CHARLES BAUDELAIRE

Remorso Póstumo
Spleen
O Vampiro
A Serpente que Dança
O Possesso
O Gato
A uma dama crioula
Uma Carniça
Benção

Remorso Póstumo

Quando fores dormir, ó bela tenebrosa,
Em teu negro e marmóreo mausoléu, e não
Tiveres por alcova e refúgio senão
Uma cova deserta e uma tumba chuvosa;

Quando a pedra, a oprimir tua carne medrosa
E teus flancos sensuais de lânguida exaustão,
Impedir de querer e arfar teu coração,
E teus pés de correr por trilha aventurosa,

O túmulo, no qual em sonho me abandono
- Porque o túmulo sempre há de entender o poeta -,
Nessas noites sem fim em que nos foge o sono,

Dir-te-á: "De que valeu, cortesã indiscreta,
Ao pé dos mortos ignorar o seu lamento?"
- E o verme te roerá como um remorso lento.

Spleen
(Tradução de Ivan Junqueira)

Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,
Rico, mas incapaz, moço e no entando idoso,
Que, desprezando do vassalo a cortesia,
Entre seus cães e os outros bichos se entedia.
Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,
Nem seu povo a morrer defronte do balcão.
Do jogral favorito a estrofe irreverente
Não mais desfranze o cenho deste cruel doente.
Em tumba se transforma o seu florido leito,
E as aias, que acham todo príncipe perfeito,
Não sabem mais que traje erótico vestir
Para fazer este esqueleto enfim sorrir.
O sábio que ouro lhe fabrica desconhece
Como extirpar-lhe ao ser a parte que apodrece,
E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,
De que se lembram na velhice os soberanos,
Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,
Em vez de sangue flui a verde água do Letes.

O Vampiro
(Tradução de Ivan Junqueira)

Tu que, como uma punhalada,
Em meu coração penetraste,
Tu que, qual furiosa manada
De demônios, ardente, ousaste,

De meu espírito humilhado,
Fazer teu leito e possessão
- Infame à qual estou atado
Como o galé ao seu grilhão,

Como ao baralho o jogador,
Como à carniça ao parasita,
Como à garrafa ao bebedor
- Maldita sejas tu, maldita!

Supliquei ao gládio veloz
Que a liberdade me alcançasse,
E ao veneno, pérfido algoz,
Que a covardia me amparasse.

Ai de mim! Com mofa e desdém,
Ambos me disseram então:
"Digno não és de que ninguém
Jamais te arranque a escravidão,

Imbecil! - se de teu retiro
Te libertássemos um dia,
Teu beijo ressuscitaria
O cadáver de teu vampiro!"

A Serpente que Dança
(Tradução de Ivan Junqueira)

Em teu corpo, lânguida amante,
Me apraz contemplar,
Como um tecido vacilante,
A pele a faiscar.

Em tua fluida cabeleira
De ácidos perfumes,
Onde olorosa e aventureira
De azulados gumes,

Como um navio que amanhece
Mal desponta o vento,
Minha alma em sonho se oferece
Rumo ao firmamento

Teus olhos que jamais traduzem
Rancor ou doçura,
São jóias frias onde luzem
O ouro e a gema impura.

Ao ver-te a cadência indolente,
Bela de exaustão,
Dir-se-á que dança uma serpente
No alto de um bastão.

Ébria de preguiça infinita,
A fronte de infanta
Se inclina vagarosa e imita
A de uma elefanta.

E teu corpo pende e se aguça
Como escuna esguia,
Que às praias toca e se debruça
Sobre a espuma fria.

Qual uma inflada vaga oriunda
Dos gelos frementes,
Quando a água em tua boca inunda
A arcada dos dentes

Bebo de um vinho que me infunde
Amargura e calma,
Um líquido céu que se difunde
Astros em minha alma!

O Possesso

Cobriu-se de sol o negro véu. Como ele, ó Lua
De minha vida, veste o luto da agonia;
Dorme ou fuma à vontade, sê muda e sombria,
E no abismo do tédio esplêndido flutua;

Eu te amo assim ! Se agora queres, todavia,
Como um astro a emergir da penumbra que o acua,
Pavonear-te no palco onde a loucura atua,
Pois bem ! Punhal sutil em teu estojo esfria!

Acende essa pupila no halo dos clarões!
Acende a cupidez no olhar dos grosseirões!
Em ti tudo é prazer, morboso ou petulante,

Seja o que for, escura noite ou rubra aurora;
Uma por uma, as fibras de meu corpo arfante
Gritam: ó Belzebu, meu coração te adora!

O Gato
(Jamil Almansur Haddad)

I

Por meu cérebro vai passeando,
Tal como em seu apartamento,
Um gato de todo encantamento,
e de inaudito miado brando,

Tanto o seu timbre é o mais discreto;
Mas, se é a voz calma ou iracunda,
Ela sempre é rica e profunda:
Este é o seu encanto secreto.

E a sua voz em mim infiltro,
No meu fundo mais tenebroso,
Doce qual verso numeroso
Consoladora como um filtro,

Abranda o mal que na alma lavra,
Contendo os êxtases e as pazes;
Para dizer as longas frases
Nunca precisou da palavra.

Certo não há arco que fira
Meu coração, este excelente
Órgão e o faça nobremente
Cantar só como canta a lira,

Como esta voz, ó misterioso,
Gato seráfico e esquisito
Em que tudo é, como num rito,
Tanto sutil quanto harmonioso!

II

Destas lãs louras e morenas
Sai um olor doce de pelos,
Que me perfumei só por tê-los
Afagados uma vez apenas.

É como os manes da morada;
Preside no seu magistério
Todas as coisas deste império:
Seria talvez Deus ou fada?

