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Lucano

Roma é o Proteu Mítico, na história. A fascinação das formas mais altivas e mais belas, tudo isso ela soube.
Roma a bandida, poviléu de homens perdidos, foi a Roma de Fabrício e Cincinato, de Fábio e Catão-Censor, foi o lábaro de heroísmos de toda uma época.
A Roma guerreira e severa, dos indomados brios, foi também a Roma prostituta dessa época que resvalou de César - o moechum calvum omnium mulier - como ele se dizia - pelas saturnais r&eaccute;gias dos Césares. Ateneu, Salviano, Luciano, Amiano Marcelino - e entre todos esses, a voz sublime de maldição de Tácito, substituem ai aquele Tio Lívio onde Niebuhr sentira o transverberar de uma epopéia.
A terceira fase é mais singular. Sobre as lupanares romanas, na pocilga da cidade voluptuosa, passou o lustral do cristianismo. Roma foi a Cidade Santa.
Depois, a Cidade Eterna foi outra vez a rainha da devassidão. Nos salões do Vaticano pernoitaram trepidantes as orgias com mulher perdidas. Alexandre VI, o papa, nos braços incestuosos de Lucrécia Bórgia, eis um tipo da época... a papisa Joana (verdade ou mentira, que importa?) assinalou a era infame da Pornocracia.
A plebe cristã de Roma de então bastardeou seus avoengos do cristianismo, como o poviléu Romano dos Césares renegou as suas lendas do passado. Rienzi foi um meteoro que só serviu para mostrar as trevas de um povo morto de ebriedade, caído de pocema em pocema, maldito e réprobo ainda no seu fanatismo - assim como Garibaldi em nossos dias (aquele palpitar de uma nação inda titubeante do sono de infâmia a servilismo) só serviu para apontar ao mundo inteiro mais um tipo da raça espúria que degenerava da sua história republicana, e o anacronismo do poder absoluto representado na terra das antigas fraquezas pelo herdeiro do pescador de Galiléia - por aquele que devia ser o gonfaloneiro dda liberdade e da igualdade.
Lucano é uma página dos fastos dessa Roma. Caráter brilhante - a luz que aureolava aquela fronte de poetta só serviu para mostrar a escuridão de um povo inteiro labutando nas trevas do paganismo, nas saturnais de um culto absurdo e maldito no torpe de seus mitos.
Há homens que resumem na altivez da fronte uma época inteira. Guerreiros - tornam-se a expressão materializadda das tendências instintivas, ou o braço das aspirações espirituais; poetas - fazem-se a síntese de um volver atropelado de idéias, o foco concentrativo de mil lumieiros, de mil alvos individuais que se aunam, se harmonizam numa poesia e o arreigar íntimo da fé embebida de religiões.
Homero, Tasso e Camões foram homens assim. Na antiguidade o painel mais soberbo e mais verdadeiro daquelas eras, onde a inteligência como em todas as infância populares se avultava no plástico de formas estatuárias, quando ou a raça Adamita era mais acesa de vida nos músculos inda jovens, ou o atletismo tinha mais azo e desenvolvimento nos pugilatos do circo e na educação robusta daqueles tempos viris, - é o livro de Homero. A grandeza daquelas paixões dos heróis, a meio perdidos no confuso dos mitos - o orgulho daquelas raças hercúleas agitavam o atropelador ígneo das entranhas do homem - o amor aí elevado como nos protagonistas da cena de Ésquilo nos coturnos, nas longas clâmides, e nas máscaras de lábios metálicos - não é só a fervura de um sangue mau, como diz o Iago Shakespeariano, - é o vibrar agoirento como o ramalhar Dodoneu. O ciúme não se cala aí ao abafamento como no Otelo. São as multidões guerreiras da Grécia semibárbara, que rugem tigrinas às muralhas Troianas por uma mulher que adormece acalentada nos beijos perfumados de Páris, no voluptuoso das liras amorosas.
