Álvares de Azevedo > Lira dos 20 Anos

Lira dos Vinte Anos

Poesias Diversas

Glória Moribunda
No Álbum da Exma. Sra. D. O...
À Minha Mãe
Soneto - Passei ontem a noite junto dela.
Ao Meu Amigo J. F. Moreira
Soneto - Perdoa-me, visão dos meus amores.
A Minha Esteira
Soneto - Ó páginas da vida que eu amava.
Se eu morresse amanhã!

Glória Moribunda

Une fille de joie attendait sur la borne.
Théophile Gautier

I

É uma visão medonha uma caveira?
Não tremas de pavor, ergue-a do lodo.
Foi a cabeça ardente de um poeta,
Outr'ora à sombra dos cabelos loiros.
Quando o reflexo do viver fogoso
Ali dentro animava o pensamento,
Esta fronte era bela. Aqui nas faces
Formosa palidez cobria o rosto;
Nessas órbitas - ocas, denegridas! -
Como era puro seu olhar sombrio!

Agora tudo é cinza. Resta apenas
A caveira que a alma em si guardava,
Como a concha no mar encerra a pérola,
Como a caçoila a mirra incandescente.

Tu outr'ora talvez desses-lhe um beijo,
Por que repugnas levantá-lo agora?
Olha?o comigo! Que espaçosa fronte!
Quanta vida ali dentro fermentava,
Como a seiva nos ramos do arvoredo!
E a sede em fogo das idéias vivas
Onde está? onde foi? Essa alma errante
Que um dia no viver passou cantando,
Como canta na treva um vagabundo,
Perdeu-se acaso no sombrio vento,
Como noturna lâmpada apagou-se?
E a centelha da vida, o eletrismo
Que as fibras tremulantes agitava
Morreu para animar futuras vidas?

Sorris? eu sou um louco. As utopias,
Os sonhos da ciência nada valem.
A vida é um escárnio sem sentido,
Comédia infame que ensangüenta o lodo.
Há talvez um segredo que ela esconde;
Mas esse a morte o sabe e o não revela.
Os túmulos são mudos como o vácuo.
Desde a primeira dor sobre um cadáver,
Quando a primeira mãe entre soluços
Do filho morto os membros apertava
Ao ofegante seio, o peito humano
Caiu tremendo interrogando o túmulo...
E a terra sepulcral não respondia.

Levanta-me do chão essa caveira!
Vou cantar-te uma página da vida
De uma alma que penou, e já descansa.

II

- Por quem esperas trêmula a desoras,
Mulher da noite, na deserta rua?
A miséria venceu os teus orgulhos,
E vens na treva contratar teu leito?
Vem pois. És bela. Tens no rosto frio
A imagem das Madonas descoradas.
Vagabunda de amor, és bela e pálida.
Será doce em teu seio de morena
Um momento sentir os meus suspiros
Estuantes nos lábios doloridos.
Se inda podes amar, ergue-te ainda,
Une teu peito ao meu, pálida sombra!

III

Era uma fronte olímpica e sombria,
Nua ao vento da noite que agitava
As loiras ondas do cabelo solto;
Cabeça de poeta e libertino
Que fogo incerto de embriaguez corava.
Na fronte a palidez, no olhar aceso
O lume errante de uma febre insana.

IV

- Mancebo, quem és tu?

- Que importa o nome?
Um poeta de santas harmonias
Que a Musa obscena do bordel profana.
Na aparição balsâmica dos anjos
Porventura enlevei a mocidade.
Das virgens no cheiroso travesseiro
Porventura dormi... Meu Deus! que sonhos!
Em seios que a inocência adormecia
Repousei minha fronte embevecida.
Amei, mulher! amei!

Que sede intensa!
Secou-se-me a torrente do deserto
Que as folhas de frescura borrifava.
Tudo! tudo passou... Amei... Embora!
Quero agora dormir nos teus joelhos.
Nessa esponja da vida inda uma gota
Talvez reste a meus lábios anelantes
Que me dê um assomo de ventura
E um leito onde morrer amando ainda.

