CIDADES MORTAS
Monteiro Lobato
*Profa. Maria Jerusa
Rodrigues Marinho
1. O AUTOR – DADOS BIOGRÁFICOS
José Renato Monteiro
Lobato ( o segundo nome, depois, foi substituído por Bento),
nasceu em Taubaté, em 1882. Cursa Direito por imposição da
família. Participa de grupos e jornais literários e depois de
formado é nomeado promotor público. Torna-se fazendeiro ao
herdar a fazenda do avô, a qual é vendida para que ele crie a
Editora Monteiro Lobato. Embora tenha dinamizado o mercado
livreiro, sua editora vai à falência, o que o leva à imprensa
do Rio de Janeiro, onde passa a ser colaborador. Mora em Nova
York, e na Argentina, que acolhe muito bem suas obras,
principalmente as infantis. Participa de inúmeras campanhas públicas
e até foi preso por suas idéias revolucionárias. Morre vítima
de espasmo pulmonar a 04 de outubro de 1948.
2. OBRAS
Literatura em Geral –
Urupês, Cidades Mortas, Idéias de Jeca Tatu, A Onda Verde, O
Choque das Raças ou O Presidente Negro, O Escândalo do Petróleo,
entre outras. – Literatura Infantil – Narizinho Arrebitado,
O Saci, Fábulas de Narizinho, O Marquês de Rabicó, A Caçada
da Onça, Aventuras do Príncipe, História do Mundo, As Caçadas
de Pedrinho, Emília no País da Gramática, História das Invenções,
Geografia da Dona Benta, Dom Quixote das Crianças, entre
dezenas de outras obras.
3. CARACTERÍSTICAS GERAIS
ü Escritor combativo e
arrojado.
ü Autor de contos,
ensaio e crítica polêmica.
ü Primeiro escritor a
elaborar um projeto editorial para crianças.
ü Defensor de uma língua
sem a “gramatiquice” – o velório da língua.
ü Defensor ardoso das
riquezas brasileiras; famoso é o seu grito de guerra: O Petróleo
é Nosso!
ü Um aristocrata (menino
de tempo do império) republicano.
ESPAÇO
Itaoca é uma cidadezinha
qualquer do interior paulista onde o escritor ambienta suas histórias;
nela, aparecem casas de tapera, ruas mal iluminadas, políticos
corruptos, patriotas, ignorância, miséria. Representa todas as
cidadezinhas que Lobato viu se afundarem no vale do Paraíba.
ESTRUTURA DA OBRA
Cidades Mortas, A vida em
Oblivion, Os Perturbadores do Silêncio, Vidinha Ociosa,
Cavalinhos, Noite de São João, O Pito do Reverendo, Pedro
Pichorra, Cabelos Compridos, O Resto de Onça, Por Que Lopes se
casou, Júri na Roça, Gens Ennyyeux, o Fígado Indiscreto, O Plágio,
O Romance do Chopin, O Luzeiro Agrícola, A Cruz de Ouro, De
Como Quebrei a Cabeça à Mulher do Melo, O Espião Alemão, Café
Café, Toque Outra, Um Homem de Consciência, Anta que Berra, O
Avô de Crispim, Era no Paraíso, Um Homem Honesto, O Rapto, A
Nuvem de Gafanhotos, Tragédia de um Capão de Pintos.
ENREDOS
1. CIDADES MORTAS
Primeiro conto e nome da
coletânea faz um retrato das cidades do Norte de São Paulo, no
vale do Paraíba, nos áureos tempos do café: “Umas tantas
cidades moribundas arrastam um viver decrépito, gasto em chorar
na mesquinhez de hoje as saudosas grandezas dantes”. Nos
soberbos casarões, vivem plantas, umedecidas pelas goteiras; os
móveis empoeirados ainda guardam o esplendor da época com seus
candelabros azinhavrados, cujas dezoito velas não se acendem e
tudo cheira a bolor e velhice: “São os palácios mortos da
cidade morta”. Largado numa praça, encontra-se o antigo
teatro, que nos áureos tempos recebeu grandes artistas. Os
ricos mudaram-se para o Rio, São Paulo e Europa e os que
ficaram amargam uma vida sem horizonte. A única ligação com o
mundo se resume no “cordão umbilical do correio”. Tudo
contribui para o aspecto de abandono, pois as cidades não têm
som que indique vida; só os velhos sons coloniais ainda restam
– “o sino, o chilreio das andorinhas na torre da igreja, o
rechino dos carros de boi, o cincerro das tropas raras, o
taralhar das baitacas que em bando rumoroso cruzam e recruzam o
céu”. Tal desolação é maior na área urbana, mas o campo
também dá sinais de pouca vitalidade.
