Era chamada de “brincadeira de negro”, “brincadeira de angola”. Sua origem perde-se e confunde-se no tempo; uns afirmam ser africana, proveniente do N’Golo, outros, brasileira, criada durante as agruras da escravidão, utilizando-se tanto movimentos de rituais afros, como os movimentos da natureza, dos animais do Brasil, de coisas do cotidiano e de ferramentas durante o trabalho. Acredito mais nessa segunda hipótese, ou seja, a capoeira sendo afro-brasileira, pois, me parece mais óbvia, apesar de saber que a maioria dos angoleiros acreditam na primeira, seguindo a convicção que Mestre Pastinha obteve depois que tornou-se ciente, em 1967, da tese de Luís da Câmara Cascudo em seu livro “Folclore do Brasil / Pesquisa e Notas”, onde se encontra que a nossa Capoeira Angola é o próprio N’Golo (dança das zebras), apenas, desenvolvido no Brasil, durante a escravidão, sem o seu propósito originário.

É possível que ainda se confunda as denominações “Brincadeira de Angola” ou “Capoeira de Angola”, como sendo essa arte originária daquele país, mas, penso ser mais correto interpretar “de Angola” como “de escravo angolano” daqui do Brasil e ser, por isso, mais acertado denominá-la “Capoeira Angola” em vez de “Capoeira de Angola”, pois, com essa denominação buscou-se além de definir o estilo já existente e tradicional, homenagear seus possíveis criadores, em meio ao inferno da escravidão.

            Quem já pesquisou o que realmente aconteceu durante a escravidão no Brasil e que, ficou à parte da nossa “História”, sabe que é bem pouco provável que a Capoeira tenha sido criada como um divertimento, como afirmam algumas teses; embora, a sensação de liberdade ao praticá-la, quase que necessariamente, pela concretização da malícia e do engôdo, faça fluir, de forma natural, mas também, estratégica, a alegria, a brincadeira, o divertimento até aos seus praticantes de hoje o que, ocasionalmente, confundiu os seus primeiros observadores brancos à ponto de se referirem à ela como: “brincadeira de negro” ou “brincadeira de angola”.  

            Os escravos em meio àquele “inferno de demônios brancos”, após sobreviverem à fome, à sede e à podridão, durante a travessia do Atlântico, nos porões infectos dos tumbeiros (como eram chamados sinistramente os navios negreiros), sendo castigados à menor falta e, ainda, sob a tirania dos Senhores, Sinhás e Sinhazinhas, destribalizados e já desumanizados pelo sistema escravista, sofriam abusos sexuais, queimaduras, surras e mutilações das mais diversas e cruéis, por simples capricho de seus senhores insanos que só lamentavam, quando morriam, a perda da “mercadoria”. Depois que eram postos sob o trabalho escravo tinham, na melhor das hipóteses, uma expectativa de vida de apenas mais dez anos, assim, um negro que chegasse aqui com quinze anos de idade, no máximo com vinte e cinco estaria morto.