E que vida, mulher! que dor profunda,
Faminta como um verme aqui no peito!
Murcha desfaleceu a flor da vida
E cedo morrerá. . . E vós, meus anjos,
Ó Virgem Santa, que eu amei, na lira
A quem votei meu canto deliroso;
Amantes que eu sonhei, que eu amaria
Com todo o fogo juvenil que ainda
Me abrasa o coração, por que fugistes,
Brancas sombras, do céu das esperanças?

Oh! ríamos da vida! tudo mente!
Os meus versos gotejam de ironias!
Esse mundo sem fé merece prantos?
À orgia! na saturnal entre a loucura
Derrama o vinho sono e esquecimento.
Vinde, belezas que a volúpia inflama!
Bebamos juntos... Cantarei de novo:
A minha alma nas asas do improviso,
Como as aves do céu, voe cantando. . .
Todos caíram ébrios?.. . só eu resto?
Embora! em minha mão a lira pulsa,
Meu peito bate, a inspiração agora
Cânticos imortais ao lábio inspira.
Voai ao céu - não morrereis, meus cantos!

V

A glória! a glória! meu amor foi ela,
Foi meu Deus, o meu sangue... até meu gênio. . .
E agora!... Além os sonhos desta vida!
Quando eu morrer, meus versos incendeiem!
Apague-se meu nome - e ao cadáver
Nem lágrima nem cruz o mundo vote.
Sou um ímpio (disseram?n'o)! pois deixem-me
Descansar no sepulcro!

Por que choras,
Descorada mulher? Sabes acaso
Quem é o triste, o malfadado obscuro
Que delira e desvaira aqui na treva
E tuas mãos aperta convulsivo?
Eu não te posso amar. Meu peito morto
É como a rocha que o oceano bate
E branqueia de escuma: ali não pode
Medrar a flor cheirosa dos enlevos...
Teu amor... Eu descri até dos sonhos...
Demais dentro em tua alma eu vejo trevas,
Uma estrela de Deus não a ilumina.
Quem pudera nas ondas do passado,
Ditoso pescador, erguer no lodo
O ramo de coral de teus amores?

VI

Amei! amei! no sonho, nas vigílias
Esse nome gemi que eu adorava!
Votei amor a tudo quanto é belo!
Escuta... A rua é queda. A noite escura
É negra como um túmulo. Durmamos
No leito dos amores do perdido.
Vês? nem lua no céu... tudo é medonho!
Nem estrela de luz!... - Silêncio! Embora!
Escuta, anjo da noite! no meu peito
Não ouves palpitar o som da vida?
Deixa encostar meus lábios incendidos
No teu seio que bate. Vem, meu anjo!
A alma da formosura é sempre virgem!
Minha virgem - irmã - meu Deus! contigo
Oh! deixa-me viver! Eu sinto bela
A tua alma acordando refletir-te
Nesses olhos tão negros d'Espanhola.
Quero amar e viver - sonhar - em fogo
Meus frouxos dias exaurir n'um beijo,
Derramar a teus pés os meus amores,
Minhas santas canções a ti erguê-las,
A ti, e só a ti! -

VII

- Que tens? desmaias?
Que tens, mancebo?

- Nada. É cedo ainda.
Não é ela inda não. Chamei por ela...
Foi em vão... delirei...

- Por quem?
- A morte.
- Morrer! pobre de ti, ó meu poeta!<

- Se a morte é sofrimento, eu sofro tanto,
Que a mudança do mal será consolo;
Se a morte é sono, meu cansado corpo
No descanso eternal deixai que durma.

- Eu também sofro. . . mas a morte assusta.
Eu mísera mulher nas amarguras
Descorei e perdi a formosura...
No amor impuro profanei minha'alma...
E nesta vida não amei contudo!
Não sou a virgem melindrosa e casta
Que nos sonhos da infância os anjos beijam
E entre as rosas da noite adormecera
Tão pura como a noite e como as flores;
Mas na minh'alma dorme amor ainda.
Levanta-me, poeta, dos abismos
Até ao puro sol do amor dos anjos!
Ó minha vida, minha vida pura,
Por que foram tão breves da inocência
Das crenças virginais os belos dias?
Chamei por Deus em vão. Sobre meu leito
Em vez do anjo do céu senti gelada
Sombra desconhecida vir sentar-se,
Em beijos frios roxear meus lábios,
Em abraços de morte unir-me ao seio.
Douda! chamei por Deus! a meu reclamo
Veio o torvo Satã... Oh! não maldigas
A mísera que os seios inocentes
Entregou sem pudor a mãos impuras:
Eram taças de Deus... eu bem sabia!
Mas todo o pesadelo do passado
Foi uma horrenda sina... tudo aquilo
Escrevera Satã... -