2. A VIDA EM
OBLIVION
Referência à cidade
onde morou, batizada de Oblivion, de onde partiram sues filhos
atraídos por novas terras, permanecendo ali “os de vontade
anemiada, débeis, faquirianos.” “Mesmeiros”, que todos os
dias fazem as mesmas coisas, dormem o mesmo sono, sonham os
mesmos sonhos, comem as mesmas comidas, comentam os mesmos
assuntos, esperam o mesmo correio, gabam a passada propriedade,
lamuriam o presente e pitam – pitam longos cigarrões de
palha, matadores do tempo”.
Entre as originalidades
de Oblivion, figuram alguns livros e entre eles a obra a ILHA
MALDITA de Bernardo Guimarães: “Lê-lo é ir para o mato,
para a roça”, mas não uma roça autenticamente brasileira e
sim enfeitada de moças refinadas e termos citadinos.
“Bernardo falsifica nosso mato... ele mente.” O autor
ridiculariza os poucos livros ali existentes e a alienação de
seus moradores.
3. PERTUBADORES DO
SILÊNCIO
A permanente quietude da
cidade é apenas quebrada por alguns “perturbadores”: o sino
da igreja, a capina das ruas com seu raspar das enxadas, o
coaxar dos sapos. “A algazarra das crianças à saída do
grupo escolar e ainda o ranger dos ferros do carrinho da Câmara,
coma uma roda só.”
4. A VIDINHA OCIOSA
Em Apólogo ironiza o mal
da nossa raça: preguiça de pensar “dizendo que cem
fazendeiros em cinco minutos pipocavam os machados nas perobas,
mas não seriam capazes de se deter meia hora sobre um papel”.
Em A mesmice mostra os
dois motivos que “mantêm a cidade: a botica (fonte de
mexerico permanente) e o jogo.
A folhinha – referência
ao calendário de parede que distingue os dias da semana do
domingo, quando as praças se movimentam e os bares vendem mais
pinga.
Touradas – o antigo velódromo
foi transformado em circo de touros com apresentações aos
populares que se dividem em torcidas.
A enxada e o parafuso –
recurso usado no teatrinho da cidade para dar início ao espetáculo;
quando um mambembe forasteiro quis substituí-la por três
pancadinhas no assoalho dizendo ser moda em Paris, o povo não
aceitou, “cada terra com seu uso”.
Rabulices – relata o
dia em que os advogados e rábulas se reúnem para a sessão de
Júri discorrendo lentamente sobre seus conhecimentos, fazendo
daquele um momento de “interminável prosa sobre processos,
atos judiciários, movimentos forenses, nomeações, negócios
profissionais, pilhérias jurídicas.
Pé no chão – história
pitoresca de uma criança e o uso de apenas um pé de sapato,
pois a escola não admite aluno descalço, enquanto o outro é
guardado, assim o par de botina dura o dobro. Tudo isso em nome
da “inconomia”.
Barquinho de papel –
costume antigo usado por crianças, após a chuva: barquinhos de
papel são colocados na enxurrada, e até os namorados se valem
desse costume para mandar mensagens de amor.
O herege – referência
às brincadeiras das crianças: ciranda, pegador, a senhora
pastora, cantigas de perguntas e respostas.
Juquita – menino
travesso, terror dos animais pequenos.
O Jesuíno – outro herói
daquela esquecida cidade: o oficial de justiça, cheio de histórias
para contar sobre suas atividades e como os intimados o recebem.
5. CAVALINHOS
em tom de saudade, Lauro
rememora os tempos em que o pai os levava ao circo de
cavalinhos; o palhaço e suas cambalhotas, as músicas, os
tabuleiros de doces... “O encanto de tudo aquilo, porém,
estava morto, tanto é certo que a beleza das coisas não reside
nelas, senão na gente”.
