integrarem as Viagens e o Memorial. A monoglossia clássica do género foi-se multiplicando nas actuais modalidades do discurso literário - o narrativo nas suas componentes epistolar e novelístico, o lírico e até o dramático - que se encontram em ambas as obras, com mais ênfase em Garret que transforma num drama teatral em três actos a "história do Vale de Santarém."

Essa polyglossia, termo que Bakhtin opõe ao monolitismo dos géneros clássicos, para designar o resultado da interacção das diferentes linguagens e culturas, justifica-se então pelo previlégio que o narrador dá à "representação" (60-61). Ocorrem sobretudo nas Viagens atitudes de meditação, ironia, a reprodução de diversos níveis de linguagem - o coloquial-familiar e pessoal, estabelecendo uma relação entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado (termos usados por Todorov) trazendo-o para o mesmo nível dos outros circunstantes (1973: 87); o popular quando recria certos ambientes; o técnico e o erudito, quando ele próprio envereda pelos caminhos da Arte, da História ou da reflexão filosófica. Formalmente a expressão foi-se despindo da "plumagem" clássica - a frase encurta, suspende-se; a ordem dos elementos frásicos torna-se directa e a adjectivação luxuriante. Garret é provavelmente o primeiro escritor português a usar a sinestesia: leia-se o antológico "retrato de Joaninha" do cap XII.  Posto isto, obviamente o discurso hierático, cerebral e convencional dos géneros clássicos que formava com a gravidade ou grandeza do assunto um todo monoglóssico (61), e que Garrett usa ainda em Frei Luis de Sousa de 1843, ou Machado nos primeiros romances, entre 1872 e 78; repito, o que Bakhtin chama "direct word", isto é o género épico, trágico ou lírico associado à ferramenta adequada para o transmitir, perdia a exclusividade.(69)

Sendo o Diário o desenho estrutural de ambas narrativas - uma "verdadeira" viagem ou um memorial "nos lazeres do ofício",  todos os outros assuntos seleccionados pelo narrador se vão desenvolver com estatuto de acidente - observação que Alberto Carvalho faz a respeito das Viagens, (34) mas que não deixa de se poder estender ao texto machadiano. Se os propósitos de cada um não são os mesmos, contudo os efeitos acabam por se identificar. A viagem programada, Ilíada, Os Lusíadas, Viagens na Minha Terra, ou realizando-se ao sabor do acaso como a Peregrinação e o Memorial, e cito ainda Alberto Carvalho:

...trajecto de experiência activa, de aprendizagem, de conhecimento, de estranheza; o relato da viagem é, por natureza, o lugar do desvendamento e da revelação (...)uma procura da realidade viva, na variedade dos seus matizes e das suas manifestações naturais, numa atitude de recuperação da ideia de viagem útil do século XVI (34)

Será este um dos sentidos da viagem de Garrett ao pretender projectar-se no futuro. Por sua vez, Aires volta em 1887 definitivamente da Europa onde exerceu a diplomacia durante trinta anos. Daqui para a frente será o reconhecimento de "cousas e pessoas de longe, diversões, paisagens, costumes"(I, 9 Jan 1888). A sua "viagem útil" e  não menos "verdadeira" realizou-se no passado - de certo modo o processo já adoptado em MPBC - e o seu protagonista volta agora cheio do tal saber nascido da experiência. Por isso ele é o paidagogos, solicitado para os filhos de Natividade, Esaú e Jacob, ou adoptado por Tristão mais ou menos para os mesmos fins. O que não deixa de ser irónico, tendo em conta o desfecho materialista da história. Em 19 de agosto de 88 o jovem Tristão confidencia-lhe as suas jovens ambições políticas; em 1 de Dezembro o amor por Fidélia "não disse isto a ninguém, conselheiro, nem à madrinha nem ao padrinho... Parece-lhe que o meu coração escolhe bem?" e finalmente é também Aires o primeiro a saber, em 17 de julho de 89, do telegrama, anunciando a sua a eleição certa, para deputado em Portugal. O Conselheiro contraria o espírito expansivo atribuído aos povos meridionais. A diplomacia e o Norte ensinaram-lhe os modos comedidos, o saber contentar a gregos e troianos: "Aguiar louvou as qualidades profissionais do moço, a educação e as virtudes. Acreditei tudo, como era meu dever..." ou noutro passo "(o meu criado José) preferiu mentir nobremente a confessar a verdade. Eu nobremente lho perdoei e fui dormir antes de jantar." (I, 9 set.88). São abundantes os exemplos dos códigos de maneiras "civilizadas" por que Aires se rege (1114, 1117, 1118, 1123, 1127, 1132, 1133, 1143, 1147, 1168 !) e que o tornam desejado e bem-amado desde criados a banqueiros. Não será esse mesmo saber, todo de experiência feito, fruto da "viagem útil"de que falava Alberto Carvalho?!...

