De como se passou o reinício
... e sobre a terra caiu a mais negra das tristezas, quando se foi o grande Profeta.
Porque as dores do corpo são infinitamente mais intensas e duráveis que as do corpo. E nada pode existir de mais doloroso para a alma que a partida do amado.
Mas, se o corpo do Bem-Amado zarpou com a maré, em meio aos homens do seu navio, a sua essência permaneceu. Porque a boa semente, quando largamente espalhada, sempre encontrará um campo fértil onde possa brotar.
E foi esse campo o coração de Hassan, o negociante; as verdades universais não encontraram em seus ouvidos o cemitério do esquecimento.
Nessa noite, Hassan reuniu as suas mulheres e os seus filhos, e todos os seus parentes.
E lhes disse:
“Eis que vos deixo, para que possa sentir-me entre vós e para que vos sinta em mim; porque é através dos olhos da imaginação, que devemos ver as pessoas amadas.
E porque vos amo e não encontro amor nas coisas da vida, deixo-vos todos os meus bens; porque a cada um deve ser dado conforme os seus próprios amores e necessidades.
Eis que me vou, pedaços do meu ser. Porque tenho vivido apenas em função de vós, e assim o meu ser ainda está incompleto; e como poderei amar-vos inteiramente, se sou apenas a metade de mim mesmo?
Pois que tenho eu amado nas minhas mulheres, senão a beleza física, que me encanta os olhos, ou o brilho fugaz da inteligência, que satisfaz à minha própria?
E o que tenho amado nos meus filhos, senão o meu próprio orgulho satisfeito, ao vê-los inteligentes e bonitos?
Se algum de vós entende realmente o que chamo de amor, que me siga. Que se levante e tome apenas do seu bordão. E aquele dentre vós que o fizer, abandonando tudo que agora vos deixo, descobrirá ao fim do caminho que lhe coube a parte maior da herança.
Entretanto, não vos entristeçais por não serdes capazes de acompanhar-me.
Pois, se um único de vós se houvesse levantado, não se faria necessária a minha partida.”
Na proximidade de uma cidade, havia uma pequena colina. E nela Hassan construiu o seu tosco abrigo, murmurando em seu íntimo:
“Eis o sítio em que me deterei; pois se o lugar de um homem é onde ele está, deve o homem escolher o lugar de acordo com o seu trabalho. Aqui, estarei perto o bastante para falar aos ouvidos de meus irmãos; e suficientemente longe, para escutar os clamores de suas almas.”
Aconteceu que por ali passaram dois dos homens da cidade. E, vendo-o, perguntaram-lhe: Que fazes, estrangeiro?”
E ele lhes respondeu:
“Aguardo a vossa presença, para que possa fazer-me presente em vós; e as vossas dúvidas, para que as minhas sejam esclarecidas.
Aguardo os vossos ouvidos, razão de ser da minha voz.
Pois não sou o sábio que se cala com as suas respostas, mas o ignorante que necessita repartir as suas perguntas.
Ide, pois, e dizei a todos aqueles que me queiram ouvir, que eu lhes quero falar.
E não vos falarei da conquista deste mundo, nem dos seus valores. Mas do vosso verdadeiro Eu e dos vossos próprios valores.
E vos falarei sempre à mesma hora, para que as minhas palavras encontrem um lugar entre os vossos costumes.
Pois o homem é prisioneiro de seus hábitos.”