            Durante muito tempo também, as crianças negras, logo após o parto, eram arrancadas dos braços das mães, atiradas ao chão e esmagadas pelos capatazes, que as pisavam com suas botas, sem nenhum constrangimento, pois, os senhores-de-engenho e mesmo os senhores-urbanos queriam negros ou negras no mínimo pubescentes, que já servissem ao trabalho e ou aos abusos sexuais e não, ter que alimentar uma criança até que chegasse a esse ponto. Havia a crença de que “para a sífilis, nada melhor do que uma negrinha virgem”, assim, jovens e senhores brancos, já apodrecidos pela sífilis, usavam essas meninas como depurativo sexual. Em geral, os escravos eram obrigados a trabalhar de 14 a 18 horas por dia, sendo utilizados de mordomos e mucamas aos serviços braçais nas lavouras e minas, de copeiros à carregadores de barris de fezes aos rios ou ao mar; e essa larga utilização de mão-de-obra escrava, provocou uma inversão de valores, tanto que, o trabalho, aos brancos, tornou-se desonroso. A prática comum aos negros revoltados ou fujões, além dos açoites e mutilações, era marcá-los com ferro em brasa nas coxas, nos braços, no ventre, no peito ou até na face, para coibir seus ânimos e servir de exemplo aos outros escravos e, ainda, deixar neles a marca de propriedade ou traço de identificação no caso de fuga, pois, a regra era marcá-los, torturá-los e humilhá-los, mas se possível, sem matá-los. Esses horrores são apenas um vislumbre, até generoso, em relação às atrocidades sofridas durante quase 400 anos pelo povo africano em nosso país e serve, não para que se desperte um racismo alienado, mas, sim, para que nós, principalmente, angoleiros, não esqueçamos nunca a nossa real linhagem discipular que, pelas brechas do tempo e das ditaduras e governos republicanos, império e, colônia e sistema escravocrata, passa, com certeza, pelas periferias, guetos, morros, quilombos e senzalas até chegar aos corações ansiosos por liberdade, dos nossos antigos e anônimos mestres que descobriram, em seus próprios corpos, uma esperança libertária e, assim, diante da pantagruélica fome da imensa boca escravista que, em pouco tempo, trucidaria seus corpos, de forma alguma criariam e desenvolveriam uma luta para ser sempre praticada ou aplicada de forma amistosa, lúdica, ritualística, mística ou até mesmo, poética e nostálgica, embora, esses aspectos possam ser observados como estratégia, nos momentos ludibriantes da Capoeira Angola.    

             Jogar a Capoeira Angola sempre “devagar, devagarinho”, feito um bicho preguiça, no chão, não permitindo a menor vazão de força e velocidade e afirmar que somente isso é a verdadeira Capoeira Angola” ou a capoeira original e primitiva, parece-me uma contradição com seu passado conturbado e glorioso e, ainda, uma permanente postura genuflexa ante ao sistema político-social que sempre a oprimiu. É certo que no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, quando realmente a prisão e o extermínio dos capoeiras era algo rotineiro e explícito, “baixar a bola” era mais que uma questão de curvar-se ao poder da elite branca; tornou-se uma questão de sobrevivência tanto aos capoeiras, quanto à própria Capoeira Angola.          

                Nessa época, também excruciante, após alguns anos de perseguição e extermínio implacáveis, com a natural corrupção do Sistema, algumas rodas só aconteciam graças às “vaquinhas” que mestres e discípulos faziam para "pagar" a autoridade policial de plantão, que só as permitia determinando seu tempo de duração (que normalmente era de uma hora) e responsabilizando o mestre, por qualquer desavença. Findo esse tempo, um capoeira estrategicamente colocado, fazia o toque de Cavalaria, o delegado aparecia com seus soldados e os capoeiras saíam fora, para parecer real ao povo que assistia. Contudo, com o chefe de polícia Pedro de Azevedo Gordilho – o “Pedrito”- não tinha acordo. Na década de 1920 foi quem mais perseguiu, na Bahia, a Capoeira; também não perdoava os Candomblés e as Rodas de Batuque e de Samba até que, em 1930, foi deposto de seu cargo pela Revolução.

                         Os valentões e desordeiros, famosos e temíveis, tinham vida curta, exceto alguns; e os mais sensatos, na clandestinidade, obedeciam seus mestres que temendo possíveis represálias da polícia, interrompiam o jogo sempre que percebiam alguma alteração no ritmo dos movimentos. Porém, para alguns desordeiros, que interpretavam como ofensa certos movimentos ou atitudes de seus camaradas, o jogo continuava longe das vistas do Mestre, assim, mortes envolvendo Capoeiras, continuavam acontecendo nas noites e madrugadas, principalmente, no “Cais Dourado”. Acredito que nessa época, por força das circunstâncias, completou-se a organização das rodas de Capoeira Angola, com uma junção ritualística já estruturada no Candomblé mais alguns aspectos do Catolicismo e, principalmente, com a incorporação definitiva do berimbau nas Rodas; assim, o mestre da roda, podia controlar com autonomia o andamento do jogo através da reverência e respeito ao berimbau e seus toques, através das ladainhas e cantos corridos, através do “Iê!” verbal ou do berimbau gunga, através das Paradas de Angola ou chamadas de passo-à-dois e volta ao mundo.  

