clique para imprimir esta páginaclique para imprimir este documento
David Mourão-Ferreira ou " A secreta viagem"

 
Helena Malheiro

O primeiro ponto deste congresso intitula-se : "O mar, a viagem, o encontro". De imediato assim nos surge a lembrança de David Mourão-Ferreira, grande poeta, prosador e ensaísta da literatura portuguesa , que recordamos com saudade e cuja obra se inscreve neste tema com uma acuidade surpreendente. Pareceu-nos pois interessante empreender um breve estudo da poesia e de alguns contos deste autor, que começou a sua obra com uma misteriosa e "secreta viagem". E o primeiro poema deste primeiro livro de David, publicado em 1950, intitula-se justamente "Inscrição sobre as ondas" :

Mal fora iniciada a secreta viagem,
Um deus me segredou que eu não iria só.
 
Por isso a cada vulto os sentidos reagem
Supondo ser a luz que o deus me segredou.

Esta viagem faz-se portanto através do mar e é por ele que iniciaremos a primeira parte deste estudo, o mar e o que decidimos apelidar de "Constelação Mágica", ou seja, um conjunto de temas essenciais que a partir deste se engendram, num ciclo contínuo, repetindo-se até ao infinito. Embarcaremos depois na "secreta viagem", uma viagem múltipla porque se desenrola simultâneamente em três corredores paralelos: no Tempo, no Espaço e em Eros. Chegaremos então à última parte do nosso estudo, a parte do labirinto da identidade, onde o encontro se torna sempre, inevitavelmente, desencontro.

I � O Mar e a Constelação Mágica

Mar -Mãe (Amante) - Metamorfose - Morte � Mar: eis os temas que se engendram, se completam ou se opõem nesta marítima constelação, formando um anel a que cada frase está ligada, sem o qual cada palavra perderia todo o seu significado.

Porque lhe chamamos "constelação"? Talvez porque tudo se passe sempre de noite, aquela noite dos "amantes", momento privilegiado onde só ela brilha no escuro.Com efeito, a maior parte da obra de David Mourão-Ferreira encontra-se inteiramente mergulhada na própria noite que a engendra. A noite é o momento privilegiado da criação:

Uma noite por ano Uma noite pelo menos
assaltemos o céu e a Lua aprisionemos
Uma noite Uma noite Uma noite pelo menos1

A noite e a cor negra impregnam também todos os contos de Os Amantes. A sua desmedida omnipresença constitui mesmo um estranho refrão à volta do qual se constróem, pouco a pouco, as narrativas . A noite é o momento-chave escolhido para a revelação do amor e de certos mistérios, da verdade que se esconde atrás das coisas, desmascarando a falsa realidade diurna onde estamos imersos, a fim de pôr a descoberto a intimidade e a unidade dos instantes privilegiados :

O teu mistério decifrei-o
numa pupila cega:
fechado e aberto como um seio
que pela noite se me entrega2

A verdade que se revela de noite já não é reconhecível de dia, como no admirável conto "Amanhã recomeçamos" , onde dois náufragos da vida não cessam de inventar histórias mirabolantes para poderem continuar a existir . "O que é preciso é irmos todas as noites cada vez mais longe", repete Lépido no final do conto, reiterando incansavelmente o mistério da noite.

Mas esta constelação temática é sobretudo uma constelação "mágica" em que o mar é omnipresente. O mar engendra a memória e a morte, o movimento das ondas corresponde à oscilação dos seres, à metamorfose sempre presente no mundo de David Mourão-Ferreira. O mar directamente oposto ao sol, porque o primeiro é dispersão e o segundo concentração:

E quem te esparge , em vozes diluída,
corpo de nuvem neste mar que eu sou ?3

A esta oscilação mar-sol, corresponde uma outra, a indecisão mãe-amante, que exprime a indecisão da personagem em relação à mulher amada. É uma hesitação sobre a sua identidade, porque a todo o momento se arrisca a descobrir a amante ou a reconhecer a mãe. Esta estrutural indecisão é bem visível no final de "O Viúvo", quando Adriano deixa de ser apenas um homem que perdeu a mulher, para se converter sobretudo num órfão aos olhos de Rita, também ela híbrida personagem, a meio caminho entre a mãe e a amante. Aa duas linhas metafóricas mãe-amante/mar-sol atingem, no entanto, o seu ponto culminante em "Os Amantes", onde durante uma página inteira o autor não cessa de as fundir num mesmo movimento metonímico de metamorfose amante-mar-fogo, reforçando com a última frase a ambiguidade já presente em todos os outros contos do livro: �E finalmente deito-me a teu lado. Não sei bem se a teu lado ou se dentro de ti.�.

