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Forma e motivo do simbólico em José Saramago:
a imagem do cão em A jangada de pedra,
História do cerco de Lisboa
e Ensaio sobre a cegueira

 
Kyldes Batista Vicente
Universidade Federal de Goiás

Na âmbito das relações entre o discursivo e o imaginário como forma de suprimento representacional da realidade ficcionalizada, a construção do simbólico figurativo em José Saramago apresenta-se com significações formais que se emancipam semanticamente, concorrendo, nesse sentido para a construção ideária na obra do escritor. Particularmente em A Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989) e Ensaio sobre a Cegueira (1995), uma recorrência simbólica muito nítida consiste na figuralidade construída para a representação da imagem do cão na economia significativa desses romances.

O símbolo do cão é bastante complexo em sua tradição mitológica. Freqüentemente comparece associado à idéia de morte, a imagem dos infernos, do mundo subterrâneo regido por divindades ctônicas ou selênicas. Por vezes, cumprindo o princípio da duplicidade arquetípica, a simbologia do cão completa a sua regência tanatológica com o reverso, sugerindo, assim, as idéias de renovação e iniciação trazidas pela morte como etapa necessária para um recomeçar vital.

Chevalier e Gheerbrant, em seu Dicionário de Símbolos, afirmam que a primeira função mítica do cão, universalmente atestada, é a de psicopompo, guia do homem na noite da morte, após ter sido seu companheiro no dia da vida (1992, p.176). Consta também ser intercessor e intermediário entre vivos e mortos, estando ligado à trilogia dos elementos � terra, água e lua. Apesar de suscitar pouco temor por seu caráter doméstico, o cão é tratado, na tradição bestiária, como símbolo da sagacidade, fidelidade e presciência, aspectos que correspondem à modelização arquetípica do simbolismo desse animal

Em A Jangada de Pedra, o seu aspecto fantástico-alegórico constrói-se com a intervenção do símbolo canino: Joana Carda traça um risco no chão com uma vara de negrilho e com isso faz com que a Península Ibérica se solte da Europa e comece a vagar pelo Atlântico. No momento do desprendimento da Península, articulam-se outros movimentos: a viagem das personagens Joana Carda, Pedro Orce, Joaquim Saissa, João Anaiço e Maria Guavaira, que acompanhadas de um cão, buscam-se entre si para realizarem, posteriormente, o motivo final do seu encontro, ou seja, a separação da Península. Numa verdadeira aventura humana, reveladora por seus aspectos de significação crítico-histórica e política, o romance desfecha-se com a morte de Pedro Orce e com todas as mulheres em período fértil, grávidas.

Aos primeiros instantes da narrativa, com o traço no chão que logo se abrirá em fenda, começa-se a manifestação, por meio de latidos, de todos os cães de Cerbère, de cães que até então não tinham voz, mas que a partir deste momento passam a possuí-la, desencadeando, assim motivacionalmente, a ação da narrativa. O latido dos cães denota o intuito de substanciar ações e funcionar como ponte para o universo do maravilhoso com todas as suas implicações sócio-políticas daí decorrentes. O símbolo do cão persiste por toda a narrativa fazendo-se notar nos momentos em que novas e importantes ações estão por efabular e, da mesma forma, acompanhando as personagens em suas buscas.

Com a manifestação dos cães e a separação entre a Península Ibérica e a Europa, surge uma nova significação para a figuralidade desse motivo simbólico. A associação do cão, resgatando a sugestão de um mito peruano datado dos primeiros tempos da conquista espanhola. Neste, o estabelecimento dos tempos novos era assinalado pelo triunfo da divindade uraniana, senhora das águas e do fogo do céu, sobre a divindade ctoniana, senhora do fogo interior da terra. Desta forma, a imagem do cão estabelece uma relação de mudança, de reavaliação das instituições pré-construídas, como a escola, a família, a religião. Assim sendo, como muitas vezes é tido como conquistador do fogo, torna-se o símbolo do herói civilizador, já que configura uma renovação das instituições.

Há, ainda, nesse simbolismo, a recorrência à figura do cão representada pelos cães de lareira descobertos na Gália em escavações arqueológicas. São peças feitas de argila ou em pedra em forma de chifres e correspondem a numerosas peças semelhantes descobertas na Alemanha e na Europa Ocidental. Estes cães estão ligados ao fogo e aos ornamentos, dos quais muitas vezes estão acompanhados, relacionam-se todos a um simbolismo solar, ou seja, o fogo fertilizante.

