A dama e o general

Raquel Wandelli

Madrugada de segunda-feira. A viatura da Polícia Militar estaciona em frente a um prédio próximo ao viaduto do Centro com a sirene desligada. A cidade ainda está deserta. Três policiais descem do carro em direção à calçada.

"Carbonizados. Pela posição dos dois... será que estavam trep...", o policial de farda, depois de retirar o lençol que cobre os cadáveres.

"Parecem velhos demais, sargento", interrompe o P.M., cabo.

"Credo, quem seria capaz de uma maldade assim com esses pobres diabos?, um terceiro P.M., gordo, sacudindo as bochechas vermelhas e fazendo o sinal da cruz.

"Não sei porque o espanto. Já encontramos quatro corpos carbonizados esta semana. O pessoal do 5° achou um cara que foi queimado enquanto dormia dentro da Igreja", o sargento.

"Céus...", o soldado gordo, repetindo o sinal da cruz.

"Eles acendem o fogo para se esquentar, enchem a cara e acabam dormindo. A cachaça derrama e o estrago tá feito", explica o segundo P.M.

"Quem não trabalha não merece viver. Vamos logo remover isto antes que amanheça e se forme uma multidão", ordena o sargento, cobrindo novamente os cadáveres. "Leve este quepe ensebado também".

***

Horas antes, escadarias da Catedral:

"Durma Brigadeiro. Eu vigio o seu sono".

"Nada disso, Condessa, durma você. Eu vou ler até mais tarde". Em um só gesto, tira o quepe e apanha uma folha de jornal.

"Então faço companhia".

"Você viu os preparativos para o casamento da princesa do Japão?", ele, sério e concentrado.

"Olhe essa carruagem, nós poderíamos morar lá dentro!", tomando a folha do companheiro. "Aqui diz que o bolo terá 20 metros recheados com as mais finas iguarias do Oriente e os adornos serão sapecados de esmeraldas".

"Só espero que os noivos não engulam as pedras". De súbito, ele arregala os olhos, contrai os músculos do abdômen, rola no chão, engasgado, como se quisesse expulsar um lagarto da entrada do estômago. Tosse e escarra, asfixiando-se com a própria língua, até que solta um grunhido e cospe na mão um anel de vidro verde. A luta parece chegar ao fim. Brigadeiro arrota alto e acaricia o peito aliviado.

Ela ri um riso esgarçado. "Deixe de porcarias, você não está no circo, seu velho mandraqueiro. Vamos ver a página policial. Leia para mim, esqueci os óculos na confeitaria ontem". Condessa tem um olhar altivo e gestos refinados. Ela ajeita a gola da blusa e o cachecol de lã vermelha tem a leveza de uma echarpe de seda pura. "Amanhã lembre-me de mandar o motorista buscá-los", examinando as unhas.

"Certo lady, cale a boca agora". Brigadeiro retorna o quepe para a cabeça e vira as páginas do jornal com elegância de diplomata. A voz é ainda charmosa, de um timbre grave e aveludado. "Estão assassinando mendigos durante o sono no centro da cidade. Segundo a notícia o número de assassinatos dobrou depois que o inverno chegou..."

"É perigoso cochilar nestes tempos", sumariamente. Deixe disso, esse assunto não me afeta, graças a Deus temos nosso lindo teto cravejado de diamantes. Veja que lua! Você não me convida para dançar? Nossos amigos já estão chegando ao salão principal".

Ele se levanta e lhe estende a mão. Descem a escadaria da Catedral e vão até o largo da praça, iluminado por antigas lamparinas. Brigadeiro começa a tirar os acordes lentos e tristes de Noturno soprando uma folha de papel presa entre os lábios. Foi assim que ela o conhecera, tocando seu instrumento de papel na Praça da cidade. Enlaça sua cintura, segura-lhe a mão direita junto ao peito e ensaia passos delicados de valsa. Ela flexiona o corpo para trás e pede que rodem. Enquanto giram na rua deserta, os convidados deixam o salão. Acima de suas cabeças, a visão do casario sujo e descascado vai se apagando e sobra apenas o recorte do teto estrelado e do candelabro redondo de prata.