6. A NOITE DE SÃO
JOÃO
Ainda persistem algumas
tradições e, entre elas, a festa ao redor da fogueira, onde se
confraternizam os fandanguistas – “Um dilúvio de pés
estanguidos – pés de marmanjões, pés calçados e pés-no-chão,
pezinhos de crianças, pés brancos, pés pretos e pés mulatos
– das criadinhas e molecotes crias de casa” – Ao som da
“sanfona que gemia cadenciada”, mas súbito, “chiou ao
longe um buscapé de limalha que, qual raio epilético,
enveredou pelo meio do povo aos corcovos, criando o pânico e
debandada”. Gengibrada em bules fumegantes e um balão que
sobe na noite: “Bonito! Parece o Vesúvio!”
7. O PITO DO
REVERENDO
Aguardando importante hóspede
em sua casa, o reverendo de Itaoca vê a caseira arrumar tudo,
do chão ao teto, preparar o melhor prato e imagina seus tristes
dias de abstinência sem o prazer de seu pito. Quando o
visitante chega, de ilustre não tinha nada, e o “padre sorveu
de um trago o café e refloriu a cara de todos os sorrisos de
beatitude; desabotoou a batina, atirou com os pés para acima da
mesa, expeliu um suculento arroto de bem-aventurança e berrou
para a cozinha: Maria, dá cá o pito”.
8. PEDRO PICHORRA
História de um menino
que aos doze anos ganhara sua faca de ponta, sinal de
virilidade. Porém, de volta de uma cavalgada até um sítio
vizinho, e já quase de noite, sua égua empina a orelha e
passarinha; isto era um sinal de saci, E o medo lhe mostrou um
“saci de braços espichados, barrigudo, com um olho de fogo
que passeava pelo corpo”. Em casa, após o pai ter-lhe tomado
a faca e lhe dizer que ele ainda usaria o canivete, explica o
ocorrido. “A velha Miquelina havia deitado naquele dia a
pichorra d’água a refrescar ao relento à beira do barranco,
e um vaga-lume-guaçu pousara nela por acaso, justamente quando
o menino ia passando...” Daí em diante passou a se chamar
Pedro Pichorra.
9. CABELOS
COMPRIDOS
Das Dores é ironicamente
retratada: uma moça feia e desengraçada, cujo único atributo
são os longos cabelos, inversamente proporcionais às usa idéias;
repetia fórmulas prontas e não se dava ao trabalho de pensar e
de ter seus conceitos próprios, Assim era vista como “Coitada
das Das Dores, tão boazinha...”Apenas isso: boazinha. O cúmulo
se deu quando um padre que viera à cidade recomendou ser necessário
refletir em cada palavra da oração para que elas tivessem
efeito. Foi o que Das Dores fez, passou a soletrar palavra por
palavra do Pai Nosso e buscar seus mais variados significados,
concluindo pela primeira vez, que aquilo era uma asneira.
10. O RESTO DA ONÇA
O autor se declara avesso
aos contos formais que tornam difíceis a leitura e compreensão;
assim, para avaliar um bom conto, pede que sua cozinheira, que
tem paladar apurado, faça a leitura e dê a opinião a
respeito. A história de um caçador da região ilustra o fato
– Resto de Onça, é o nome de um corajoso homem, ou o que
dele restou em confronto com uma onça. Dessa forma, a narrativa
popular, com um devido trato supera as histórias com “a
arquimaçadora psicologia do Sr. Alberto de Oliveira”.
11. POR QUE LOPES
SE CASOU
Lopes e Lucas eram dois
amigos desde a infância; Lucas está casado, com doze filhos e
amarga uma triste vida doméstica: seu lar é uma praça de
guerra e a esposa o avesso da noiva, a que ele dedicara tantos
versos, sonetos e serenatas, além de enfrentar sua família que
era contra o casamento. Depois de ouvir os desabafos de Lucas,
Lopes resolveu se casar: “Se tinha de acabar como o Lucas,
levasse sobre ele, ao menos a vantagem de menor cópia de
versos à futura cascavel”. Porque lhe pareceu que o maior
sofrimento do Lucas havia de ser o remorso da enorme bagagem de
versos pré-nupciais. E era”.