No final do livro, logo após o enterro do corpo de Pedro Orce, José Anaiço observa, contrariamente à tradição mitológica que envolve a figura do cão, que o animal do morto comporta-se estranhamente:

"...Chamaram o cão, que durante todas as horas não se afastou da cova, mas ele não foi, É o costume, disse José Anaiço, os cães resistem a separar-se do dono, às vezes deixam-se morrer. Enganava-se. O cão Ardent olhou José Anaiço, depois afastou-se lentamente, de cabeça baixa. Não o tornaram a ver." (SARAMAGO: 1986, 317)

Dessa forma, a imagem simbólica que aqui transparece, ao mesmo tempo em que ratifica a tradição, expressa a imagem de Pedro Orce por meio de um outro aspecto mítico-simbólico: o cão vivo. O animal não é sacrificado como alguns povos fazem com o cão do morto para acompanhá-lo na outra vida, mas ambos, cão e dono, seguiram sozinhos os seus caminhos, apesar da inicial insistência do cão para revolver a terra da cova. Fica-se, assim, a sugestão da continuidade de Pedro Orce na figura do cão. Outra questão elucidativa refere-se à fecundação das mulheres, a qual virá renovar a face da terra e articulando a função do cão como herói civilizador.

Na História do Cerco de Lisboa o narrador concebe dois enredos pertencentes a duas dimensões temporais: o enredo histórico descreve o cerco de Lisboa no século VII, e o enredo contemporâneo, caracterizado pela paixão entre o revisor Raimundo Silva e a revisora-chefe Maria Sara. Silva, num ato deliberado, aparentemente sem explicação, acrescenta ao texto histórico a palavra não e falsifica a verdade histórica.

Uma questão interessante, no que se refere aos símbolos manipulados por Saramago, comparece na História do Cerco de Lisboa. Aqui, o cão aparece no final do romance para acompanhar os dois casais, em dinâmica de espelhamento: Mogueime e Ouroana, personagens do enredo histórico, e Raimundo Silva e Maria Sara do enredo contemporâneo. Surge o cão para acompanhar as personagens Mogueime e Ouroana quando estão prestes a retornar para a Galiza, propiciando uma relação estereoscópica: "...E Mogueime, e Ouroana, que foi que lhes aconteceu, Na minha ideia, Ouroana vai voltar para a Galiza, e Mogueime irá com ela, e antes de partirem acharão em Lisboa um cão escondido, que os acompanhará na viagem, ..."

Nesta obra, vemos que a imagem simbólica do cão aparece somente no último instante da narrativa, emprestando a essa imagem a sua propriedade de renovação, de vida nova que teriam os casais. A recorrência, nesse caso, é nitidamente mitológica, pois, segundo Biederman, o cão acompanhava os heróis míticos como Epona, a deusa dos cavalos e da caça, principalmente os de função civilizadora. Também acompanhava o Sol, que submerge a Oeste nas gargantas da Terra, conduzindo-o, através do mundo inferior, até o ponto em que ressurgirá dessa morte cósmica.

Tal característica propiciadora do cão, indica uma regência harmônica entre aspectos antagônicos. O símbolo apresenta-se como o mediador e "completa ou totaliza o consciente e o inconsciente, a subjetividade e a objetividade, o passado e o futuro, baseando-se na sua qualidade de unificador de pares opostos" (TURCHI: 1999, 18). Assim, o símbolo funciona como um espelho, uma mônada, como se tivesse o seu próprio refletor.

O Ensaio sobre a Cegueira narra as desventuras de um grupo de pessoas que, de repente se acham portadoras de uma cegueira branca e que, à medida em que vão perdendo a visão, são alojadas em um antigo manicômio onde a cooperação e o viver em grupo definem a sobrevivência. Dentre todos do grupo, apenas uma mulher não fica cega, tornando a vida deste grupo um pouco mais humano, uma vez que ela lidera, ajudando-o nas suas atividades.

