Legião Urbana
Dois - 1986
O disco Dois, de 1986, é o que mais marcou. Quem nunca sentou numa rodinha e ouviu "Eduardo e Monica", "Quase Sem Querer", "Índios" e "Tempo Perdido"?
Aquele gosto amargo do teu corpo
Ficou na minha boca por mais tempo:
De amargo e então salgado ficou doce,
Assim que o teu cheiro forte e lento
Fez casas no meu braço e ainda leve
E forte e cego e tenso fez saber
Que ainda era muito e muito pouco.
Faço nosso o meu segredo mais sincero
E desafio o instinto dissonante.
A insegurança não me ataca quando erro
E o teu momento passa a ser o meu instante.
E o teu medo de Ter medo de Ter medo
Não faz da minha força confusão:
Teu corpo é o meu espelho e em ti navego
E sei que a tua correnteza não tem direção.
Mas, tão certo quanto o erro de ser barco a motor
E insistir em usar os remos,
É o mal que a água faz, quando se afoga
E o salva-vidas não está lá porque não vemos.
Tenho andado distraído,
Impaciente e indeciso
E ainda estou confuso.
Só que agora é diferente:
Estou tão tranquilo
E tão contente.
Quantas chances desperdicei
Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo mundo
Que eu não precisava
Provar nada pra ninguém.
Me fiz em mil pedaços
Pra você juntar
E queria sempre achar
Explicação pro que eu sentia.
Como um anjo caído
Fiz questão de esquecer
Que mentir pra si mesmo
É sempre a pior mentira.
Mas não sou mais
Tão criança a ponto de saber tudo.
Já não me preocupo
Se eu não sei porquê
Às vezes o que eu vejo
Quase ninguém vê
E eu sei que você sabe
Quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você.
Tão correto e tão bonito:
O infinito é realmente
Um dos deuses mais lindos.
Sei que às vezes uso
Palavras repetidas
Mas quais são as palavras
Que nunca são ditas?
Me disseram que você estava chorando
E foi então que percebi
Como lhe quero tanto.
Já não me preocupo
Se eu não sei porquê
Às vezes o que eu vejo
Quase ninguém vê
E eu sei que você sabe
Quase sem querer
Que eu quero o mesmo que você.
É saudade então.
E mais uma vez
De você fiz o desenho mais perfeito que se fez:
Os traços copiei do que não aconteceu.
As cores que escolhi, entre as tintas que inventei,
Misturei com a promessa que nós dois nunca fizemos
De um dia sermos três.
Trabalhei você em luz e sombra.
Era sempre:
Não foi por mal. Eu juro que nunca
Quis deixar você tão triste.
Sempre as mesmas desculpas
E desculpas nem sempre são sinceras
Quase nunca são.
Preparei a minha tela
Com pedaços de lençóis
Que não chegamos a sujar.
A armação fiz com madeira
Da janela do seu quarto.
Do portão da sua casa
Fiz paleta e cavalete
E com as lágrimas que não brincaram com você
Destilei óleo de linhaça
E da sua cama arranquei pedaços
Que talhei em estiletes
De tamanhos diferentes
E fiz então
Pincéis com seus cabelos.
Fiz carvão do batom que roubei de você
E com ele marquei dois pontos de fuga
E rabisquei meu horizonte.
Era sempre:
Não foi por mal. Eu juro que não foi por mal.
Eu não queria machucar você: prometo que isso nunca vai
Acontecer mais uma vez.
E era sempre, sempre o mesmo novamente
A mesma traição.
Às vezes é difícil esquecer:
Sinto muito, ela não mora mais aqui.
Mas então porque eu finjo que acredito no que invento?
Nada disso aconteceu assim não foi desse jeito.
Ninguém sofreu: é só você que provoca essa saudade vazia
Tentando pintar essas flores com o nome
De "amor perfeito" e "não-te-esqueças-de-mim".
Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?
Eduardo abriu os olhos mas não quis se levantar:
Ficou deitado e viu que horas eram
Enquanto Mônica tomava um conhaque,
N'outro canto da cidade,
Como eles disseram.
Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer
E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer.
Foi um carinha do cursinho do Eduardo que disse:
Tem uma festa legal e a gente quer se divertir.
Festa estranha com gente esquisita:
Eu não estou legal. Não aguento mais birita.
E a Mônica riu e quis saber um pouco mais
Sobre o boyzinho que tentava impressionar
E o Eduardo, meio tonto, só pensava em ir pra casa:
É quase duas, eu vou me ferrar.
Eduardo e Mônica trocaram telefone
Depois telefonaram e decidiram se encontrar.
O Eduardo sugeriu uma lanchonete
Mas a Mônica queria ver o filme do Godard.
Se encontraram então no parque da cidade
A Mônica de moto e o Eduardo de camelo.
O Eduardo achou estranho e melhor não comentar
Mas a menina tinha tinta no cabelo.
Eduardo e Mônica eram nada parecidos
Ela era de Leão e ele tinha dezesseis.
Ela fazia Medicina e falava alemão
E ele ainda nas aulinhas de inglês.
Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus, de Van Gogh e dos Mutantes, de Caetano e de Rimbaud
E o Eduardo gostava de novela e jogava futebol-de-botão com seu avô.
Ela falava coisas sobre o Planalto Central,
Também magia e meditação.
E o Eduardo ainda estava no esquema
"escola-cinema-clube-televisão".
E, mesmo com tudo diferente,
Veio mesmo, de repente,
Uma vontade de se ver
E os dois se encontravam todo dia
E a vontade crescia, como tinha de ser.
Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia, teatro, artesanato e foram viajar.
A Mônica explicava pro Eduardo coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar:
Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer e decidiu trabalhar;
E ela se formou no mesmo mês em que ele passou no vestibular.