12. JÚRI DA ROÇA
Há possibilidade de este
conto ser a transposição do único caso em que o advogado
Lobato tomou parte, quando era promotor em Areias – um júri
é um acontecimento imperdível; todos querem estar presentes;
no início o espaço é disputado, mas com o passar do
tempo e a longa exposição do advogado, aproximadamente por
seis horas, o recinto vai-se esvaziando e, já alta noite,
quando os jurados se reúnem, sem saber como apresentar o
resultado e o juiz os convoca à nova reclusão, o final é
hilariante: encontraram sobre a mesa dos jurados um bilhete
dizendo que o réu fora condenado à pena “maquecimo” (máxima
– dedução do Juiz) que se espanta com a janela aberta por
onde fugiram os jurados. Na sala principal, o juiz acorda os
policiais para procurarem o réu, que também havia fugido. Eram
três horas da madrugada!
13. GENS ENNUYEUX
Relato crítico de uma
enfadonha sessão científica, prestigiada pelas pessoas cultas
da cidade, envergando suas sobrecasacas e aparentando enormes o
interesse pelo assunto. Com o decorrer da conferência, todos
esboçam bocejo e a platéia perde sua pose inicial.
14. O FÍGADO
INDISCRETO
Conto que relata com
muito humor os apuros de um jovem quando foi jantar em casa de
sua futura noiva, e lhe foi servido bife de fígado, iguaria a
que ele detestava. Consegue engoli-lo quase por inteiro e a
futura sogra interpreta como se ele apreciasse aquele tipo de
bife e coloca outro em seu prato. Não conseguindo repetir o
feito, o rapaz o coloca no bolso; ao tirar o lenço; o bife cai
no chão, e ele tenta desviar a atenção de todos declamando inúmeras
poesias, mas, por fim, todos percebem e ele passa a maior
vergonha. Além disso, o noivado se desfaz e o pai da noiva
passa a dizer: “é um bom rapaz, mas com um grave defeito:
quando gostava de um prato não se contentava de comer e repetir
– ainda levava escondido no bolso o que podia” – Inácio,
o noivo, teve de mudar de terra.
15. O PLÁGIO
Ernesto era um escrivão
com interesses literário. Um dia leu o final de um romance e as
palavras colaram em seu cérebro de tal forma que ele resolveu
escrever para o jornal um conto com aquele soberbo final. Fez e
recebeu dos amigos e conhecidos elogios ao texto e
principalmente à beleza das palavras finais. Temendo que alguém
encontrasse o livro original e descobrisse o plágio, comprou os
volumes que encontrou e os queimou para espanto da esposa.
Receoso de que os elogios insistentes eram referência
proposital ao que fizera, via perigo e armação em todos;
afastou-se do convívio das pessoas, emagreceu, adoeceu. O tempo
passou e Ernesto sobreviveu. Já era major, tinha seis filhos e
continuava a fazer literatura – clandestinamente, embora.
“Moralidade há nas fábulas. Na vida, muito pouca – ou
nenhuma.”
16. O ROMANCE DO
CHOPIM
Um dia, antes do início
de uma sessão de cinema, uns amigos vêem um curioso casal
entrando na sala. “Ele bem mais moço, tinha um ar vexado e
submisso de coisa humana, em singular contraste com o ar mandão
da companheira. O estranho casal residia sobretudo nisso, no ar
de cada um, senhoril do lado fraco, servil do lado forte.
Inquilino e senhoria, quem manda e quem obedece; quem dá e quem
recebe”. Um dos amigos aponta o homem com o beiço e murmura:
- “Um chopim. – Chopim? – Quer dizer: marido de
professora. O povo alcunha-os desse modo por analogia com o
passarinho preto que vive à custa do tico-tico”.
17. O LUZEIRO AGRÍCOLA
Crítica a um funcionário
público e por extensão ao Ministério da Agricultura por sua
prática de órgão sem objetivos e gastador do dinheiro público.