Quando o olhar para este gato a esmo,
Como por um ímã atraído,
Se dirige, e tão sucumbido,
E que eu olho para mim mesmo,

Eu vejo com olhar demente
A luz destas pupilas ralas,
Claras fanais, vivas opalas,
Que me contemplam fixamente.

A uma dama crioula

No país perfumado, a um sol de fogo e pena,
Conheci sob dossel de árvores purpurado,
E de palmas de onde o ócio ao nosso olhar acena,
Uma dama crioula e de encanto ignorado.

De tez pálida e quente, a mágica morena
Tem no seu colo um ar, sempre o mais requintado;
Vai como a caçadora e é imponente e serena,
Seu sorriso é tranqüilo e seu olhar confiado.

Uma Carniça

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos
Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,
Uma carniça repugnante.

As pernas para cima, qual mulher lasciva,
A transpirar miasmas e humores,
Eis que as abria desleixada e repulsiva,
O ventre prenhe de livores.

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,
Como a cozê-la em rubra pira
E para ao cêntuplo volver… Natureza
Tudo o que ali ela reunira.

E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa
Chegaste quase a sucumbir.

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,
Dali saíam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso
Por entre esses trapos nefandos.

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,
Ou esguichava a borbulhar,
Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,
Vivesse a se multiplicar.

E esse mundo emitia uma bulha esquisita,
Como vento ou água corrente,
Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita
E à joeira deita novamente.

As formas fluíam como um sonho além da vista,
Um frouxo esboço em agonia,
Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista
Apenas de memória um dia.

Por trás das rochas, irriquieta, uma cadela
Em nós fixava o olho zangado,
Aguardando o momento de reaver àquela
Carniça abjeta o seu bocado.

- Pois hás de ser como essa coisa apodrecida,
Essa medonha corrupção,
Estrela de meus olhos, sol de minha vida,
Tu, meu anjo e minha paixão!

Benção

Quando, por uma lei de potências supremas,
O poeta vem surgir neste mundo aborrido,
Sua mãe espantada e com vozes blasfemas
Crispa as mãos para Deus que escuta condoído:

- "Ah que não dei à luz um nó de cascavéis,
Em vez de alimentar esta única irrisão!
Maldita a noite, a dos prazeres mais cruéis,
Em que gerou meu ventre a minha expiação!

Se entre todas enfim só esta mulher proclamas
Desgosto dever ser de seu marido triste,
Se eu não posso jogar entre as línguas das chamas ,
Qual bilhete de amor, monstro que mal existe,

Eu farei derivar tua ira inumerável
Para o instrumento vil de tuas maldições,
E torcerei tão bem a árvore miserável,
Que não dará jamais seus pestelados botões!"

Assim engole a espuma, a do ódio que a envenena,
E após, sem compreender os planos eternais,
Ela mesma prepara ao fundo da Geena
A fogueira voltada aos crimes maternais.

No entanto, sob tutela de um anjo sem nome,
Embriagua-se de sol o jovem deserdado,
E em tudo o que ele bebe e em tudo que ele come
Sempre encontra a ambrosia e o néctar afogueado.

E com a nuvem brinca e fala com a aragem,
Num dolente caminho a cantar se inebria,
E o Espírito que vai com Ele na romagem
Chora de vê-lo assim pássaro da alegria.

Aos que ele quer amar sempre um receio deixa,
animados porém a tanta suavidade,
Procuram por quem possa arrancar-lhe um queixa,
Exercitando nele sua atrocidade.

E no vinho e no pão que a vida lhe destina
Vão misturando a cinza aos escarros nefastos;
Dizem que o ele toca, impuro, contamina,
E acusam-se de haver posto os pés nos seus rastos.

Grita a sua mulher, pelas públicas praças:
"Se eu tão bela lhe sou e ele me ama em seu carme,
Um ídolo eu serei, como o das velhas raças,
Como ele eu quererei um dia redourar-me;

Mas eu me embriagarei de nardo, incenso e mirra,
E de genuflexões, de vinhos, de carnagens,
A ver se eu posso, num coração que me admira,
Usurpar a sorrir divinas homenagens!

E quando eu cansar destas farsas ímpias,
Eu nele pousarei forte a mão, de mansinho;
E com unhas iguais às unhas das harpias,
Até seu coração abrirei um caminho.

Como um pássaro novo e que treme e palpita,
Arrancar-lhe-ei do peito o coração aceso
Depois, para saciar a besta favorita,
Hei de atirá-lo ao chão com todo o meu desprezo."

Para o céu em que vê sempre o trono mais almo,
Sereno o poeta eleva os braços religiosos,
E os enorme clarões de seu cérebro calmo
Anulam-lhe a visão dos povos mais furiosos:

- "Se bendito, meu Deus, que dás o sofrimento,
Óleo sacro com que as impurezas quebrantas
Qual se fora o melhor e mais puro elemento
E que prepara o forte às volúpias mais santas!

Eu sei que para o Poeta um lugar sempre resta
N fileira feliz das divinas Legiões,
E que o convidarás para a perpétua festa
Dos Tronos, dos Valores e das Dominações.

Sei que a única nobreza é a dor que mais nos doa,
Que nunca morderão nem terra nem inferno.
Preciso é, para haver minha augusta coroa,
Ordenar o universo inteiro e o tempo eterno.

Jóias que mortas são da Palmira passada,
Ignorados metais, qualquer marinha gema,
Encastoados no céu, não servirão de nada
A este formoso e claro e mágico diadema;

Ele feito será da irradiação mais pura,
vinda do santo lar dos raios primitivos,
De que os olhos mortais de toda criatura
Somente espelhos são, negros e pungitivos!"

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