"Você dança divinamente, generaaaaaaaaaalll......."

"E você está linda com esse vestido azul, minha condessa!".

Brigadeiro veste um fraque negro e faz parte da orquestra de violinos... monsieur de Blénac adora ouvir violinos, o jardim interno, choveu esta noite... o patrão vai chegar com mademoiselle, oui, monsieur, é preciso preparar os coquetéis, os violinos... tenho vertigens... "Basta, estou exausta!", diz, repousando a cabeça no ombro do companheiro. Peça ao maestro para tocar Paganini agora, enquanto olhamos as estrelas na sacada principal. Afinal, somos os convidados de honra, não somos?".

Ele se irrita ao ouvi-la. "Não, condessa, você está caducando. Nós somos os anfitriões. E este deveria ser o salão do Country Club!".

"Pare com essa mania de me corrigir em público, seu velho estúpido! E eu já disse para você não me chamar de caduca". Sua face está transtornada, ela avança soqueando-lhe o peito.

"Ah, então a dondoca se ofendeu! E quem foi que sentou em cima dos óculos que eu achei no bazar da Vila Chinesa?"

"Isso já faz dois anos. Não suporto sua deselegância", choraminga. "Me leve para casa".

Apanham suas coisas e caminham até o túnel que corta a avenida central da cidade.

"Descanse um pouco nesta poltrona", ele, fazendo-a sentar junto de si sobre um cobertor no chão. Gosto de vir aqui na galeria de artes. A arte pós-moderna me comove, embora prefira os clássicos".

Ela observa a longa fila de sem-tetos prostrada nas paredes de aço, com suas crianças movendo-se em volta como ratazanas em sacas de aniagem ...o tubo é a passagem secreta para a mansão do cônsul...os tapetes persas precisam ser estendidos ao sol porque ele virá para o jantar, tem que estar tudo em ordem, o cônsul odeia poeira, os gatos siameses largaram pelo por toda a casa, o cônsul adora gatos siameses mas não gosta de pelos em seus tapetes.

"Doem-me as costas. Estou velha", geme. "General, conte-me uma de suas aventuras marítimas..."

Olha para o lado e vê que ela adormecera. "Venha", sussurrou, acomodando-a sonolenta nos braços. "Encoste-se aqui".

"Como você é valente meu brigadeiro...", sem abrir os olhos, amortece-se, nos braços do seu general.

Um alvoroço dos vizinhos interrompe de assalto o sono recém-conciliado do general. "A rapa tá solta! Pegaram o Giló bem aqui perto. Vidal, acorde os outros, o negro e a dondoca também", o jovem líder do batalhão de maltrapilhos. "Mais de 70% do corpo com-pro-me-ti-do, o médico da polícia disse", soletra um pequeno mensageiro negro. "Será que escapa?", uma jovem.

"Assim é melhor não sobreviver mesmo", o mulato Vidal, apressando-se em alertar os demais que se enfileiram ao longo da galeria.

"Condessa, condessa!", chama o Brigadeiro, sacudindo-lhe os ombros com firmeza. "Temos que sair!".

"Está muito frio.... Não acredito, você vai querer trocar de hotel de novo? Bem, porque não tiramos umas férias e vamos..."

"Venha logo, garota, temos que procurar outro lugar".

Um acesso de raiva desperta junto com a dama de cera. "Eu já disse, não saio de casa sem pelo menos escovar os dentes e passar meu blush. É uma questão de dignidade para uma dama, ouviu?". Mas brigadeiro não a obdece. Já estão deixando o local quando ela se vira: "Temos que voltar, deixei minha bolsa!"