Um jovem poeta torna-se funcionário desse órgão e o seu chefe
lhe dá como incumbência fazer um relatório. Sobre o quê,
pergunta ele. Isso não importa. Você escolhe o assunto, faz o
relatório e manda publicá-lo, há uma verba destinada para tal
fim. Após pensar muito a respeito, pesquisar isso e aquilo,
Sizenando Capistrano descobre, após a esposa lhe jogar na cara
um prato de beldroega, que este era o vegetal que procurava!
Gastou dois anos entre estudos, elaboração do relatório e sua
publicação. Tudo pronto, vai ao ministro livrar-se da incumbência,
quando ouve a seguinte resposta: “Mande a papelada para o
forno de incineração da Casa da Moeda”. “Que queria que e
fizesse de cinco mil exemplares de um relatório sobre a
beldroega?... o mais prático é passar da tipografia ao
forno”. Diante da estupefação do funcionário que pergunta
ao Ministro o que faria depois, ouve o seguinte: - Escreva outro
relatório . – Para ser queimado novamente? – É claro,
homem!”
18. A CRUZ DE OURO
Dois coronéis do café
(título recebido por terem atingido 10 mil arrobas de café) se
encontram e falam sobre suas doenças e seus familiares. Um
deles conta que a filha está de namoro com um rapaz pobre mas
de boa família, o outro discorda dizendo que ele é primo de
Chiquinho, um rapaz que deu um convite para Cruz de Ouro, uma
prostituta, comparecer a um espetáculo no clube da Recreativa.
Os dois comentam o absurdo de tal presença num local freqüentado
por familiares. Ao sair da casa do amigo, o velho coronel se
dirige à casa de Cruz de Ouro e tem dificuldade de marcar um
encontro: a agenda dela está cheia, inclusive com o nome do
outro coronel amigo.
19. DE COMO QUEBREI
A CABEÇA À MULHER DO MELO
Convidado para jantar em
casa de amigos, um homem explica que não gosta desse tipo de
convite porque tem hábitos próprios: comer quando e o que
deseja à hora que quiser – o que não ocorreria em casa
alheia, sujeito a horários e a cardápios estranhos. Essa
recusa nascera de uma fatídica visita à casa de Melo – a
anfitriã, desejosa de ser muito solícita, vai colocando
iguarias no prato do visitante que protesta, mas com grande
esforço consegue engolir; em dado momento, Melo corta o leitão
e a esposa espeta um pedaço de carne e se dirige ao seu hóspede
que não sabe como pegou uma garrafa e acertou-a na cabeça da
mulher.
20. O ESPIÃO ALEMÃO
Conto que traduz com
muito humor o espírito anti-germânico predominante no período
da Primeira Guerra. Itaoca fora palco de um incidente singular;
uma noite, um estranho vulto, de cabelos ruivos, com um saco às
costas, provavelmente parte de um disfarce, foi visto na cidade.
Forma acionadas as autoridades que após inúmeros esforços
conseguem capturar o inimigo. Este não diz uma palavra
compreensível, apenas repete “Ai eme inglix” que na tradução
do padre local e pessoa mais culta do lugar significava “estou
com fome”. Levado com escolta para a capital, após
despedidas, choros e discursos dos que temiam um ataque dos cúmplices
do espião, a cidade sente-se temerosa, porém participante da
insana II Guerra Mundial. Até que alguns dias depois chegou um
telegrama ao chefe de polícia com a seguinte mensagem:
“Verificamos prisioneiro súdito inglês. Receios
complicação diplomática. Guardem reserva grotesco
incidente”. O coronel José Pedro, não dando braço a
torcer, comunicou que recebera um telegrama confidencial “O
caso é mais grave do que supus”. Assim, passou a história de
Itacoca a certeza de que aquela cidade fora realmente palco de
uma ação bélica.
21. CAFÉ CAFÉ
Relato que reproduz o espírito
do homem da terra obcecado pela monocultura do café. Acostumado
a vender sua safra por trinta e cinco a quarenta mil réis, não
aceitava a queda dos preços que chagava a quatro mil réis. Nem
tampouco aceitava a sugestão de cultivar outro cereal. “O
homem encolorizava-se e rugia: - Não! Só café! Há de subir
muito. Sempre foi assim. Só café!” E mantendo-se
obstinadamente nessa idéia viu suas terras perderem o valor, os
empregados serem dispensados e as contas levarem parte de sua
fazenda.
22. TOQUE OUTRA
Sátira de Monteiro
Lobato ao vazio constante nas salas da cidadezinha de Itaoca,
preenchidos pelas intermináveis fofocas. Assim, o pedido para
que uma jovem tocasse piano era um pretexto para as matronas
“abafando o tom geral da palestra”, afundarem nas conversas
preferidas: - os criados! Por isso, quando a música terminava,
gritavam em coro; “Muito bem, sinhazinha, muito bem! Toque
outra!...
23. UM HOMEM DE
CONSCIÊNCIA
João Teodoro relembra
com saudades os bons tempos de Itaoca; “- Isto já foi muito
melhor... já teve três médicos bem bons; agora só um e bem
ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para
um rábula ordinário como Tenório. Nem circo de cavalinho bate
mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o
restolho...”Homem pacato e modesto. Honesto e leal, com um
defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Um dia
foi nomeado delegado. “Delegado, ele!... Ser delegado numa
cidadezinha daquelas é coisa seriíssima. Não há cargo mais
importante”. Diante disso, e para surpresa de todos, foi
embora da cidade.
24. ANTA QUE BERRA
O major Pedro Falaverdade
era o maior contador de histórias de caçada “...ele não
mentia: atrapalhava-se às vezes, confundia uma caça com
outra...”Seus cachorros eram adestrados e Mozart, o mestre da
matilha, latia anunciando o tipo de animal que levantara: “Um
sinal, paca; dois, veado; três, porco; quatro, anta”. Uma vez
o cachorro latira quatro vezes e o major engatilhou sua
“Lafourché” à espera da anta que, abatida, “desferiu um
berro que parecia fim do mundo”. – “Será que anta berra,
major?” – “Ora, que diabo! Estou confundindo. Não era
propriamente anta o que eu caçava nesse dia, era um veado!”
25. O AVÔ DE
CRISPIM
Crispim Paradeda viva
contando história de seu avô. Este viera de Portugal disfarçado
de jesuíta, meteu-se pelo interior onde juntou um bom dinheiro
vendendo “osso de santo e tabuinhas aplainadas por São José”.
Jogou fora a batina e se instalou em uma propriedade que
comprara aumentando sua riqueza com a venda de gado. Emprestava
dinheiro, até que após alguns calotes, resolveu fechar o cofre
e muito esperto, passou a adotar o seguinte lema: “Perder o
meu dinheiro não me parece pior, porque, graças a Deus tenho-o
de sobra. Mas perder um amigo? Isso nunca!”
26.ERA NO PARAÍSO
Uma fábula satirizando a
formação do universo e a origem do homem, que surgiu de um
macaco. Este, bateu a cabeça numa pedra ao cair de uma árvore
e, a partir dessa lesão, começou a ser inteligente, ou seja,
tornou-se Adão; a macaca Eva “permanecia muda ao lado
embevecida no macho pensante. Não o compreendia – mas
admirava-o, imitava-o e obedecia-lhe passivamente”. Juntos
encontraram uma toca e ficaram donos.
27. UM HOMEM
HONESTO
Aventura e desventura de
João Pereira, um homem verdadeiramente honesto; desde jovem
tinha o caráter firme, casou-se, teve duas filhas e mantinha a
família à custa de muito trabalho e dignidade. Um dia, de
volta de uma viagem de primeira classe, paga por um parente que
não aceitou seu bilhete de segunda, João admirava as vantagens
e comodidades dos bens aquinhoados da vida: os ricos. Ao descer,
percebeu que esquecera seu jornal e voltou para pegá-lo quando
encontrou no chão do vagão, um pacote; apalpando-o percebeu
que era dinheiro – muito dinheiro. Correu ao chefe da estação
e, para surpresa dos presentes, entregou a fortuna. O fato foi
parar nos jornais,, que elogiaram o seu gesto e a sua incrível
honestidade. Em casa, João deparou com a mulher e as filhas, a
princípio concordando com sua atitude, sem saber o verdadeiro
montante do pacote; a saberem, ficaram totalmente transtornadas
pela loucura do pai – honeeesto! Debochavam de sua cabeça e
ingenuidade; o mesmo acontecia no escritório, onde os colegas
passaram a evitá-lo e a referir-se a ele como um coitado.