A imagem do cão no Ensaio sobre a Cegueira apresenta-se de forma contínua e curiosa, já que, como fora aludido, o símbolo abarca aspectos antagônicos. Há a história do homem cuja última imagem antes da cegueira foi a de um quadro em que um cão afundava; e há a história do cão que lambia as lágrimas da única mulher que não ficou cega. Tem-se, no primeiro caso, o símbolo do cão como sendo de presciência e no outro caso, como imagem da fidelidade e renovação, uma vez que a partir deste momento, o animal começa a seguir a mulher do médico e a ser chamado de cão das lágrimas :

"Os cães rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se já lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos. A mulher toca-lhe a cabeça, passa-lhe a mão pelo lombo encharcado, e o resto das lágrimas chora-as abraçada a ele." (SARAMAGO: 1995, 226)

O mesmo ocorre no final da narrativa, uma vez que, a exemplo dos outros romances, o cão acompanha as personagens nos momentos finais. O símbolo vem reforçar a representação de fidelidade e vigilância, além da função de psicopompo, aqui denotado como sendo a passagem da condição de cegueira branca para a volta à visão. Na situação de cegos, os homens e mulheres representam-se como se estivessem mortos e, recuperando a visão, voltam ao que seria a verdadeira vida. O símbolo é, novamente desconstruído, invertendo-se vida e morte em morte e vida.

Por outro lado, a situação de cegueira permitia às pessoas valorizarem mais as pequenas coisas que ainda lhes restavam, como a companhia de alguém (como ocorre com a mulher do médico que o acompanha ao manicômio), representando, assim uma volta à vida simples em que o que era importante referia-se somente à sobrevivência. Por outro lado, a recuperação da visão transformava-os, novamente, em uma sociedade capitalista na qual os interesses nunca giram em torno da fraternidade. O cão, nesse caso, recupera a simbologia tradicional de psicopompo. Está expressa, ainda a idéia de renovação, de iniciação após uma fase de aprendizagem.

Desta forma, inferimos que, nas três obras analisadas, a imagem do cão assume três aspectos de sua simbologia primordial associada às mitologias tradicionais: em A Jangada de Pedra, temos a figura do cão com a idéia de presciência, anunciando com seus latidos a separação da Península Ibérica da Europa, além da importante contribuição no que se refere ao mito do herói civilizador. Com seus latidos, estabelece-se uma nova ordem nas instituições vivenciadas e seguidas até então, provocando o surgimento de novas reflexões vivenciais.

Na História do Cerco de Lisboa, observa-se o cão como símbolo de renovação, de iniciação de uma vida nova para Mogueime, Ouroana, Raimundo Silva e Maria Sara que, após vencerem um estágio, como num rito iniciático, partem para uma vida diferente. É também a figura do fiel acompanhante dos grandes heróis nas suas batalhas. Há ainda a relação do cão com o fogo vivificador, uma vez que recorda representações ancestrais, como também acontece em A Jangada de Pedra, em que a figura do cão denota uma nova etapa e uma nova raça a suplantar a anterior.

O Ensaio sobre a Cegueira também encerra a idéia de fidelidade do cão ao seu dono já que, a partir do instante em que a mulher do médico encontra um cão que a seguiria por toda a narrativa, tal vínculo reforça essa idéia associada a noção de propiciação de habilidades e, doação ao humano. Em outro instante, encontramos a imagem do cão relacionada com a presciência, uma vez que a pessoa que o via estava prestes a imergir na cegueira branca.

Podemos concluir afirmando que José Saramago utiliza-se da imagem do cão para construir uma narrativa carregada de elementos simbólicos, cujas significações fazem coexistir o figurado e o ideológico. Assim, como se não tivesse nenhuma importância, a figura do animal vai surgindo e amalgamando-se no entrecho da narrativa, revelando um denso simbolismo de relação estereoscópica, numa construção extremamente lúcida e original, servida por uma imaginação poderosa, mirífica, configurando-se numa forma romanesca insinuante, numa proposta do símbolo à forma reflexiva das idéias na arte.


Referências Bibliográficas

ACOSTA, Vladmir. Animales e Imaginário. Caracas: Universidad Central de Venezuela, Dirección de Cultura, 1995.

BIEDERMANN, Hans. Dicionário Ilustrado de Símbolos. São Paulo: Melhoramentos, 1994

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.

SARAMAGO, José. A Jangada de Pedra. Rio de Janeiro: Record, s.d.

_____________. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995

_____________. História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.

SEBASTÍAN, Santiago. El Bestiario Toscano. Ed. Crítica Santiado Sebastian. Trad. Alfredo Serrano i Donet. Madrid: Ediciones Tuero S.A, s.d

WHITE, T.H. The Book of Beastes being a Translation from a Latin Bestiary of the Twelfth Century. New York: Dover Publications, Inc., 1984.

TURCHI, Maria Zaira. Crítica do Imaginário: Percursos e Perspectivas. In: Literatura e Antropologia do Imaginário: Uma Mitocrítica dos Gêneros Literários. Tese de Doutorado, Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1999, pp. 06-54.

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