E os dois comemoraram juntos e também brigaram junto, muitas vezes depois.
E todo mundo diz que ele completa ela e vice-versa. Que nem feijão com arroz.
Construíram uma casa uns dois anos atrás,
Mais ou menos quando os gêmeos vieram
Batalharam grana e seguraram legal
A barra mais pesada que tiveram.
Eduardo e Mônica voltaram pra Brasília
E a nossa amizade dá saudade no verão.
Só que nessas férias não vão viajar
Porque o filhinho do Eduardo
Tá de recuperação.
Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?
Todos os dias quando acordo,
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo:
Temos todo o tempo do mundo.
Todos os dias antes de dormir,
Lembro e esqueço como foi o dia:
"Sempre em frente,
não temos tempo a perder."
Nosso suor sagrado
É bem mais belo que esse sangue amargo
E tão sério
E selvagem.
Veja o sol dessa manhã tão cinza:
A tempestade que chega é da cor dos teus olhos castanhos.
Então me abraça forte e me diz mais uma vez
Que já estamos distantes de tudo:
Temos nosso próprio tempo.
Não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas agora.
O que foi escondido é o que se escondeu
E o que foi prometido, ninguém prometeu.
Nem foi tempo perdido;
Somos tão jovens.
"É sangue mesmo, não é mertiolate."
E todos querem ver
E comentar a novidade.
"É tão emocionante um acidente de verdade."
Estão todos satisfeitos
Com o sucesso do desastre:
Vai passar na televisão.
"Por gentileza, aguarde um momento.
Sem carteirinha não tem atendimento
Carteira de trabalho assinada, sim senhor.
Olha o tumulto: façam fila por favor.
Todos com a documentação.
Quem não tem senha, não tem lugar marcado.
Eu sinto muito, mas já passa do horário.
Entendo seu problema mas não posso resolver:
É contra o regulamento, está bem aqui, pode ver.
Ordens são ordens.
Em todo caso, já temos sua ficha.
Só falta o recibo comprovando residência.
Pra limpar todo esse sangue, chamei a faxineira
E agora eu já vou indo senão eu perco a novela
E eu não quero ficar na mão."
Aceite o desafio e provoque em desempate:
Desarme a armadilha e desmonte o disfarce.
Se afaste do abismo
Faça do bom-senso a nova ordem;
Não deixe a guerra começar.
Pense só um pouco,
Não há nada de novo.
Você vive insatisfeito e não confia em ninguém
E não acredita em nada
E agora é só cansaço e falta de vontade,
Mas, faça do bom-senso a nova ordem:
Não deixe a guerra começar.
Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana,
Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres cantam música urbana,
Motocicletas querendo atenção às três da manhã
É só música urbana.
Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repetir a música urbana.
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana.
O vento forte seco e sujo em cantos de concreto
Parece música urbana.
E nos pontos de ônibus estão todos ali: música urbana.
Os uniformes
Os cartazes
Os cinemas
E os lares
Nas favelas
Coberturas
Quase todos os lugares.
E mais uma criança nasceu.
Não há mentiras nem verdades aqui.
Só há música urbana.
Às vezes parecia que, de tanto acreditar
Em tudo que achávamos tão certo,
Teríamos o mundo inteiro e até um pouco mais:
Faríamos floresta do deserto
E diamantes de pedaços de vidro.
Mas percebo agora
Que o teu sorriso
Vem diferente,
Quase parecendo te ferir.
Não queria te ver assim-
Quero a tua força como era antes.
O que tens é sói teu
E de nada vale fugir
E não sentir mais nada.
Às vezes parecia que era só improvisar
E o mundo então seria um livro aberto,
Até chegar o dia em que tentamos Ter demais,
Vendendo fácil o que não tinha preço.
Eu sei é tudo sem sentido.
Quero Ter alguém com quem conversar,
Alguém que depois não use o que eu disse contra mim.
Nada mais vai me ferir.
É que eu já me acostumei
Com a estrada errada que eu segui
E com a minha própria lei.
Tenho o que ficou
E tenho sorte até demais,
Como sei que tens também.
Nosso dia vai chegar, teremos nossa vez.
Não é pedir demais:
Quero justiça, quero trabalhar em paz.
Não é muito o que lhe peço
Eu quero trabalho honesto
Em vez de escravidão.
Deve haver algum lugar
Onde o mais forte não consegue escravizar
Quem não tem chance.
De onde vem a indiferença
Temperada a ferro e fogo?
Quem guarda os portões da fábrica.
O céu já foi azul, mas agora é cinza
E o que era verde aqui já não existe mais.
Quem me dera acreditar
Que não acontece nada de tanto brincar com fogo.
Que venha o fogo então.
Esse ar deixou minha vista cansada,
Nada demais.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Ter de volta todo ouro que entreguei
A quem conseguiu me convencer
Que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Esquecer que acreditei que era por brincadeira
Que se cortava sempre um pano-de-chão
De linho nobre e pura seda.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Explicar o que ninguém consegue entender:
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Provar que quem tem mais do que precisa Ter
Quase sempre se convence que não tem o bastante
E fala demais, por não Ter nada a dizer.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Que o mais simples fosse visto como o mais importante,
Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
Só maldade então, deixar um Deus tão triste.
Eu quis o perigo e até sangrei sozinho.
Entenda assim pude trazer você de volta para mim,
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim
E é só você que tem a cura para o meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Acreditar por um instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Como a mais bela tribo, dos mais belos índios,
Não ser atacado por ser inocente.
Eu quis o perigo e até sangrei sozinho.
Entenda assim pude trazer você de volta para mim,
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim
E é só você que tem a cura para o meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.
Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui.