Álvares de Azevedo > Macário
...e o gênio traz sempre um sinal
que se reconhece em toda a parte (e em qualquer tempo)
- uma auréola na fronte que brilha sob todos os
firmamentos, uma senha e um ataque Iramita que se traduz
em todas as línguas.
Álvares de Azevedo
No ceticismo do Candide voltaireano,
depois do último
soluço há o abafamento bochorral do nada,
a treva do não ser.
Álvares de Azevedo
MACÁRIO
Álvares de Azevedo
Nota Informativa
Macário é, conforme o autor se referiu
uma vez, uma "tentativa dramática",
mas que, na expressão convulsiva do enredo e das
personagens, é um texto que bem se presta a uma
iniciação à poética de Álvares
de Azevedo.
É uma mistura de teatro, narração dialogada e diário íntimo,
cuja originalidade pode ser sublinhada em dois aspectos básicos. De um
lado, descrevendo a cidade de São Paulo através de suas falas e
atos do herói, bem como de Satã; de outro lado, projetando um debate
interior entre Macário e Penseroso, que serve de guia para a interpretação
do pensamento do jovem poeta e das questões ligadas ao tédio e
ao spleen, tão significativos no ultra-romantismo (mal do século).
De certo modo, pode-se compreender Macário como um metatexto, cujas
fontes de inspiração vão de Byron a Goethe (o velho tema
do Fausto), de Shakespeare aos franceses que inauguraram o Romantismo na Europa.
Revelam, portanto, a extraordinária capacidade de leitura do jovem poeta,
adolescente de menos de vinte anos...
Carlos Sepúlveda
Puff
Criei para mim algumas idéias teóricas
sobre o drama. Algum dia, se houver tempo e vagar, talvez
as escreva e de a lume.
O meu protótipo seria alguma coisa entre o teatro inglês, o teatro
espanhol e o teatro grego-a forca das paixões ardentes de Shakespeare,
de Marlowe e Otway, a imaginação de Calderon de la Barca e Lope
de Vega, e a simplicidade de Esquilo e Eurípedes - alguma coisa como
Goethe sonhou, e cujos elementos eu iria estudar numa parte dos dramas dele
-em Goetz de Berlichingen, Clavijo, Egmont, no episódio da Margarida
de Faust - e a outra na simplicidade ática de sua Ifigênia. Estudá?lo?ia
talvez em Schiller, nos dois dramas do Wallenstein, nos Salteadores, no D.
Carlos: estudá?lo?ia ainda na Noiva de Messina com seus coros, com sua
tendência à regularidade.
É um tipo talvez novo, que não se parece com o misticismo do teatro
de Werner, ou as tragédias teogônicas de OEhlenschläger e ainda
menos com o de Kotzebue ou o de Victor Hugo e Dumas.
Não se pareceria com o de Ducis, nem com aquela tradução
bastarda, verdadeira castração do Otelo de Shakespeare, feita
pelo poeta sublime do Chatterton, o conde Vigny.-Quando não se tem alma
adejante para emparelhar com o gênio vagabundo do autor de Hamlet, haja
ao menos modéstia bastante para não querer emendá-la.
Por isso o Otelo de Vigny é morto. É uma obra de talento, mas
devia ser um rasgo de gênio.
Emendá-lo? pobres pigmeus que querem limar as monstruosidades do Colosso!
Raça de Liliput que queria aperfeiçoar os membros do gigante-disforme
para eles - de Gulliver!
E digam-me: que é o disforme? há ai um anão ou um gigante?
Não é assim que eu o entendo. Haveria enredo, mas não
a complicação exagerada da comédia espanhola. Haveria
paixões, porque o peito da tragédia deve bater, deve sentir-se
ardente-mas não requintaria o horrível, e não faria um
drama daqueles que parecem feitos para reanimar corações - cadáveres,
como a pilha galvânica as fibras nervosas do morto!
