Álvares de Azevedo > Vida e obra
ÁLVARES DE AZEVEDO
Poeta, ensaísta, contista, romancista e dramaturgo
brasileiro (1831-1852)
A Morte e o Mito
O domingo, 25 de abril de 1852, se iniciara sombrio
na casa do Dr. Inácio Manuel Álvares de
Azevedo, no Rio de Janeiro. Seu filho Manuel Antônio,
o Maneco, pedira à mãe, D. Maria Luísa,
que mandasse celebrar uma missa em seu quarto de doente.
Sentia que, depois de mais de 40 dias prostrado no leito,
vítima de uma série de males, que se manifestaram
violentamente após uma queda de cavalo, chegara
a hora da morte - que tanto cantara em seus versos de
adolescente, apaixonado pelos delírios macabros
de Byron e Musset.
Após se confessar ao padre arrumado às pressas, pediu à mãe,
grávida de seu oitavo irmão, que se retirasse do quarto, pois
precisava descansar. Por volta das 4 horas da tarde, com o auxílio do
irmão Quinquim - quatro anos mais moço - ergueu-se um pouco do
leito, beijou a mãoo de seu pai e, a custo, exclamou:
-- Que fatalidade, meu pai!
Tentou ainda dizer algumas palavras, mas a boca já se contraía
e o corpo jazia imóvel nos braços do irmão.
-- Maneco! Maneco!... Gritavam Quinquim e o Dr. Inácio Manuel.
Do quarto ao lado, D. Maria Luísa, ouvindo e entendendo, soltou um
grito desesperado e desfaleceu.
No enterro, discursou o parente Joaquim Manuel de Macedo, médico, professor
e já um dos mais importantes e populares romancistas do Brasil, autor
de A Moreninha (1844). Entre outros elogios, afirmava que "Deus tinha
acendido na alma do mancebo aquele fogo sagrado da poesia, que eleva o homem
acima da terra e faz correr de seus lábios, em cânticos sonoros,
a linguagem do inspirado".
No dia 27 de abril, o Correio Mercantil, jornal onde então trabalhava
Manuel Antônio de Almeida, publicou, na primeira página, uma nota
em que se lia: "Nesse jovem perdeu o Brasil um de seus mais esperançosos
filhos, um coração patriótico e dedicado, um poeta cujos
vôos deviam elevar-se a grandes alturas, um advogado que prometia em
breve conhecer todos os arcanos da ciências jurídicas, pois que
ainda no fervor dos anos já lhe eram igualmente familiares os poetas
e literatos da Itália, da Alemanha, da França e da Inglaterra,
assim como os escritos dos mais abalizados jurisconsultos e publicistas."
Quase um mês depois, a 22 de maio, em São Paulo, a sociedade acadêmica
a que Maneco pertencia, o Ensaio Filosófico Paulistano, realizava uma
sessão fúnebre em sua homenagem, presidida por Amaral Gurgel.
Nos vários discursos e poemas apresentados, "gênio" é a
palavra mais usada para caracterizá-lo.
Ao morrer, Manuel Antônio Álvares de Azevedo havia publicado apenas
alguns poemas e discursos em revistas acadêmicas de circulação
restrita aos estudantes de Direito de São Paulo. Já era, no entanto,
considerado, por aqueles que o conheciam, uma grande esperança poética
e intelectual.
A sua morte, antes que chegasse a completar o vigésimo primeiro aniversário,
privou-nos, nas palavras de José Veríssimo, "daquele que
seria talvez o máximo poeta brasileiro". Seria... Talvez... O certo é que
a morte jovem criou, como sempre, um mito. O mito do gênio doente e mórbido,
que previra a própria morte em "Se Eu Morresse Amanhã":
"Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!"
Vida breve: vida louca?
"Nada que é tudo", todo mito é enigmático. A tão
curta vida de Álvares de Azevedo é fonte de inúmeras polêmicas
entre seus biógrafos. Discute-se desde o local onde teria nascido até a
causa médica de sua morte. Principalmente polemiza-se em torno da sua
conduta quando estudante em São Paulo. Libertino devasso ou estudante
recatado? Vamos aos fatos que parecem certos.
Sabe-se que o autor da Lira dos Vinte Anos nasceu no dia 12 de setembro de
1831, em São Paulo, onde seu pai era ainda quintanista da Faculdade
de Direito. Tudo indica que teria nascido na biblioteca da casa do avô,
embora haja uma lenda de que o parto teria ocorrido na biblioteca da própria
Faculdade de Direito. De qualquer modo, Álvares de Azevedo teria nascido
como, de resto, passaria toda a vida: entre livros.
