LENDAS

Sociedade Epicuréia

Dinheiro para o Enterro

A Rainha dos Condenados
Publicado originalmente na Carcasse

Sociedade Epicuréia

Álvares de Azevedo escreveu Noite na Taverna durante os anos que passou estudando na Faculdade de Direito de SP, de 1848 a 1851. A capital paulista era, então, habitada por não mais de 15 mil pessoas, que viviam escandalizadas com as aventuras devassas de uma sociedade secreta de estudantes, fundada em 1845, conhecida como "Sociedade Epicuréia". Seus membros, alunos da Academia, chamavam-se uns aos outros pelos nomes de personagens de Lord Byron e tinham como objetivo principal colocar as "extravagantes fantasias" do poeta inglês. Realizavam orgias intermináveis e, diz a lenda, cerimônias macabras nos cemitérios paulistanos.
Ninguém pode afirmar, ao certo, se Álvares de Azevedo participou ou não dessas orgias ditas "byronianas" dos colegas de seu tempo. Mas ficaram fortemente impressas na sua obra as marcas desse tempo em que, segundo o seu contemporâneo de Faculdade, José de Alencar, "todo estudante de alguma imaginação queria ser um Byron, e tinha por destino inexorável copiar ou traduzir o bardo inglês."

Dinheiro para o enterro de Álvares de Azevedo

Como é do conhecimento de todo ávido leitor romântico, os amigos das Arcadas de São Francisco estavam sempre precisando de dinheiro para bebidas e mulheres, nessa ordem.
Diante do estudante e poeta Manuel Antônio Álvares de Azevedo, moço pálido e autor da Lembrança de Morrer, Bernardo Guimarães teve uma idéia.
- Maneco, tu vais morrer! - disse Bernardo ao poeta
Bernardo, Aureliano Lessa, Antônio Canedo, José Bonifácio (o moço), Antônio Suplício Sales e outros mancebos, esticaram Álvares de Azevedo sobre uma mesa, amarraram-lhe os sapatos por uma fita branca, cruzaram-lhe as mãos, travaram o queixo à cabeça com um lenço e, por fim, cobriram o corpo com um lençol, sobre o qual foram colocadas flores murchas roubadas de um velório qualquer.
Aos protestos em vão do poeta, que já cessara a luta, Bernardo e os demais saíram pelas ruas espalhando a notícia que deixou muitas pessoas abaladas.
- Morreu Álvares de Azevedo!
Estudantes, professores e pessoas da sociedade compareceram à República de Álvares de Azevedo para prestar homenagem ao poeta de cuja saúde já se sabia débil. E todos os que se comoviam com a mórbida idéia auxiliavam o grupo de Bernardo com dinheiro para o enterro.
Com os bolsos cheios, os rapazes deixaram a casa do "defunto" e foram se banquetear na Rua das Casinhas e na Rua de Baixo, onde moravam doceiras e assadeiras.
Lá pelas tantas da madruga, apareceu um furioso fantasma: era Álvares de Azevedo.
- Faço o papel de morto para o vosso banquete!? Vou também regalar-me!
Como Álvares de Azevedo não poderia continuar como morto porque morto não pode ir à faculdade, a farsa foi logo descoberta.
As pessoas que deram dinheiro para o enterro e o jornalista, que publicou a morte de Azevedo, ficaram furiosos com a brincadeira dos colegas acadêmicos.
Por precaução, Bernardo Guimarães ficou alguns dias sem sair de casa.