Não: o que eu penso é diverso. É uma grande idéia
que talvez nunca realize. É difícil encerrar a torrente de fogo
dos anjos decaídos de Milton ou o pântano de sangue e lágrimas
do Alighieri dentro do pentâmetro de mármore da tragédia
antiga. Contam que a primeira idéia de Milton foi fazer do Paraíso
Perdido uma tragédia - um mistério - não sei o quê:
não o pôde; o assunto transbordava, crescia; a torrente se tornava
num oceano. É difícil marcar o lugar onde pára o homem
e começa o animal, onde cessa a alma e começa o instinto -onde
a paixão se torna ferocidade. É difícil marcar onde deve
parar o galope do sangue nas artérias, e a violência da dor no
crânio.- Contudo, deve haver e o há - um limite às expansões
do ator, para que não haja exageração, nem degenere num
papel de fera o papel de homem. O Pobre Idiota tem esse defeito entre mil outros.
A cena do subterrâneo é interessante, mas é de um interesse
semelhante àquele que excitava o Jocko ou o homem das matas-aquele macaco
representado por Morietti que fazia chorar a platéia.
O Pobre Idiota representa o idiotismo do homem caído na animalidade.
O ator fez o papel que devia- não exagerou-, representou a fera na sua
fúria,-uma fera, onde por um enxerto caprichoso do imitador de Hauser
havia um amor poético por uma flor-e uma estampa!
A vida e só a vida! mas a vida tumultuosa, férvida, anelante, às
vezes sanguenta - eis o drama. Se eu escrevesse, se minha pena se desvairasse
na paixão, eu a deixaria correr assim. Iago enganaria o Mouro, trairia
Cássio, perderia Desdêmona e desfrutaria a bolsa de Rodrigo. Cássio
seria apunhalado na cena. Otelo sufocaria sua Veneziana com o travesseiro,
escondê-la-ia com o cortinado quando entrasse Emília: chamaria
sua esposa - a whore - e gabar ?se ?ia de seu feito. O honest, most honest
Iago viria ver a sua vítima, Emília soluçando a mostraria
ao demônio; o Africano delirante, doido de amor, doido de a ter morto,
morreria beijando os lábios pálidos da Veneziana. Hamlet no cemitério
conversaria com os coveiros, ergueria do chão a caveira de Yorick, o
truão; Ofélia coroada de flores cantaria insana as balatas obscenas
do povo: Laertes apertaria nos braços o cadáver da pobre louca.
Orlando no What you will penduraria suas rimas de Rosalinda nos arvoredos dos
Cevennes. Isto seria tudo assim.
Se eu imaginasse o Otelo, seria com todo o seu esgar, seu desvario selvagem,
com aquela forma irregular que revela a paixão do sangue. É que
as nódoas de sangue quando caem no chão não têm
forma geométrica. As agonias da paixão, do desespero e do ciúme
ardente quando coam num sangue tropical não se derretem em alexandrinos,
não se modulam nas falas banais dessa poesia de convenção
que se chama-conveniências dramáticas.
Mas se eu imaginasse primeiro a minha idéia, se a não escrevesse
como um sonâmbulo, ou como falava a Pitonisa convulsa agitando?se na
trípode, se pudesse, antes de fazer meu quadro, traçar as linhas
no painel, fálo-ia regular como um templo grego ou como a Atália,
arquétipa de Racine.
São duas palavras estas, mas estas duas palavras têm um fim: é declarar
que o meu tipo, a minha teoria, a minha utopia dramática, não é esse
drama que aí vai. Esse é apenas como tudo que até hoje
tenho esboçado, como um romance que escrevi numa noite de insônia
-como um poema que cismei numa semana de febre -uma aberração
dos princípios da ciência, uma exceção às
minhas regras mais íntimas e sistemáticas. Esse drama é apenas
uma inspiração confusa - rápida - que realizei à pressa
como um pintor febril e trêmulo.
Vago como uma aspiração espontânea, incerto como um sonho;
como isso o dou, tenham-no por isso.
Quanto ao nome, chamem-no drama, comédia, dialogismo: - não importa.
Não o fiz para o teatro: é um filho pálido dessas fantasias
que se apoderam do crânio e inspiram a Tempestade a Shakespeare, Beppo
e o IX Canto de D. Juan a Byron; que fazem escrever Anunciata e O Conto de
Antônia a quem é Hoffmann ou Fantasio ao poeta de Namouna.