O mar é portanto a essência fundamental dos seres, da natureza e dos sentimentos. O mar é cúmplice da noite, como em "Amanhã Recomeçamos", surpreendente conto em que as personagens naufragam num oceano de diálogos e de palavras esparsas. É contra o absurdo do eterno recomeço simbolizado pelo incessante movimento das ondas que se revolta a mulher:

Não me conformo com a ideia de vivermos aqui, cada noite ancorados num porto diferente...Quero uma casa. Preciso de ver pessoas. Quero voltar a sentir terra debaixo dos pés. Quero deixar de ouvir o mar.4

O universo torna-se assim num vasto oceano onde os homens são obrigados a viver, "ancorados" dia após dia num porto diferente. Deparamo-nos mais uma vez com o movimento do mar que a todos os seres se comunica para se tornar parte integrante da sua alma e do seu corpo naquela passagem do conto "Os Amantes" que ainda há pouco citámos:

Começa o mar a castigar-te os flancos e a resumir, em poucos minutos, uma sonâmbula evolução de muitos milénios, convertendo em pedra o que era peixe, desfazendo em areia o que foi pedra, incorporando cada vez mais pó no volume das suas águas.5

Através destas linhas podemos ver de que forma o corpo da mulher é assimilado e completamente transformado em mar e em movimento eterno. Assim, a mulher é também um vasto oceano onde o homem mergulha, fascinado pela descoberta da sua própria identidade ou preocupado em fugir-lhe num impulso arrebatado:

E mergulho e remergulho
no mar que toda te cerca
Mas não à tua procura
Somente a ver se me perco.6

Há portanto uma autêntica metamorfose dos seres e das coisas ao nível da própria escrita, que os transforma em mar ou os �amariza�. O mundo torna-se assim num vasto oceano onde o autor se desloca. O mar é a essência de tudo. As coisas tornam-se mar. Os seres são mar. O mar torna-se coisa, ser, sentimento, paixão. Um dos exemplos mais surpreendentes desta omnipresença do mar é o poema "Re(li)gata" :

(...)Quando o cheiro do mar se desdobra em veludo
Quando rompe na boca o mistério das algas(...)7

E não são só os seres e as coisas que se transformam em mar, mas também o movimento e o fluir do tempo evocado pela memória. Esta interacção da durée e do instante, da memória e do oceano, está bem presente no admirável poema "E por vezes", onde podemos encontrar en abîme toda a síntese temática da obra:

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes ps braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
 
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
 
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
 
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.8

É este seu carácter desmedido, este movimento da memória que engloba tudo numa esmagadora totalidade, esta dispersão feita de concentração, que mostra bem como a memória emerge do mar e da eterna cadência das ondas. "Mar da memória", dirá o poeta em "Ladaínha Horizontal", ao recordar as "jangadas desmanteladas" das camas da sua vida. O "mar da memória" significa muitas vezes uma viagem involuntária ao passado. A oscilação do passado e do presente e dos vários tempos possíveis ou inventados, corresponde inevitavelmente à oscilação do mar, que traz tantas vezes, na sua líquida lamúria, o murmúrio de vozes que conhecemos...

Para David Mourão-Ferreira, é porque o homem se afoga verdadeiramente no passado que o autor o descreve como um náufrago, não como um náufrago do mar, mas como um náufrago do tempo e da memória. Memória que conduz muitas vezes à metamorfose e à morte: �Chego a pensar que ficarei soterrado sob o estranhíssimo aluvião de tantas imagens da minha vida.�9, dirá ainda o narrador de "Os Amantes" . E esta morte só será superada através da mulher, porque é dela, com ela, que nasce a vida.: �Instala-se o firmamento nas tuas entranhas.�10. A oposição firmamento/entranhas contém os dois contrários, o finito e o infinito, e coloca o universo inteiro dentro do corpo da mulher, mulher feita de matéria líquida, mar dentro de si a gerar a vida.