VIII

- Fatalidade!
É pois a voz unânime dos mundos,
Das longas gerações que se agonizam,
Que sobe aos pés do Eterno como incenso?
Serás tu como os bonzos te fingiram?
Sublime Criador, por que enjeitaste
A pobre criação? Por que a fizeste
Da argila mais impura e negro lodo,
E a lançaste nas trevas errabunda
Co'a palidez na fronte como anátema,
Qual lança a borboleta a raça d'oiro
No pântano e no sangue?

Tudo é sina:
O crime é um destino - o gênio, a glória
São palavras mentidas - a virtude
É a máscara vil que o vício cobre.
O egoísmo! eis a voz da humanidade.
Foste sublime, Criador dos mundos!

IX

Tudo morre, meu Deus! No mundo exausto
Bastardas gerações vagam descridas.
E a arte se vendeu, essa arte santa
Que orava de joelhos e vertia
O seu raio de luz e amor no povo,
E o gênio soluçando e moribundo
Olvidou-se da vida e do futuro
E blasfema lutando na agonia.
Agonia de morte! Só em torno
No leito do morrer as almas gemem.
E o fantasma da morte gela tudo.
Por que um ardente amor não mais suspira
Notas do coração pelo silêncio
Da noite enamorada? A chama pura
Por que das almas se apagou nas cinzas?
E a lira do poeta, se murmura
As ilusões de um mundo visionário,
Por que estala tão cedo? Vagabundo
Adormeci das árvores na sombra
E nos campos em flor errei sonhando
Coroando-me dos lírios da alvorada.
Árvore prateada da esperança,
Sombra das ilusões, ó vida bela
E sempre bela, e no morrer ainda,
Por que pousei a fronte sobre a relva
À sombra vossa, delirante um dia?

Oh! que morro também! na noite d'alma
Sinto?o no peito que um ardor consome,
No meu gênio que apaga-se nas orgias,
Que foge o mundo, e o sepulcro teme...
Exilei-me dos homens blasfemando...
Concentrei-me no fundo desespero,
E exausto de esperança e zombarias
Como um corpo no túmulo lancei-me,
Suicida da fé, no vício impuro.

X

E o mundo? não me entende. Para as turbas
Eu sou um doudo que se aponta ao dedo.
A glória é essa. P'ra viver um dia
Troquei o manto de cantor divino
Pelas roupas do insano. - Os sons profundos
Ninguém os aplaudia sobre a terra.
Para um pouco de pão ganhar da turba,
Como teu corpo no bordel profanas,
- Fiz mais ainda! - prostituí meu gênio! Oh! ditoso Filinto! ele sim pôde
Na miséria guardar seu gênio puro;
Nunca infame beijou a mão dos grandes:
Morreu como Camões, morreu sem nódoa!
Mas eu! A voz do vício arrebatou-me,
Fascinou-me da infâmia o revérbero...
Maldições sobre mim! Abre-te, ó campa!
Ali obscuro dormirei na treva...

XI

Ó santa inspiração! fada noturna,
Por que a fronte não beijas do poeta?
Por que não lhe descansas nos cabelos
A coroa dos sonhos, e rebentam-lhe
Entre as lívidas mãos uma por uma
As cordas do alaúde no vibrá-las?
Ó santa inspiração! por que nas sombras
Não escuta o poeta à meia?noite
Os sons perdidos da harmonia santa
Que o pobre coração de amor lhe enchiam?