"Tudo bem, princesa, eu arranjo outra pra você mais tarde no bazar", já impaciente e puxando-a pela mão. "Não vou à parte alguma sem minhas coisas!", protesta. "Pare de espernear ou arrasto você pelos cabelos!". Os dois atravessam o túnel em ritmo apertado, carregando uma trouxa de roupas e uma pilha de papéis. A pequena multidão ocre se move até a saída do túnel, onde se dispersa. General e condessa pegam a via expressa e alcançam o viaduto.

Já caminham há quase meia hora, quando ela diminui o passo..."Brigadeiro, eu preciso...".

"Claro madame, eu a acompanho até a toalete aqui perto".

Ele lhe oferece o braço e a conduz a uma pequena depressão ao pé do barranco cavado embaixo do viaduto. Protegem-se atrás da viga de concreto que isola o cômodo da área descampada e do barulho da metrópole.

"Prefere usar o lavabo ou quer que prepare seu banho na suíte cor-de-rosa?", encoraja-a.

"Seria muito agradável neste momento un bain com aromas de rosa, mas estamos atrasados".

"É verdade. O almirante nos espera para o almoço", diz ele, alcançando-lhe papel. "Ele quer me mostrar a coleção de armas que trouxe de sua residência na Escócia". Brigadeiro fala sobre a visita, tentando disfarçar o interesse pelas pernas nuas da companheira...as coxas estão flácidas, mas ainda são bem torneadas, como devia ser desejável, quantos homens amaram seu sexo e quantos cuspiram nele depois de se saciar. Olha seus olhos de andarilha ...quanto vazio... Ela puxa a calcinha e as pregas da parte interna do antebraço tremem. Como agradece a deus por não tê-la conhecido jovem, por já tê-la encontrado nas ruas assim, faminta, sem clientes, esvaindo-se como uma nuvem de poeira... uma boca de lixo inflada de dignidade, certa altivez, bendita empáfia, que a pior tragédia humana não consegue dissipar. Continuou pensando na sua sorte...um homem que não faz escolhas na vida não pode se diferenciar de um verme. Ele a escolhera, pela primeira vez fizera uma escolha. Entrara no circo para seguir o pai e saíra da companhia quando o pai brigou com o proprietário. Alistara-se na guerra porque o governo o obrigara, nem mesmo a miséria era sua opção... Como é feliz de poder amá-la profundamente, com todas as cicatrizes dos seus seios flácidos.

Condessa está descendo as roupas quando percebe o olhar terno do companheiro e se detém a fitá-lo com as saias suspensas pouco acima dos joelhos. ...porque não me repreende? porque não se recompõe rápido, como de costume? porque não está agressiva? Ela, então, o surpreende: "Você me ama profundamente, não é?"

Andam mais alguns metros depois de deixar a toalete e é ela novamente quem rompe o silêncio:

"Brigadeiro, você acha que valeu a pena ter sobrevivido naquele naufrágio durante a guerra?" ela, ofegante.

"Não fique tão tensa". Eles se encaminham para a frente de um prédio.

"Sempre se quer sobreviver. Deus é sádico", sentando-se ao seu lado.

"Você ainda tem os recortes de jornal sobre sua vida no picadeiro?"

"Dois ou três, por quê?", entorna um demorado gole pelo gargalo e passa a garrafa para ela.

"Háhh! O licor está forte", degusta. "Cai muito bem depois dessa refeição. E as fotos do seu filho?"

"Foram-se no último furto".

"Há bem pouco tempo eu tinha medo de morrer sem deixar sinais. Eu disse isso para um jornalista e ele então me aconselhou a escrever um diário. Lembro-me de ele ter dito algo profundo como: ‘A escrita é o lugar em que se marca as linhas da vida’".

"E onde está o seu diário? Por que nunca me falou dele?".