Formado, seu pai se transfere para a capital, o Rio de Janeiro, iniciando logo
brilhante carreira jurídica. Aos quatro anos de idade, Maneco depara-se,
pela primeira vez, com a morte. O falecimento de seu irmãozinho, Manuel
Inácio, deixa marcas profundas sobre o jovem sensível. Alguns
biógrafos atribuem ao choque com a morte do irmão uma febre que
o domina entre os cinco e os seis anos, quase o mata, e que o deixaria debilitado
pelo resto da vida. Certamente o poema "O Anjinho", da Lira dos Vinte
Anos, traduz, anos depois, a forte impressão que o episódio lhe
causou:
"Não chorem! lembro-me ainda
Como a criança era linda
No frescor da facezinha!
Com seus lábios azulados,
Com os seus olhos vidrados
Como de morta andorinha!"
Ainda adoentado, inicia-se nos estudos com pouco brilho.
Ingressa, aos nove anos, no Colégio Stoll, onde
logo se destaca, sendo considerado, pelo professor Stoll, "o
melhor dos alunos, pela inteligência, pelo espírito,
pela amável alegria e, principalmente, pela bondade".
Terminado o primário, já fala francês
e inglês e ingressa no célebre Colégio
Dom Pedro II para cursar o ginásio. Lá,
aprende o alemão, o grego e o latim e tem aulas
de filosofia com o poeta Gonçalves de Magalhães,
introdutor do romantismo no Brasil. Sempre enfrentando
problemas de saúde, recebe com menção
honrosa, em 1847, o título de Bacharel em Letras,
o equivalente, hoje em dia, ao diploma do Segundo Grau.
Em 1848, ingressa na Academia de Ciências Jurídicas de São
Paulo. A partir da sua transferência para a capital paulista até a
sua morte, em férias, no Rio de Janeiro, a história se mistura
com a lenda e fica difícil distinguir o homem do mito.
Nas suas cartas à família e aos amigos cariocas, assim como na
peça Macário, Maneco revela um imenso tédio em morar na
pequena "cidade colocada na montanha, envolta de várzeas relvosas" com "ladeiras íngremes
e ruas péssimas", nas quais "era raro o minuto em que não
se esbarrasse a gente com um burro ou com um padre". A capital paulista
era, então, habitada por não mais de 15 mil pessoas, que viviam
escandalizadas com as aventuras devassas de uma sociedade secreta de estudantes,
fundada em 1845, conhecida como "Sociedade Epicuréia". Seus
membros, alunos da Academia, chamavam-se uns aos outros pelos nomes de personagens
do Lord Byron e tinham, como objetivo principal, colocar em prática
as "extravagantes fantasias" do poeta inglês. Realizavam orgias
intermináveis e, diz a lenda, cerimônias macabras nos cemitérios
paulistanos.
Chegando a essa São Paulo, Álvares de Azevedo trava logo amizade
com dois poetas estudantes, notórios boêmios, Aureliano Lessa
e o futuro romancista Bernardo Guimarães. Juntos, planejam publicar
um livro de versos, intitulado As Três Liras.
Introvertido, estudioso, Álvares de Azevedo leu com avidez e produziu
vertiginosamente durante os quatro anos de Faculdade. Escreveu os poemas reunidos
nos livros Lira dos Vinte Anos e Poesias Diversas; os poemas longos O Poema
do Frade e O Conde Lopo; o drama Macário; as narrativas de Noite na
Taverna e O Livro de Fra. Gondicário; quase uma centena de páginas
de estudos literários; alguns discursos acadêmicos e ainda incontáveis
cartas pessoais enviadas ao Rio de Janeiro.
Ficaria muito difícil, portanto, a um trabalhador tão incansável,
de saúde sempre abalada, ter-se misturado com freqüência às
orgias sucessivas e aos excessos dos companheiros boêmios, menos dedicados à literatura
e ao estudo. Vida louca? Certamente a dos que o cercavam. A de Maneco parece,
aos estudiosos mais sérios, ter se passado fundamentalmente entre
os livros e os sonhos.
Duas mortes marcaram profundamente o poeta nos seus últimos anos de
vida. Em setembro de 1850, o quintanista Feliciano Coelho Duarte comete o suicídio.
Em setembro de 1851, morre seu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior.
No discurso fúnebre do amigo, Álvares de Azevedo diria:
"Cada ano uma vítima se perde nas ondas, e a sorte escolhe sorrindo
os melhores dentre nós".
No seu quarto de pensão, compõe um poema dedicado ao amigo (Texto
3), e escreve na parede:
1850 - Feliciano Coelho Duarte
1851 - João Batista da Silva Pereira
1852 - ...
Entre os anos letivos de 1851 e 52, vai passar as férias com a família.
Passeando a cavalo, a conselho médico, com seu cão Fiel pelas
ruas do Rio de Janeiro, para amenizar os sintomas da tuberculose que o afligia,
sofre uma queda. Após uma operação, segundo a família
sem anestesia, para a remoção de um tumor na fossa ilíaca
- provavelmente uma apendicite supurada - e depois de 46 dias de agonia,
deixa a vida para virar lenda.