Eu fui à noite da taverna à mesa
Bater meu copo à taça do bandido,
Na louca saturnal beber com ele,
Ouvir-lhe os cantos da sangrenta vida
E as lendas de punhal e morticínio.
De vinho e febre pálido deitei-me
Sobre o leito venal de uma perdida...
Comprimi-a no meu exausto peito,
Falei-lhe em meu amor, contei-lhe sonhos,
Do meu passado a flor, as glórias murchas
E os longos beijos da primeira amante...

Amor! amor! meu sonho de mancebo!
Minha sede! meu canto de saudade!
Amor! Meu coração, lábios e vida
A ti, sol do viver, erguem-se ainda,
E a ti, sol do viver, erguem-se embalde!

Ouvi, ouvi no leito da miséria
A pálida mulher junto a meu peito
Contar-me seus amores que passaram,
Falar-me de purezas, d'esperanças...
E soluçava a triste, e ardentes, longas.
As lágrimas em fio deslizando
Eu vi caindo sobre o seio dela...

Oh! suas emoções, úmidos beijos,
Dos seios o tremor, aqueles prantos,
E os ofegantes ais... eram mentira!...

XII

Ah! vem, alma sombria que pranteias.
Por quem choras? Por mim? Em vez de prantos
Deixa-me suspirar em teus joelhos.
Tu sim és pura. Os anjos da inocência
Poderiam amar sobre teu seio.
Aperta minha mão! Senta-te um pouco
Bem unida a minha alma em meus joelhos:
Assim parece que um abraço aperta
Nossas almas que sofrem. Revivamos!
O passado é um sonho - o mundo é largo,
Fugiremos à pátria. Iremos longe
Habitar n'um deserto. No meu peito
Eu tenho amores para encher de encantos
Uma alma de mulher... Por que sorriste?
Sou um louco. Maldita a folha negra
Em que Deus escreveu a minha sina...
Maldita minha mãe, que entre os joelhos
Não soubeste apertar, quando eu nascia,
O meu corpo infantil! Maldita!...

XIII

Escuta.
Sinto uma voz no peito que suspira...
É a alma do poeta que desperta
E canta como as aves acordando.
Oh! cantemos! até que a morte fria
Gele nos lábios meus o último canto!
Um cântico de amor, ó minha lira!
Anália! Armia! aparições formosas!
Eu amei sobre a terra as vossas sombras.
O ideal que vos anima e eu buscava,
Vive apenas no céu! vou entre os anjos,
Entre os braços da morte amar com eles! -

XIV

O poeta a tremer caiu no lodo.
A perdida tomou-lhe a fronte branca,
Pô-la ao colo - era lívida - inda o fogo
Lá dentro vacilava agonizando,
Como flutua a claridão da lâmpada
Apagando-se ao vento.

E quando a aurora
Nos céus de nácar acordava o dia,
E nas nuvens azuis o sol purpúreo
Se embalava no eflúvio de ventura
Das flores que se abriam, dos perfumes,
Da brisa morna que tremia as folhas,
Macilenta a mulher no chão da rua
Sentada, a fronte curva, sobre os seios
Embalava cantando aquele morto.

Na manta o encobriu. Medrosa a furto
A infeliz o beijou - o pobre amante
Que uma noite pernoitou com ela
Para aos pés lhe morrer - e sem ao menos
Nas faces dela estremecer um beijo.

Alguém que ali passou, vendo-a tão pálida
Sentada sobre a laje, e tão ardente,
Chegou ao pé - ergueu ao malfadado
A manta.

Como súbito acordando
Disse a moça a tremer:

- Deixa-o agora.
Ele penou de febre toda a noite,
Deitou-se descansando sobre o leito...
Oh! deixa-m'o dormir.

- Mulher, no peito
Sabes quem tu dormiu?

- "Que importa o nome?"
Assim falava-me…

- Ai de ti, misérrima!
Um poeta morreu. Fronte divina,
Alma cheia de sol, fronte sublime
Que de um anjo devera no regaço
Amorosa viver. . . Morreu Bocage! -

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No Álbum da Exma. Sra. D. O...