Lendas Necropolitanas
A Rainha dos Mortos

Meia-noite em ponto, embuçados em negros mantos, um bando de uns trinta estudantes com o pretexto de combater o spleen produzido pelas vigílias, engendraram um festim macabro no cemitério da Consolação em São Paulo. Era a época em que havia terminada uma terrível epidemia de varíola, e as valas, repletas de cadáveres, exalavam miasmas pútridos, vapores fétidos peculiares a esta moléstia. Entontecidos por este bafio e aos clarões de archotes, os acadêmicos saltavam valas, tropeçavam em ossadas, enredando-se nos cabelos das defuntas cujos crânios foram arrancados às camadas das covas rasas, chegaram afinal à quadra mais favorável, onde os túmulos em mármores registravam lamentos de saudades banais, tributos à vaidade de barões, comendadores e viscondes e pessoas da alta sociedade, riquíssimas na época.
Todos os acadêmicos haviam tomado nomes de personagens de poemas e dramas de Lord Byron como: Manfredo, Lara, Marino, Beppo, Mazeppa, Caim, Conrado, Faliero, Giaour, Sardanapalo, etc...
Aqueles loucos pareciam "vampiros" e por vezes um ou outro recitava versos num tom blasfemo, erguendo os braços com uma garrafa de conhaque em punho, ora brindando com um crânio, fazendo-o de taça e os outros correspondiam com um estilo ainda mais céptico! E a noite torna-se cada vez mais trevosa, ouvindo-se trovões ao longe. Loucos! Porque escolheram a mansão do esquecimento e da morte, para assim profaná-la? Cedo ou tarde dormireis todos sob estas lousas...
Gargalhavam, pois para os apóstolos do byronismo, fiéis ao fundador da seita, a vida é o contato lúbrico da carne e o cepticismo era a negação absoluta do espírito e da alma...
Lá estavam todos, alguns já embriagados pelo fino cognac que bebiam e de repente uma idéia de louco atravessou o cérebro de um dos convivas:
- E se aclamássemos uma rainha dos mortos?
- É simples, a Eufrásia me parece a mais de conformidade para com o requisito!
- Pois que seja a Eufrásia; proclamaram todos!
- Mas onde celebrar-lhe o funeral? Precisamos de mais tochas, um caixão e muita coragem!
- O caixão providenciaremos, desalojemos um destes defuntos frescos...
E, estimulados, os estudantes byronianos percorreram outras quadras do cemitério da Consolação em busca de uma sepultura onde pudessem suspender um caixão, e encontraram finalmente, todavia sem demora ao terceiro solavanco, a escura lousa de mármore tombou, fez-se em estilhaços, depois começaram a escavar.
A terra se esboroando no buraco sombrio, mais se aprofundava e enfim tocaram o caixão, com uma parte da tampa apodrecida, arrancaram e deram com o esqueleto de uma velha! E assim fizeram, atiraram aqueles infectos molambos de carnes aos sapos e esses coaxando... E com o caixão nos ombros, prosseguiram com o plano...
Os mesmos haviam roubado a loja maçônica que fôra inaugurada por Pedro I em sua visita à cidade paulistana, e esses com os trajes típicos, estandartes e vistosas insígnias ao estilo dos cavaleiros da ordem rosa cruz, formavam um grupo compacto.
A procissão saiu às ruas, e foram ter com a Eufrásia, dez minutos depois batiam na janela da escolhida... ela, diante desta turma vesânica relutou, mas em vão. O irmão terrível agarrou-a e a envolveu num lençol, depois trancou-a no caixão, ela tentou gritar, mas não deixaram-na fazer maiores escândalos, e as horrendas figuras prosseguiram com o ideal... tomaram o caminho de volta ao cemitério da Consolação.
De vez em quando, uma ou outra janela se entreabria, por elas espiava um velho ou uma velha com um castiçal de velas na mão, mas os byronianos estavam nos êxtases da cerimônia macabra, e como era época da epidemia de varíola, os espantados velhos achavam que era um enterro de algum bexiguento...
Chegaram afinal no portal do cemitério e como num costume antigo haviam sepultamentos fora de horas da noite, atravessaram a quadra dos israelitas e um outro túmulo chamou a atenção, com as recentes inscrições: Judite - 20 anos... Foi o suficiente para um dos apóstolos, este abraçando a tumba como num momento angustiante e silencioso, desceu ao fosso e suspendeu ao ombro um esquife precioso...
Este arrebentou com um murro o vidro da tampa, rasgou o véu que envolvia a defunta enquanto os outros do bando assistiam de braços cruzados e meio entristecidos. E o corpo da morta ficou exposto e, por ser de uma judia, estava nu, e o apaixonado estudante deu um grito demoníaco e pôs-se a beijar-lhe... Convulso, a morta em seus braços, ele tocando os lábios nos lábios corroídos da morta sentiu o mal cheiro da putrefação e se afastou, absorto e meditativo...
Os outros prosseguiram com a Eufrásia, e sortearam um noivo para a mundana, e o banquete orgíaco começou com mais recitações literárias e como leito de núpcias usaram a cova da velha que haviam então profanado e de súbito, quando um deles possuía Eufrásia dentro da cova ouve-se um grito, e com os braços erguidos este pedia para retirá-lo e gritava: "- Ela morreu!".
Esta nefasta orgia byroniana ficou registrada nos anais da vida acadêmica de outrora, pois ela resultou na morte de uma mulher, e seguiu-se um processo e a condenação e fuga dos mesmos por parte das autoridades.

O texto acima é um relato de Pires de Almeida baseado em "Escola Byroniana", documento raro da época que se encontra em domínio público. Agradecimentos a Marcos T. R. Almeida, que o disponibilizou em seu zine Revoada de Corvos.
Fonte: ALMEIDA, Pires de - "A Escola Byroniana no Brasil"

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