Acabámos de ver que esta constelação é cíclica, que os dois extremos se confundem, sendo o mar a origem e o termo desta constelação metafórica. Teremos assim: MAR-MÃE(AMANTE)-MEMÓRIA-METAMORFOSE-MORTE-MAR. O mar, a memória, o amor e a morte fusionam-se numa incessante metamorfose da escrita, sucedendo-se nesta nocturna constelação, que longe de se situar no imenso firmamento, se situa inteiramente no mar, lugar privilegiado de eterno recomeço, admirável "final aberto" para a obra e para a vida.

II - A Viagem

Iniciaremos agora a "secreta viagem", uma viagem múltipla porque se situa simultâneamente em três corredores paralelos, no Tempo, no Espaço e em Eros.

1/ A Viagem no Tempo

A obra de David Mourão-Ferreira é uma grande viagem no tempo. As suas personagens estão obcecadas, irremediavelmente envolvidas no turbilhão do tempo que arrasta os homens e os devora a uma velocidade vertiginosa. A vida é algo de efémero que o homem não consegue agarrar:

Agarro agora a vida pelos ombros
Ó tempo em que a prendi pela cintura.11

A velocidade do tempo e o seu carácter devorador fazem com que o poeta o assimile muitas vezes ao mar e ao incessante movimento das águas. No poema "Memória", a duração efémera da vida é simbolizada por uma frase fugitiva gravada na areia:

Tudo que sou, no imaginado
silêncio hostil que me rodeia,
é o epitáfio de um pecado
que foi gravado sobre a areia.12

As personagens de "Amanhã Recomeçamos", também se encontram "embarcadas", arrastadas numa corrida infernal em que é impossível voltar atrás. Assim tentam enganar o Tempo, através de uma diabólica viagem ao mundo das palavras e da mentira onde acabarão por se afogar. E em "Litania da Sombra", o poeta exclama: Estamos�talvez perdidos� nesta �feira do Tempo!� Perdidos ou mortos, jamais o saberemos. O poeta, porém, parece querer continuar neste percurso iniciático. No labirinto do Tempo vários tempos coexistem, os múltiplos tempos da vida, os do sonho e os da morte:

E dentro daquelas casas
quando foi que nós morremos?13

�Francamente não me lembro se nos suicidámos naquela noite�14, poderia responder Jorge Luís Borges, genial criador de labirintos, temporais e outros. Aos olhos da morte, as imagens da vida não são mais que projecções paralelas de um mesmo labirinto.Este tempo efémero e contudo inesgotável, contém todo o amor, toda a fome e todas as guerras. Impregnado de passado, ele extrai, a cada segundo, o futuro do presente. Esta dimensão transcendente do tempo, que converte instantâneamente segundos em milénios, exprime-se de forma veemente em "Ruínas Romanas", poema que se termina pelo grito do homem sedento de duração e de vida num mundo devorado pela fuga do tempo: �Oh milenária fome Oh tácito futuro�. Que fazer então para não sucumbir ao império do tempo? Vai ser através do texto, que se transformará numa verdadeira máquina de viajar, um tempo reinventado que permitirá escapar ao monstruoso devorador do efémero. Para isso foi preciso decifrar �o alfabeto do tempo�, deixar �a morte na gaveta� e �o tempo no degrau�:

"Deixa ficar a flor,
A morte na gaveta,
O tempo no degrau"15

Só então o poeta é livre para reinventar o tempo, criar um tempo novo, talvez um tempo de solidariedade, como aquele que se exprime no Cancioneiro de Natal: um tempo �em que o Nada retome a cor do Infinito�.