A epopéia do Tasso é a vibração daquela grande harpa Européia, é o cristianismo no fanatismo, o instinto guerreiro dos povos que entrevêem na igualdade de sangue do campo da lide, na igualdade da valentia, a igualdade do porvir - o instinto guerreiro dos reis, que querem mostrar aos povos quanto lhes vai de realeza no brio assim como na fronte diademana. Entre a tendência egoísta e centralizadora dos reis e a tendência de liberdade do poviléu, há aí a aspiração cavalheiresca - de pairar com as águias montesas sobre o vôo das aves da planura sobre aquelas cabeças de plebe valente. Era um duelo de brio entre a fidalguia e a plebe, - era um duelo de brio e de alta política entre o rei e o demais do povo - o feudalismo.
Eis aí pois. A epopéia, isto é, o sublime da história clama por seu evocador - como a amante por seu poeta. A epopéia a não ser um anacronismo seria um absurdo num tempo de marasmo.
Virgílio parece uma exceção. Ele não era daqueles que como Homero ou o Buonarroti - o pintor, lavram sua criação selvagem às vezes, mas grandiosa desde que o gênio derramou-se-lhe aí por luz. O cantor macio das Éclogas, o suavíssimo sonhador daquele Pausilippo, onde no azul-lóio das vagas salpicadas d'oiro da tarde, no róseo vaporento dos verões Partenopeus, exalam-se perfumadas auras como vibrações de poesia - o plácido poeta das Geórgicas não tinha aquele largo crânio homérico donde irrompiam raios de luz como de fronte Olímpica 0 não tinha o músico do olhar profundo de Dante ou Miguel Ângelo - a cuja evocação como o anel de Giges erguem-se os fantasmas do passado. Em Virgílio o que reluz é o transverberar pela fronte marmórea, inda à sombra dos louros, do gênio Heleno - e ainda aí, inda entre o naufrágio com rodos os seus horrores, na peleja das vagabundas relíquias de Ílion nas paias da Itália - inda ante a convulsão de morte de Turno banhado de sangue, passam visões belas como Dido, a suicida, e Lavínia.
Lucano é sim um poeta ao jeito de Meônio, O tempo dele era uma época singular. A voz fatídica do Deus Pã clamara nas tênebras do mar Sículo - "os deuses morreram!" - e a geração descrida dos velhos pagãos se mergulhava nas ondas letárgicas da saturnal bacante.
Em meio daquela era onde o ar abafava, e as nuvens gemebundas de procelárias se abatiam negrtas nas gáveas da nau Romana - na metáfora Horaciana - como ante o aproximar dos bafos da tormennta, havia um ardor de vulcão preste a romper-se, um vapor vertiginoso de crepúsculo de verão que travava do espírito. Lucano, em sua alma afervorada de um entusiasmo antigo, naquela imaginação de poeta cuja carreira de sonhos gigantescos ia terminar no fado do cúmplice dos Pisões - aquele soberbo vulto de moço, que assombra as eras de loucura, ourada em lenocínios de hiena, naquele queimar deliroso que acendera no coração de Nero todas as ânsias de um tigre que sacia-se em vingança no seu canto sombrio de alegrias frenéticas ante Roma lavrada de chamas - aquela fronte inda altaneira no livor do suicídio - morto pela liberdade como Catão - a não poder morrer pela gró;ria como Júnio Bruto!
O Panteon desabava no mar sanguento das proscrições nas ruas inda vermelhas. Era uma tendência de já muito naquela embriaguez famulenta de mortuárias à identificação daquelas turbas ardentes na fronte laureada de um homem. Foi uma das reações que se notam em todas as febres de frenesi e túrbido da humanidade - uma daquelas que alçam os Cromwells e os Bonapartes ao sólido deslumbrador da onipotência monárquica. Era entre o mito instinto de morticínio, naquela cabeça turva da moribunda cidade-rainha, uma tendência à escravidão. Mário, Sila, Catilina, o haviam compreendido - e legaram a herança de ambição ao rival de Pompeu - Júlio César.