            O fato é que apesar dessa benéfica organização, os discípulos daqueles tempos tornaram-se mestres, transmitindo aos seus discípulos o que haviam se acostumado a fazer em seu passado, ainda com o inconsciente medo da repressão. Daí veio a limitação, o enfraquecimento e o conseqüente desrespeito à  Capoeira Angola, não só por leigos que achavam tratar-se somente de uma dança ou um balé, mas, também, pelos próprio capoeiras que a julgavam ineficiente como luta, ou coisa pra mulher, como o mestre Bimba, por exemplo, que criou a Capoeira Regional, ou melhor, a luta regional baiana que, erroneamente, passa a idéia de ter limpado da História a sujeira que a Capoeira Angola fez, com a célebre apresentação da Regional ao Interventor da Bahia Juracy Magalhães em 1937, no palácio do governo, que, por isso, concedeu-lhe alvará de funcionamento em recinto fechado. A verdade é que foi Mãe Aninha do Axé Opô Afonjá que, através de seu filho de santo Osvaldo Aranha (chefe da casa Civil de Getúlio Vargas), insistentemente, pediu ao Presidente da República a liberação da prática do candomblé, provocando a edição do decreto presidencial nº 1202, em 1934, extinguindo o decreto lei que proibia a Capoeira e a prática dos cultos afro-brasileiros. Por tanto, quando mestre Bimba conseguiu o alvará de funcionamento para sua academia, a capoeira já não era mais proibida e, como se sabe, também já era praticada por brancos há muito tempo. O que aconteceu foi que à partir de Mestre Bimba, o governo controlaria e usaria todos os mestres que saíssem da clandestinidade, servindo aos interesses do então Estado Novo e sua Retórica do Corpo; não obstante, nos governos subseqüentes, o descaso e o esquecimento traçou o destino de vários Mestres  importantes como Samuel Querido-de-Deus, Totonho Maré, Livino Diogo, Noronha, José Gata Magra, Geraldo Chapeleiro e ainda, entre outros, Mestre Pastinha e Mestre Bimba que, depois de traídos e abandonados por seus próprios discípulos, explorados e sugados pela imprensa e órgãos de turismo, morreram na miséria.

           Quando me referi ao Mestre Bimba e sua Capoeira Regional, em 1937, não quis anular sua figura meritória e a indiscutível importância de sua arte, no processo de aceitação e valorização da Capoeira. Também de forma alguma quero passar a idéia de estar esgotando o assunto “Capoeira Angola” visto que tal pretensão seria impraticável. Pretendo, apenas, se Deus me permitir, continuar estendendo melhor essas idéias no livro sobre Capoeira Angola, que já escrevo.

            Analisemos estas palavras de Mestre Pastinha: “O que eu gosto de lembrar sempre, é que a capoeira apareceu no Brasil como luta contra a escravidão. Nas músicas que ficaram até hoje, se percebe isso. Entenda quem quizer, está tudo aí  nesses versos o que a gente guardou daqueles tempos.”

            Seguindo esse exemplo de Mestre Pastinha, independente das controvérsias quanto a origem da capoeira, devemos, também, lembrar-nos, sempre, que a capoeira apareceu no Brasil como luta contra a escravidão e permitir que ela nos liberte com seu Axé infinito, para que esse Axé desperte a coragem e a malícia do povo de Angola em nós.  

  

Mestre Vandir Nunes

     01/2003

 

 

                                                                                            

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