2/ A Viagem no Espaço

A viagem no tempo acompanha-se sempre de uma viagem no espaço caracterizada por uma geografia infinita e permanentemente renovada. Em "A Boca", o desdobrar dos mapas geográficos expõe, num mesmo percurso, palavras francesas, italianas, espanholas e outras. Mas em vez de concretizar e de fornecer assim uma verdadeira descrição da realidade, este processo estilístico, sobrecarregado de precisões, conduz-nos a um espaço irreal, um percurso imaginário num mundo fantástico. Por outro lado, o poeta não se cansa de inserir no quotidiano múltiplas referências à cultura clássica. Os "Lúcidos Lugares" em Órfico Ofício, são exemplos paradigmáticos da importância da cultura clássica ocidental na obra deste poeta simultâneamente tão inovador. Os vários "romances" que se sucedem mostram bem como o clássico coexiste com o moderno como uma constante na obra de David Mourão-Ferreira. Por outro lado, contos como "A Boca" ou "Ao Lado de Clara", com os seus inúmeros ritos e alusões mitológicas, estabelecem simetria com poemas como "Romance de Pompeia", "Romance de Cnossos", "Romance de Rodes", onde a tradição clássica e o mito se misturam friamente com um quotidiano não de todo abandonado. Mas esta geografia infinita mostra-nos sobretudo lugares mágicos em permanente mutação, que conduzem a um espaço angustiante pelo seu carácter circular e repetitivo, um mundo em permanente metamorfose, um labirinto mergulhado na noite. A viagem no espaço segue um itinerário onde aquele que o percorre se debate com a morte. Este mundo composto por labirintos incessantes conduz a um universo despovoado onde o homem se encontra sozinho num horizonte apocalíptico. Mas, apesar deste espaço reflectir a angústia do homem diante da morte, não deixa de ser um espaço de criação textual e de superação do real pela força da imaginação, porque se situa sempre na fronteira com um outro espaço, pertencendo este a uma outra "história" que apenas pressentimos e que nunca, totalmente, se nos revela . A esta fronteira se chama fantástico. E uma das "histórias" que permitem conquistar o espaço apocalíptico é "Eros".

3/A Viagem através de Eros

Eros será o último itinerário desta "secreta viagem", ou do "segredo" desta viagem, um Eros múltiplo, porque a mulher é múltipla. Para David Mourão-Ferreira o traço dominante é a ambiguidade da mulher e do amor, este amor que aflora o mito e que pode conduzir à universalidade. A ambiguidade da mulher manifesta-se através de um movimento duplo e paradoxal: a sua cumplicidade e o seu carácter inacessível. Com efeito, o autor atribui uma importância primordial à mulher, que toma sempre parte activa na vida e na morte. O amor é sempre um compromisso lúcido entre dois seres, uma �cúmplice partilha�, �a sórdida mistura das memórias�, como diz no "Soneto do Cativo". A mulher desempenha sempre um papel activo no amor. Ela é a "cúmplice" do homem, como a mulher de "Amanhã Recomeçamos", que partilha lucidamente com o amante aquela diabólica viagem através da imaginação e das palavras, onde verdade e mentira se confundem numa mesma corrida infernal. No entanto, a mulher permanecerá inacessível , fugidia, esculpida num mundo fechado de onde o homem é excluído, como em "Trepadeira Submersa" ou "Ao lado de Clara", por exemplo, onde através de um confuso jogo de transferências do palco para a realidade e da realidade para o palco, se persiste em encenar o apagamento da personagem masculina diante daquele ser misterioso e etéreo que é Clara:

E ficarás de longe a observá-las: Gorella, no papel de Ippolita, debruçar-se-á sobre o pescoço de Clara, depois de cuidadosamente lhe amarrar os pulsos atrás das costas.16

E em "Agora que nos encontrámos", a mulher narradora, saída das trevas, é a Morte que vem buscar a sua presa a um quarto de hospital e que assume sucessivamente as feições de todas as mulheres que o moribundo cobiçou, para descobrir no fim, no meio de estrondosas gargalhadas de troça, �a caricatura da ilusão do próprio desejo�, opondo agora o nada da morte à sede de absoluto contida no amor. Eros e Thanatos, dois princípios indissociáveis que se exprimem de forma inequívoca em toda a obra do poeta. A arte de amar é também a arte de morrer para tornar a nascer através do ser amado. Os Amantes significa a morte do tempo em relação à eternidade do amor.

A mulher está directamente em contacto com a natureza universal e esta funde-se com ela numa unidade maravilhosa. Será através dela que o homem vislumbrará um pouco da sua "unidade perdida".O amor é portanto uma sede de absoluto reforçada pela procura da identidade:

De bruços me debruço nos teus olhos
De bruços me debruço E não me encontro.17

Mas a crise será ultrapassada pela infinitude de cada momento, de cada gesto, de cada olhar. A mulher será o ser dos segundos intensos e apaixonantes, uma deusa inspiradora saída da natureza universal, um templo, o "Eixo do mundo":