Era uma flor a embalsamar-me a vida,
Era um astro a doirar meu firmamento,
Era um ser ideado em sonhos d'oiro
Angélico a sorrir ao meu tormento;

E essa flor, e esse anjo, e essa estrela
De límpido fulgor tão peregrina
Éreis vós tão somente que eu sonhara
Qual anjo melancólica e divina;

E sentimento foi que não tem nome,
Que não é - não - amor, nem amizade,
Afeto que se sente e não se exprime,
Mas olente do odor da castidade;

E esse meu sentir nasceu bem santo
Como vós repassado de pureza,
E bem cândido vive, bem suave
Como da lua a mórbida tristeza!

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À Minha Mãe

És tu, alma divina, essa Madona
Que nos embala na manhã da vida,
Que ao amor indolente se abandona
E beija uma criança adormecida;

No leito solitário és tu quem vela
Trêmulo o coração que a dor anseia,
Nos ais do sofrimento inda mais bela
Pranteando sobre uma alma que pranteia;

E se pálida sonhas na ventura
O afeto virginal, da glória o brilho,
Dos sonhos no luar, a mente pura
Só delira ambições pelo teu filho!

Pensa em mim, como em tu saudoso penso,
Quando a lua no mar se vai doirando:
Pensamento de mãe é como o incenso
Que os anjos do Senhor beijam passando.

Criatura de Deus, ó mãe saudosa,
No silêncio da noite e no retiro
A ti voa minh'alma esperançosa
E do pálido peito o meu suspiro!

Oh! ver meus sonhos se mirar ainda
De teus sonhos nos mágicos espelhos!
Viver por ti de uma esperança infinda
E sagrar meu porvir nos teus joelhos!

E sentir que essa brisa que murmura
As saudades da mãe bebeu passando!
E adormecer de novo na ventura
Aos sonhos d'oiro o coração voltando!

Ah! se eu não posso respirar no vento,
Que adormece no vale das campinas,
A saudade de mãe no desalento,
E o perfume das lágrimas divinas,

Ide ao menos, de amor meus pobres cantos,
No dia festival em que ela chora,
Com ela suspirar nos doces prantos,
Dizer-lhe que eu também sofro agora!

Se a estrela d'alva, a pérola do dia,
Que vê o pranto que meu rosto inunda,
Meus ais na solidão lhe não confia
E não lhe conta minha dor profunda,

Que a flor do peito desbotou na vida
E o orvalho da febre requeimou-a,
Que nos lábios da mãe na despedida
O perfume do céu abandonou-a!...

Mas não irei turvar as alegrias
E o júbilo da noite sussurrante,
Só porque a mágoa desnuou meus dias,
E zombou de meus sonhos delirantes,

Tu bem sabes, meu Deus! eu só quisera
Um momento sequer lhe encher de flores,
Contar-lhe que não finda a primavera
A doirada estação dos meus amores;

Desfolhando da pálida coroa
Do amor do filho a perfumada flor
Na mão que o embalou, que o abençoa,
Uma saudosa lágrima depor!

Sufocando a saudade que delira
E que as noites sombrias me consome,
O nome dela perfumar na lira,
De amor e sonhos coroar seu nome!...

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Soneto

Passei ontem a noite junto dela.
Do camarote a divisão se erguia
Apenas entre nós - e eu vivia
No doce alento dessa virgem bela...

Tanto amor, tanto fogo se revela
Naqueles olhos negros! só a via!
Música mais do céu, mais harmonia
Aspirando nessa alma de donzela!

Como era doce aquele seio arfando!
Nos lábios que sorriso feiticeiro!
Daquelas horas lembro-me chorando!

Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro
É sentir todo o seio palpitando...
Cheio de amores! e dormir solteiro!

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Ao Meu Amigo J. F. Moreira
No dia do enterro de seu irmão

A vida é uma comédia sem sentido,
Uma história de sangue e de poeira,
Um deserto sem luz...
A escara de uma lava em crânio ardido
E depois sobre o lodo... uma caveira,
Uns ossos e uma cruz!

Parece que uma atroz fatalidade
A mente insana no porvir alenta
E zomba da iludida!
O frio do vendaval da eternidade
Apaga sobre a fronte macilenta
A lâmpada da vida.

Não digas, coração, que a alma descansa
Quando as idéias no prazer enfurda
O escárnio zombeteiro...
Que loucura!... amanhã o peito cansa...
Resta um enterro... e uma reza surda...
E depois... o coveiro!