"Anotei tudo por alguns meses. A infância no interior, o trabalho de governanta nas mansões, o brilho dos cabarets, o cheiro de urina misturado à lavanda nos quartos de bordel. Por vezes confundia tudo. Já teve a impressão de que sua vida não tem uma seqüência como no cinema? Para que serviria uma vida sem seqüências? Um dia dei o diário e a caneta para um garotinho de rua desenhar. Ele saiu saltitando e nunca mais o vi. Estar nas ruas é como andar em um trem sempre em movimento. Não se pode parar o trânsito".

"O que tinha na sua bolsa de valioso?"

"De valioso nada... um batom, minha carteira de identidade..."

Ele procura os recortes na sacola de plástico. Prepara-se para riscar um fósforo, mas ela o detém:

"Fogo não. Jogue no Lago Delphy", sugere. Eles se aproximam do canal com as mãos e os olhares entrelaçados como se firmando um pacto silencioso. O embrulho de papéis faz pouco ruído ao cair na água e em segundos desaparece na correnteza do esgoto pluvial.

Brigadeiro estica os braços fortes e respira fundo, tentando animar-se. "Pode ser fascinante mesmo essa idéia de passar pelo mundo sem deixar marcas, nada que não seja apagável. Já me sinto leve... sou uma pluma!...", ele ensaia um vôo pela calçada.

Os olhos da dama procuram tristes a praia além do horizonte de concreto. "Algo como se atirar ao mar sem olhar para trás, partir sem pegadas na areia".

"Você e sua obsessão por naufrágios. Prefiro que dois anjos venham me buscar durante o sono e que deus me aguarde nas nuvens com um par de pantufas e uma xícara de chocolate bem quente". Ele percebe-a emocionada e muda o tom da conversa. "Aonde vamos agora?"

"Já caminhamos tanto pelas ruas que poderíamos ter chegado à Inglaterra", ela, se recompondo.

"Londres, Paris, Tóquio, Amsterdã, Roma, África do Sul... é só escolher minha rainha! Partimos em excursão esta madrugada!"

"Chega por hoje. A única coisa que me falta fazer realmente com você é dormir. Você já se deu conta de que nos conhecemos há tanto tempo e ainda não conseguimos dormir junto?", acomodando-se ao seu lado.

"Quase nos estrepamos há pouco por isso...", lembra. "Não, não. Isso é cochilar e acordar a qualquer momento para bater em retirada. Falo de um sono profundo, compartilhado, sem medo. Acho mesmo que não me importaria de morrer depois de dormir uma noite com você".

Ele se acomoda melhor para ouvi-la. "Acho que quando duas pessoas que se amam dormem juntas, seus sonhos, fígados, o pâncreas, o cérebro, os sexos, todos os seus órgãos internos funcionam sincronizados e então é como se a alma dos amantes se desprendesse e se encontrasse em outra dimensão".

"Hummm....As ruas deram aula para minha prostituta filósofa..."

"Não seja odioso, repreende-o. "Eu nunca permiti que os homens que se deitaram comigo dormissem ao meu lado. Tinha medo que levassem minha alma enquanto".

Ele olha com ardor sua face murcha, ajeita-lhe os cabelos longos e sem vida e pousa os lábios roxos sobre suas mãos cor-de-manhã. "Abrace-me meu brigadeiro. Você está exausto. Há quanto tempo não dorme de verdade...", acaricia o terno xadrez.

"Descanse condessa". Os dois beijam-se longamente e adormecem, sobre o forro prateado da nave estelar.

* * *

7h30 de segunda-feira, no Instituto Médico Legal.

Policiais civis desenrolam o lençol, exibindo os corpos queimados ao delegado que acaba de chegar. Um deles fala sem parar:

"Um morador do Centro fez a denúncia anônima para a Polícia Militar. Quando os homens chegaram ao local os corpos já estavam carbonizados há pelo menos uma hora. O informante disse pelo telefone que conhecia o casal. Eram visto de vez em quando no depósito de lixo da Vila Chinesa catando bugigangas. Parece que ele era um negro andarilho, metido a artista, e ela, uma prostituta aposentada".

"Certo, manda enterrar como indigentes. Mais um acidente com essa raça..."

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