Esta mulher
no centro
do corpo traz uma ilha
 
Esta mulher
Um templo
No centro da sua ilha
 
Esta mulher
O centro
Já do templo não da ilha
 
Esta mulher
Oh templo
De tudo na minha vida.18
 

O amor, porém não se limita a este "ritual", mas ultrapassa o "jogo amoroso" e o indivíduo para se tornar num �concerto universal� que transpõe a História e o Tempo, a nossa última arma para vencer a guerra, a fome, a opressão, a desumanidade. Em Cancioneiro de Natal, o poeta crítica severamente a sociedade de consumo onde vivemos, opondo-lhe uma revolta contra a violência, o egoísmo e a desumanidade do nosso tempo: �Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto para nos vir pedir contas do nosso tempo.�19

A viagem através de Eros é uma viagem através da poesia e o amor torna-se mito, sinfonia universal que reúne todos os homens à sua passagem. Amar é descobrir-se a si mesmo e descobrir os outros, descobrir também o "segredo" mágico das coisas. É através do amor que o homem se torna homem, que o poeta se torna poeta, que o mundo se torna vida, que o texto se transforma, com o auxílio da imaginação, numa �secreta viagem� ao interior das palavras, dos gestos, dos olhares e dos sentimentos.

III � O Labirinto da Identidade ou o Encontro-Desencontro : Um estudo comparativo

Eis-nos chegados à última parte da nossa pesquisa, a parte onde se encontra e se perde o outro, a parte do desencontro até de si próprio, num labirinto da identidade onde o "sentido" e os "sentidos" se perdem. Com efeito, ao labirinto temático inerente aos vários "sentires" e "sentidos", corresponde um labirinto textual que é procura do sentido das palavras. O poeta e as suas personagens andam à deriva num mar de frases desconexas e afogam-se por vezes no oceano da sua própria imaginação . Como em "Amanhã Recomeçamos", erram desorientados, à procura da saída do dédalo, mas jamais se encontrarão a si próprios, pobres duplos inventados que nascem e morrem todos os dias, espelhos onde a vida se transforma quase sempre em miragem. O importante é nunca parar, seguir incessantemente o caminho sinuoso do labirinto, porque sem a vontade e a imaginação eles acabariam por morrer em vez de se reinventarem naquele mar de palavras. O problema da aparência e da identidade, associado à criação e ao sonho, constitui a trama do paradigmático conto "Ruínas Circulares" de Jorge Luís Borges, incomparável inventor dos mais famosos labirintos contemporâneos. Aqui a personagem acaba por se descobrir a si própria como sendo apenas a projecção do sonho de outrem, que por sua vez se descobre como sonho, e assim até ao infinito:

Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele próprio também era uma aparência, que outro estava a sonhá-lo.20

E no célebre poema "Os Espelhos", prossegue ainda dizendo:

E Deus criou as noites, que se armam
De sonhos e as formas do espelho
Para que o homem saiba que é reflexo
E vaidade. Por isso nos alarmam.21

Também para David, a identidade é a aparência fugitiva de um instante mal entrevisto, como a imagem de nós próprios dada pelos espelhos, como um retrato efémero desenhado a giz, gravado na areia, ou ainda o reflexo do amante nos olhos da amada. O problema da multiplicidade do ser engendra o tema do duplo, da cópia, porque tudo é cópia de tudo neste universo construído por Dédalo, onde as paredes são os espelhos de uma falsa realidade multiplicando-se até ao infinito. Todos os contos de Os Amantes são um confuso mundo de aparências onde ninguém se encontra. A identidade é uma vã procura, permanentemente adiada. Em "Ao Lado de Clara" por exemplo, o labirinto textual é verdadeiramente " encenado" pelo carácter ritual dos actos, por uma escrita de contínuo devir que incessantemente adia o sentido. O jogo teatral tem o carácter de um rito, de um espectáculo, de uma cerimónia continuamente repetida, tal como em "A Trama" de Borges que repete, �dezanove séculos depois�, o drama da morte de Júlio César. Por outro lado, em poemas como o já citado "E por vezes" , é o sentido sempre adiado que volta a conferir o sentido, para finalmente o perder e o encontrar de novo, instalando um clima fantástico de alucinação e de multiplicidade. Realidade ou aparência? Ilusão ou Verdade? Eu, múltiplo Eu ou Tu? ï¿½É preciso inventar? Ou contar a verdade? Só o que invento me comove; Só a verdade te emociona.�22. Ficção ou sonho? Grão de absurdo dentro da inefável corência da realidade? �A incerteza é a minha certeza. Habituei-me a crer que nada que existe seja estável. Que pinto eu? Não sei. A minha pintura é um labirinto terrível.�, dizia a pintora Vieira da Silva. Para David Mourão-Ferreira, Borges e até outros autores sul-americanos como Cortázar ou Bioy Casares, o labirinto é uma procura da identidade e do sentido que passa pelos intrincados corredores das palavras. Simultâneamente Teseu e Minotauro, pesquisador e prisioneiro, errando dentro do labirinto de Cnossos, o homem toma consciência do sentido que lhe escapa, da sombra que ele próprio projecta e das múltiplas faces que traz dentro de si:

Mas se o palácio percorro
eis que sofro de outro modo
Ver que o palácio é dos outros
mas que o labirinto é nosso
Que alimentamos o monstro
com o sangue de nós próprios.23

O homem torna-se o verdadeiro objecto fantástico e o fantástico não será mais excepção mas sim a regra do universo. �O labirinto é nosso�, já que contém a flutuação incessante dos lugares, do tempo, da identidade, das palavras e dos sentidos. E é nesta mesma flutuação que, em suma, se instala o fantástico. Onde nos situamos afinal dentro desta imensa "Biblioteca" com um número infinito de galerias hexagonais?24 Conseguirem nós encontrar o Livro e seguir o fio de Ariana, ou julgaremos nós incessantemente estar a vê-lo, estenderemos nós incessantemente a mão para a sua imagem virtual, fornecida por espelhos que nós próprios instalámos?

Conclusão

Eis-nos chegados ao fim do nosso percurso. Como se termina "a secreta viagem"? Parece-nos que depois do mar, do tempo, do espaço e do amor, depois de percorridos os labirintos e do encontro se revestir de tanto desencontro, chegou a altura de afirmar a hora �em que o Nada retome a côr do Infinito�:

Que fique só da minha vida
um monumento de palavras.25

Eis o "Testamento", eis o desmedido monumento de palavras, infinito, como as possibilidades criadoras da escrita.


Bibliografia

- David Mourão-Ferreira, Os Amantes e Outros Contos, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1981, 3� edição.

- David Mourão-Ferreira, Obra Poética, Lisboa, Editorial Presença, 1988, 1� edição.

- Jorge Luis Borges, L'Auteur et autres textes, Paris, Éditions Gallimard, 1965.

- Jorge Luis Borges, Obras Completas, Lisboa, Editorial Teorema, 1998, 1� edição, vols I-II.

- Helena Malheiro, Os Amantes ou A Arte da Novela em David Mourão-Ferreira, Lisboa, Imprensa Nacional, 1984.

- Revista "Colóquio Letras" n�145/146, Julho-Dezembro 1997, "Homenagem a David Mourão Ferreira".


Notas

Este trabalho foi apoiado pelo Instituto Camões e pela JNICT através do Programa Lusitânia.

1. David Mourão-Ferreira, Obra Poética, Lisboa, Editorial Presença, 1988, 1� edição, p.259.

2. Ibid., p.40.

3. Ibid

4. David Mourãu-Ferreira, Os Amantes e Outros Contos, Lisboa, Publicações D.Quixote, 1981, 3� edição, p.128.

5. Ibid.,p.143.

6. Obra Poética, Op.cit.,p.309.

7. Ibid., p.215.

8. Ibid., p.269.

9. Os Amantes, Op.Cit., p.154.

10. Ibid., p.143.

11. Obra Poética, Op. Cit., p.252.

12. Ibid., p.54.

13. Ibid., p.119.

14. Jorge luis Borges, L'Auteur et autres textes, Paris, Editions Gallimard, 1965, p.25.

15. Obra Poética, Op Cit. p.126.

16. Os Amantes, Op Cit. p131.

17. Obra Poética, Op.Cit. p. 254.

18. Ibid., p.317.

19. Ibid., p.226.

20. Jorge Luis Borges, Obras Completas, Lisboa, Editorial Teorema, 1998, 1� edição, 1998, 1� volume, p.472.

21. Ibid, 2� volume.

22. Os Amantes, Op. Cit..

23. Obra Poética, Op. Cit., p.306.

24. Referência ao conto "Biblioteca de Babel" de Jorge Luis Borges, incluído na colectânea Ficções.

25. Obra Poética, Op. Cit., p 319.

Hosted by www.Geocities.ws

1