Faziam piadas e, ainda a família repetia os risos da vizinhança.
Não agüentando mais, ao ser chamado de João Trouxa, o último
homem honesto matou-se com um tiro em seu quarto.
28. O RAPTO
Um médico oftalmologista
conta a história de um cego, que assim ficara por apanhar muito
dos três filhos que viviam com ele sem fazer nada para o
sustento da família. O pai fora um homem de recursos, mas, aos
poucos vendera tudo até conhecer a miséria total e ainda a
cegueira. Abandonado pelos filhos, começou a viver da caridade
alheia, o que lhe dava um certo bem-estar: comida, roupas e até
chapéus. Humildes, os filhos voltaram porque a situação do
pai, de agora, era melhor que a de antes. O médico, ao saber
dos fatos, comovido coma a situação do pobre cego,
ofereceu-lhe tratamento, por meio de uma cirurgia que lhe
devolveria a visão. Tudo acertado para o dia seguinte, o médico
foi à procura do paciente que não aparecera. E não apareceria
mais, pois os filhos, temerosos de perderem a ajuda que o pai
cego recebia e que lhes rendia uma vida boa, raptaram-no.
29. A NUVEM DE
GAFANHOTOS
Venâncio, funcionário público,
era apaixonado por agricultura, lia livros e publicações a
respeito e depois deitava seu conhecimento em todos os lugares
por que passava. Chegou a se imaginar ministro da agricultura,
após elogios de um coronel da terra sobre seus conceitos e
sugestões. Fiel à loteria, cuja a sorte um dia lhe daria a
oportunidade de Ter uma fazenda modelo para visitação pública,
foi contemplado com vinte mil réis, com os quais comprou um sítio
de quinze deixando o restante para ser pago depois. Com cinco
mil, investiu na compra de matrizes de aves e porcos de raça,
implementos agrícolas e sementes para transformar a velha terra
cansada na prosperidade de seus sonhos. Um dia recebeu a carta
de um parente do Rio, certo de que ele ganhara uns duzentos
contos, anunciando sua visita com a família e de sobra, mais três
jovens amigas e duas empregadas – ao todo onze pessoas que ao
cabo de três meses devoram-lhe o pomar, a horta e se fartaram
de toda a criação, inclusive as mais novinhas. Desolado, Venâncio
sonha com uma nuvem de gafanhoto que lhe toma todo o sítio. Após
a partida do gafanhoto-mor e sua equipe, restou ao sitiante e
esposa a única saída: voltara para a cidade e à antiga condição
de funcionário público. Sobre o assunto de agricultura nem se
interessava mais e se alguém “falava perto dele em pragas da
lavoura, geada, ferrugem, curuquê ou que seja, sorria
melancolicamente, murmurando de si para si: - Conheço uma muito
pior..”
30. TRAGÉDIA DE UM
CAPÃO DE PINTOS
Neste conto, Monteiro
Lobato, dá vida aos animais de um sítio, humanizando-os; conta
a história de um galo-capão que criava aves de ninhadas
diferentes: tonou-se pai de um peru, de um pito e dum marreco.
Viu-os crescer e depois serem pratos na mesa dos humanos.
Tentava decifrar as palavras proferidas pela dona-de-casa:
“estar no ponto”, “pedindo panela”, e “amanhã temos
peru” que lhe revelaram a insana intenção de fazer dos seus
filhos comida apetitosa. Depois desses acontecimentos, tornou-se
um galo triste e jururu. O negro da fazenda colocou-o para
aquecer uma ninhada de dez pintos nascidos na véspera; nas
altas horas abandonou-os ao frio da noite, não queira mais
exercer a profissão de mãe. “Para quê? – Se têm de
morrer na cozinha, morram agora enquanto não lhes tenho
amor.” Os pintinhos amanheceram mortos, entanguidos de frio. E
o castigo do galo-peva foi a panela, e para espanto e tristeza
dos outros animais, no fundo da horta, jaziam seus despojos.
Horríveis. “Um urubu pousado ali perto não pensava assim”.