Confundindo-se frequentemente, autor e narrador, a erudição manifesta-se em ambas obras. Assim, chamou Alberto Carvalho ao primeiro um "romântico iluminista", pelas atitudes ditadas por um romantismo de "feição social, liberal e pedagógica" (31-32). Aires um clássico-irónico dos nossos tempos, lhe chamo eu, mas convergindo nos dois textos "a atitude racionalista, cosmopolita, moderada e objectiva (...) e a atitude individualista, subjectiva e nacionalista" (14). Nacionalismo mais incidente no texto garretiano, também mais preocupado em fazer literatura original  (veja-se a irónica "receita para fazer literatura original com pouco trabalho"  do cap.V,38-39). Afirma Garrett no cap.III (29) que há-de morrer na fé de Boileau "Rien n�est beau que le vrai" mas tal princípio da estética clássica já não tem agora propriamente a ver com o geral, universal e impessoal mas, segundo Carvalho, numa nova dimensão, com o particular e o individual (14), na captação do real em flagrante, consequência da deambulação, da viagem despropositada ou não. Tanto o Gama poderia topar com a tromba marítima, como Garrett-o-viajante com a janela da Casa dos Rouxinóis, como o Conselheiro Aires com a viúva chorosa à beira do túmulo. E, conforme o estilo ou época, transformar o achado num episódio da Épica, num drama romântico ou numa história realista de amor-solidão, dádiva-ingratidão. Para A. Garrett é a prova da sua mestria como escritor: cenário/cor local e personagens reais envolvidos em acontecimentos da História portuguesa. O verosímil, o espontâneo e o nacional, sob a crítica esclarecida, irão salvar a Literatura Romântica. A obra tem o fim, didático, nela mesma: reflectir e realizar a própria Literatura. O que diz Todorov ser o encontro, qual imagem em abismo, da narrativa com a sua própria arte constitutiva (1973: 49). E modernidade.

A história da Menina dos Rouxinóis, que o acaso trouxe aos viajantes ou vice-versa, desenvolve-se segundo as regras do autêntico drama romântico de inspiração trágica. Ali se temperam o erro inicial, a hybris, o clímax, a agnórise, peripécia, catástrofe e decorridos dez anos a catarse, quando os viajantes encontram a própria casa, o frade e a velha, e a narrativa e o drama se cruzam. A história de Fidélia começa igualmente por um encontro, indo o Conselheiro cumprir ritos familiares ao cemitério (12 jan 88). Garrett-viajante encontra a história no final, já toda ela consumada; Aires, interveniente no processo, vai criando expectativa no leitor, guiando-o por um fio contínuo -  casará ele ou não casará? E Fidélia?

"A história simples e singela, sinceramente contada e sem pretensão de Carlos e Joana" (cap.X,79), tem algo a ver com a história, simples também, de Fidélia e Tristão, mas sem as demências, mortes e renúncias do mundo. O final dramático da primeira não se poderá comparar ao final realista da segunda em que uns fizeram a felicidade à custa do sofrimento doutros, mas o efeito irónico deceptivo correspondente ao desencontro entre a ilusão e a realidade, de que fala A. Carvalho (70) é semelhante em ambas as obras. O Carlos de 1843 cuja estrela impediu o gozo das felicidades terrenas que engordou, enriqueceu e de barão chegará a deputado (cap.XLIX, 317) e cuja transformação  tanto espanta o narrador ao ouvi-la de Frei Dinis, não terá certas afinidades com Tristão? Diz deste o Conselheiro em 6 de Maio de 89 que "é feito de modo que a política o pode levar sem esforço, e Fidélia retê-lo sem dificuldade." Que a tudo se molda, que tudo se pega e ajusta naquele espírito diverso (25.março.89). Diverso e vário como Carlos de Joaninha (cap.XLVIII,316).

A perfeição, o amor místico, a busca do Ideal, recusados por Garrett ao seu herói, passarão a consumar-se no Memorial realisticamente na terra, finita e humanamente. Porque "Todos os noivos são bons rapazes"  (25.mar.89), e porque, na opinião progressista do Conselheiro "a mocidade tem o direito de viver e amar, e separar-se alegremente do extinto e do caduco." (30.agosto.99) Glosemos Quincas Borba: aos jovens as batatas!

Iniciei com Helder Macedo e a ele regresso ad hoc:

for the future to be possible we must cultivate the prime art of peace, of love, in a duel not of death but of life as Almeida Garrett so exuberantly exemplifies and Machado de Assis, in the voice of Conselheiro Aires, more discreetly demonstrates, smiling gently and speaking softly (204).


Bibliografia

Almeida Garrett. Viagens na Minha Terra.. Lisboa: Sa da Costa, 1966.

Bakhtine, Mikhaïl. The dialogical imagination. Austin: Texas UP, 1994.

Calheiros, Pedro Manuel A. F. "O estilo ébrio e poupado de Machado de Assis." Actas do Terceiro Congresso da AIL. Coimbra: 1992, 567-573.

Carvalho, Alberto. Sentido de Unidade das Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett. Seara Nova: 1979.

Fonseca, Gondim. Machado de Assis e o hipopótamo.. São Paulo: Fulgor, 1960.

Macedo, Helder. "Garrett, Machado de Assis, and the impossible option"

Machado de Assis. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

Todorov Tzevtan. Literatura e significação. Lisboa: Assirio e Alvim, 1973.

----------------------. Les genres du discours. Paris: Seuil, 1978.

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