Fermente a seiva juvenil no peito,
Vele o talento numa fronte santa
Que o gênio empalidece...
Embalde! à noite, ao pé de casa leito
O fantasma terrível se levanta...
E seu bafo entorpece!

E contudo essa morte é um segredo
Que gela as mãos do trovador na lira
E escarnece da crença;
Um pesadelo - uma visão de medo...
Verdade que parece mentira
E inocula a descrença!

E quem sabe? é a dúvida medonha!
Quem os véus arregaça do infinito
E os túmulos destampa?
Quem, quando dorme ou vela, ou quando sonha,
Ouviu revelações no horrendo grito
A rebentar da campa?

E quem sabe? é a dúvida terrível:
É a larva que aos lábios nos aperta,
Entreabrindo o sudário!
A realidade é um pesadelo incrível!
Semelha um sonho a lápida deserta
E o leito mortuário!

E quando acordarão os que dormitam?
Quando estas cinzas se erguerão, tremendo,
Em nuvens se expandindo?
Perguntai-os aos ciprestes que se agitam,
Ao vento pela treva se escondendo,
Nas ruínas bramindo!

E contudo parece um desvairo,
Blasfêmia atroz o cântico atrevido
Que rugem osçateus;
Sem a sombra de Deus é tão vazio
O mundo - cemitério envilecido!...
Oh! creiamos em Deus!

Creiamos, sim, ao menos para a vida
Não mergulhar-se numa noite escura...
E não enlouquecer...
Utopia ou verdade, a alma perdida
Precisa de uma idéia eterna e pura
- Deus e Céu... para crer!

Consola-te! nós somos condenados
À noite da amargura: o vento norte
Nossos faróis apaga...
Iremos todos, pobre naufragados,
Frios rolar no litoral - da morte,
Repelidos da vaga!

S. Paulo, 2 de novembro 1851

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Soneto

Perdoa-me, visão dos meus amores,
Se a ti ergui meus olhos suspirando!...
Se eu pensava num beijo desmaiando
Gozar contigo uma estação de flores!

De minhas faces os mortais palores,
Minha febre noturna delirando,
Meus ais, meus tristes ais vão revelando
Que peno e morro de amorosas dores...

Morro, morro por ti! na minha aurora
A dor do coração, a dor mais forte,
A dor de um desengano me devora...

Sem que última esperança me conforte,
Eu - que outrora vivia! - eu sinto agora
Morte no coração, nos olhos morte!

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A Minha Esteira

Aqui do vale respirando à sombra
Passo cantando a mocidade inteira...
Escuto no arvoredo os passarinhos
E durmo venturoso em minha esteira.

Respira o vento, e vivo de perfumes
No murmúrio das folhas da mangueira;
Nas noites de luar aqui descanso
E a lua enche de amor a minha esteira:

Aqui mais bela junto a mim se deita
Cantando a minha amante feiticeira
Sou feliz como as ternas andorinhas
E meu leito de amor é minha esteira!

Nem o árabe Califa, adormecendo
Nos braços voluptuosos da estrangeira,
Foi no amor da Sultana mais ditoso
Que o poeta que sonha em sua esteira!

Aqui no vale respirando à sombra
Passo cantando a mocidade inteira;
Vivo de amores; morrerei sonhando
Estendido ao luar na minha esteira!

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Soneto

Ó páginas da vida que eu amava,
Rompei-vos! nunca mais! tão desgraçado!...
Ardei, lembranças doces do passado!
Quero rir-me de tudo o que eu amava!

E que doido que eu fui! como eu pensava
Em mãe, amor de irmã! em sossegado
Adormecer na vida acalentado
Pelos lábios que eu tímido beijava!

Embora - é meu destino. Em treva densa
Dentro do peito a existência finda...
Pressinto a morte na fatal doença!...

A mim a solidão da noite infinda!
Possa dormir o trovador sem crença...
Perdoa, minha mãe - eu te amo ainda!

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Se eu morresse amanhã!

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar os olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito,
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos,
Se eu morresse amanhã!

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