IDÉIA E ESTILO
Cidades Mortas está
entre as primeiras obras que correm o país em livro. Seus
contos ambientam-se em uma cidadezinha do inteiror paulista do
vale do Paraíba, o que justifica o cunho regionalista de sua
obra.
No entanto, seus
personagens são típicos brasileiros, envolvidos em situações
engraçadas, vivendo acontecimentos cômicos que quebram a
monotonia da vida de Oblivion e Itaoca, cidades onde o tempo
parou.
A intenção do autor
ao penetrar nessas vidas é fazer uma crítica, embora elegante
e sutil. Mas, às vezes, é saudosista, quando resgata
acontecimentos trazidos da sua infância feliz. Alguns contos têm
desfecho surpreendente, outras questionam valores de moralidade
e o comportamento na sociedade.
Polêmico e criticado
por suas idéias políticas e culturais, Lobato mostrou-se um
inovador no plano da linguagem, pois acreditava que a imposição
das regras contrariava a lei da evolução. “Que é a língua
dum país? É a mais bela obra coletiva desse país.” Defendia
a idéia de que não “há lei humana que dirija uma língua,
porque língua é fenômeno natural, como a oferta e a
procura, como o crescimento da crianças, como a
senilidade”.
Em Cidades Mortas
nota-se a liberdade de vocabulário, e emprego de expressões
que caracterizam aquelas cidades como “velha avó
entrevada”, que “foi rica um dia e hoje é quieta”. São
“história sobre gente medíocre, sonolenta, vivendo um
sossego que é como o frio nas regiões árticas: uma
permanente.”
- Em vários contos
emprega onomatopéias
“E toca: blem, blem,
belelém...”
“- um, dois, três:
glug! Rodou, esôfago abaixo...”
“- Dlin, dlin, dlin!...
está aberta a sessão”
“Novo psst!”
“- Logo em seguida, porém,
toc, toc, toc...”?“
- Cria palavras e
expressões – neologismos –
“Lucas amou-a em regra
e sonetou-a inteira dos cabelos aos pés
“... o promotor fala e
refala;”
“... Um manotaço de
unha na cara...
“... todo o rodapé dos
jornais e albertizou-se durante meia hora.
“...É feia, é
desengraçada, é inelegante, é magérrima”
“Diz e rediz.”
- Emprega gírias e
palavras da época, e do interior, hoje em desuso.
“- Mamãe, o carrinho e
vem vindo!”
“- Salvam-na a botica
(a farmácia) e o jogo”.
“- deitou o sojeito no
chão”- “o povo pedia o paiaço...”.
“- os filhos
vinheram...”
“- Mas parece que o
sujeitinho levou tábuas...” (foi recusado)
“Se ele quiser vinte e
três mil-réis...”
“Ela não deseste da
porca.”
“É, a tese é
catita;”
“Os home! ... não há
de ter um descansinho na somana?”
u Faz algumas considerações
com provérbios
“Impossível negar as
vantagens sociais da música”.
“Ladrão é quem furta
um, quem pega mil é barão.”
“O segredo de todas as
vitórias está em ser um homem do seu tempo...”
“Cada roca tem seu
fuso”.
- Com humor, compõe
alguns nomes de personagens.
“Dona Fafá, dona Fifi,
dona Fufu”.
“Três filhas: Bibi,
Babá, Bubu”.
“Só Adão, o macaco
lesado...”- “Eva, a macaca ilesa,”
“- Parzinho jeitoso, a
Miloca e o Lulu, não?”
Com objetividade,
clareza, espírito jocoso e pitoresco Monteiro Lobato foi um
“criador sempre feliz em observar seus personagens caminhando
com suas próprias pernas, segundo suas próprias cabeças.
Cidades Mortas é uma fotografia: o real visto pela lente
lobatiana”.
Monteiro Lobato - que
ironia – um escritor de luz própria, independente, arrojado e
por tanto tempo incompreendido e até mesmo boicotado.
“? Isso acontece com
aqueles que, como ele, estão muito à frente de sue tempo”.
*Maria Jerusa
Rodrigues Marinho, professora de Português de cursos preparatórios
de vestibulares em Campo Grande-MS, prepara apostilas de análises
de livros das listas de leitura obrigatória da UFMS, UCDB e
UNIDERP. Telefone: 989 0984.
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