Publicação e Organização
A obra de Álvares de Azevedo é toda de divulgação
póstuma. Maneco mal teve tempo de escrevê-la, quanto mais de organizá-la
para publicação. Em 1853, o seu amigo Domingos Jacy Monteiro,
seguindo as intenções do autor, que deixara anotações
para a publicação em alguns cadernos, organiza o primeiro volume
das "Obras de Manuel Antônio Álvares de Azevedo". Com
o título de Poesias, o livro traz a primeira versão de Lira dos
Vinte Anos, dividido em duas partes, mas sem os seus respectivos prefácios,
e incluindo apenas os poemas até "É Ela! É Ela! É Ela! É Ela!".
A partir da edição organizada por Joaquim Norberto de Sousa e
Silva, em 1873, foi acrescida uma terceira parte ao livro. E assim, a cada
edição a obra se modificava.
A versão do livro que hoje temos como definitiva foi organizada por
Homero Pires para a edição da Obras Completas de Álvares
de Azevedo da Companhia Editora Nacional, em 1942. Ela é composta por
um "Prefácio" geral à obra (Texto 1); uma "Dedicatória" a`
mãe do poeta; a Primeira Parte, composta por 33 poemas que vão
de "No Mar" a "Lembrança de Morrer" (Texto 4); a
Segunda Parte, com o seu "Prefácio" (Texto 5) e se compõe
de 19 poemas que vão de "Um Cadáver de Poeta" a "Minha
Desgraça" (Texto 9) - incluindo-se aqui, na contagem, os 6 da série "Spleen
e Charutos"; e de uma Terceira Parte que vai de "Meu Desejo" a "Página
Rota" e que, nas palavras do próprio Homero Pires, "não é senão
uma continuação da primeira parte".
Para melhor entendermos as partes em que a obra se compõe, precisamos,
antes, investigar um pouco as influências que o jovem Maneco recebeu
dos autores mais importantes de seu tempo.
O Byronismo
Álvares de Azevedo pode não ter participado das orgias ditas "byronianas" dos
colegas do seu tempo. Mas ficaram fortemente impressas na sua obra as marcas
desse tempo em que, segundo o seu contemporâneo de Faculdade, José de
Alencar, "todo estudante de alguma imaginação queria ser um
Byron, e tinha por destino inexorável copiar ou traduzir o bardo inglês".
George Gordon, nascido pobre e manco em 1788, herdou, aos 16 anos, o título
de Lord Byron e o castelo de Newstead. Espantou a sociedade aristocrática
londrina com seus sucessivos e ruidosos casos amorosos, inclusive com sua meio-irmã Augusta,
viajou por toda a Europa em busca de emoções, envolveu-se amorosamente
tanto com homens quanto com mulheres, e morreu aos 36 anos, vítima da
tuberculose,agravada por um ferimento em batalha, lutando pela libertação
da Grécia, em 1824.
Em meio a toda essa agitação existencial, que se tornou o paradigma
do homem romântico que busca a liberdade, Byron escreveu uma obra grandiloqüente
e passional. Encantou o mundo inicialmente com seus poemas narrativos folhetinescos,
em que não faltam elementos autobiográficos, como Childe Harold's
Pilgrimage, e depois o assustou com a faceta satírica e satânica
que apresenta em poemas como Don Juan.
O cinismo e o pessimismo de sua obra haveriam de criar, juntamente com o mirabolante
de sua vida, uma legião de jovens poetas "byronianos" por
todo o mundo. Na França, Alfred de Musset encontraria nele o melhor
exemplo do homem ( e do poeta ) que quebra todas as regras sociais e vive guiado
apenas pela emoção. Sua versão do "byronismo", é,
no entanto muito mais adocicada e sentimental, faltando-lhe muito da ironia
sarcástica do inglês. No Brasil, na época radicalmente
francófilo, lia-se muito mais Musset do que Byron. Foi o francês,
na verdade, com a sua versão açucarada de Byron, quem mais influenciou
o "Ultra-romantismo" de Casimiro de Abreu e das primeiras produções
poéticas de Álvares de Azevedo.
Impregnado pelo "mal-do-século" - o tédio e a melancolia
que a medicina da época imaginava fruto de uma bile negra produzida
no baço (em inglês: "spleen") - e sofrendo a "doença
da moda", como definiu a tuberculose o poeta inglês Shelley, Álvares
de Azevedo imaginou, na sua obra ao menos, todo um universo de devassidão
e pecaminosidade pelo qual se tornaria conhecido como o "Byron brasileiro".
Iniciou-se, no entanto, muito mais como um "Musset brasileiro" e,
aos poucos, foi incorporando à sua poesia a ironia cortante de George
Gordon.