Aí no decaído das estátuas marmóreas do paganismo de Hesíodo - o vate, e de Fídias - o escultor do Partenon, a humanidade crescia mais ativa. A soberbia olímpica do Deus tonante, o denodo do Alemeneu destemido, não se reverberam naquele busto de Romano, mas altaneiro à desboatada luz do relâmpago, clamando ao barqueiro lívido - Caesarem vehis?
Júlio César era certo o herói da época. Com os vícios e a infâmia licenciosa do povo Romano de então - a rigidez de vontade, as letras e a eloqüência entusiástica e forte dos séculos mais belos da Grécia - unidos à dissimulação mais funda que lhe prestava todos os recursos a tempo - tudo isso fazia de César o Alcida que tinha de deitar-se aos pés da caprichosa Onfale republicana.
A epopéia de Farsália não podia nem devia vislumbrar aos relâmpagos do Olimpo. Perdendo o mito, desembridando-se da fábula helênica, ganhava em verdade, porventura em unidade de ação o que não sei se perdia em grandeza - porque a verdade o é também: - não sei o que haja mais sublime quue o sublime histórico.
E também, depois da poesia heleno-latina era impossível acordar aqueles colossos do paganismo com brilhantismo homérico - não só porque Homero viera primeiro, e porque fora o gênio maior da antigüidade; mas também porque Homero cria, e Lucano, é decadência descrida de Roma, não cria - e a poesia da religião é a fé.
Assim pois, não há julgar a epopéia de Lucano pela Poética Aristótelica. A Poética, como todas as leias, deve variar com as suas condições de existência, com suas mudanças de relações. Leis irrevogáveis - eis uma utopia muito maior ainda na arte - um de cujos fins é o belo e o aperfeiçoamento do belo - do que na legislação - cujo fim é o justo e a realização do justo.
Comparando Virgílio e Lucano, não irei negar a superioridade daquele. profana ousadia minha fora o romper-lhe alguma das bagas da láurea. Contudo, no paralelo tem-se dado como um ressaibo do céu grego para coroar sua melopéia como o coro nas produções antigas. Quanto a nós, por mais belo que seja o tipo da cópia, desde que a produção não tenha em si a luz da originalidade, acharemos nela talvez doçura, arte - mas a grandeza do gênio?... Não sei.
Virgílio não estudou só Homero -, coseu muitos dos broslados de púrpura daquele manto oriental na sua túnica Romana. Às vezes não é só dor sente-se-lhe passarem sombras - como bandos de grous no cantar gemido de suas mágoas - na expressão do Dante, vislumbres do passado grego -, sente-se-lhe contudo entre o borbotoar fervoroso das idéias vulcânicas naquele embater de imagens que borbotam fecundas em torrente dos lábios homéricos do vate - um quê de novo, como uma literatura que aponta mais livre nas ruínas de uma literatura avelhentada.
A Farsália é uma crônica em verso, disseram-no, e creram-no doesto. "Um crônicon-poema não podia ser sublime" - cismaram talvez os críticos na sua aridez de cérebro sem vida e sem criação. Pobres críticos! E os Anais de Tácito? Que há aí mais sublime que o estilo do velho cronista, escrevendo no seu sacerdócio de vingança ao pedestal do porvir as suas linhas, onde cada página assinala um crime, e cada crime uma maldição do severo Romano!
Pobres críticos! - E contudo nem o Tibério de J.-M. Chénier, nem sequer o Britânico de Racine - nada disso vale o pergaminho do analista Romano. Pobres críticos! Riam - do seu rir frio e amargo - de uma crônica que fosse ao mesmo tempo uum poema! E onde mais bela a quiseram - a poesia - que nos Girondinos de LLamartine - ou naquele tombo de sanguentas recordações, no livro do diagnóstico da febre da carnagem revolucionária - o Monitor - ou naquele poema continuativo do drama da Montanha, a história escrita à ponta de espada por mil campos de batalha europeus e fúnebre como um coro de morte, cerrada no rochedo nu e candente da África - a epopéia sublime do homem do século a quem todas as grandes imaginações da época deram seu quinhão de poesia - de W. Scott e Byron a V. Hugo e Lamartine, do cancioneiro de Béranger à epopéia lírica de Edgar Quinet?

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