Este texto faz parte da matéria "O eterno retorno da bruxa genial da introspecção" , sobre a reedição da obra de Clarice Lispector pela editora Rocco ("O Estado de São Paulo" - 19 de setembro de 1998).

 

A mulher que amava o lado escuro das palavras

Texto analisa a obsessão da criadora de "A Hora da Estrela" pelo mistério, pelo indizível

Marina Colassanti

 

Eis Clarice reeditada, a obra toda revista, obedecendo à primeira versão. E ela, ausente. Penso em Clarice, nas vezes tantas em que, enviando seus textos ao Caderno B do Jornal do Brasil, em que colaborou durante sete anos, recomendava que não os perdêssemos, que tomássemos cuidado, pois não tinha cópia. Justo temor. Cada fragmento seria utilizado adiante naquele minucioso emendar de frases e de trechos com que construía seus romances. Nada podia se perder. Porque nada poderia ser recuperado. Cedo ela percebeu que o pensamento que não fosse imediatamente registrado desapareceria para sempre, deixaria a cabeça em branco como um nada. Daí os papeizinhos, as anotações, as costas de recibos e guardanapos que ela rabiscava em qualquer situação, no momento mesmo em que sua voz interior ditava, imperiosa.

Onde estiver, Clarice pode ficar tranqüila, nada se perdeu. Nem nós, editores do Caderno B, no seu tempo, nem ninguém que lidasse com seus textos ousaria perder ou estragar uma frase que fosse. Sabíamos todos o quanto valiam. E agora tudo o que ela escreveu está mais uma vez impresso, e as cópias, aquelas cópias que ela com as mãos prejudicadas pelo incêndio, e incapacitadas de utilizar o carbono, não conseguia produzir, só fazem se multiplicar.

Teria d. Nadir dito a Clarice que um dia seus textos seriam gravados em francês pela diva Catherine Deneuve? Que seus livros seriam estudados, analisados, lidos e relidos no mundo inteiro? Que seu nome seria reverenciado como um dos grandes da literatura mundial? D. Nadir era a cartomante que Clarice passou a freqüentar no Méier, depois que Affonso Romano de Sant'Anna e eu a levamos lá. Era uma magnífica cartomante, d. Nadir. Mas o que as cartas poderiam dizer para Clarice, que já não estivesse nos seus textos?

Ela não mudaria de casa, não havia nenhuma chave em seu percurso, não faria uma grande viagem, não ganharia dinheiro, um cavalheiro moreno não estava galopando ao seu encontro. Saberiam dizer-lhe as cartas que, em lugar dessas coisas comezinhas, ela era, e seria para sempre, dona de um passado remotíssimo, de um passado arcaico, que se confunde com a essência do ser? Saberia d. Nadir reconhecer que estava diante de uma outra espécie de feiticeira, aquela que não lê o que está por vir, porque todas as suas forças estão empenhadas em desvendar as profundezas do que está sendo? E precisaria Clarice que alguém lhe dissesse o que ela já sabia? "Parece que sou portadora de uma coisa muito pesada", disse. E sua alma vergava-se.

Os livros de Clarice multiplicam-se, e por meio dos livros ela se faz presente nas salas de aula, nos congressos, nos eventos, e passa de mão em mão nas bibliotecas. Clarice, que sofreu incomensurável solidão, que não encontrava seu lugar entre as pessoas, que de puro desalento telefonava aos poucos amigos na madrugada, está hoje, levada por seus escritos, rodeada de gente. "Sobretudo nos últimos tempos," ela havia escrito "perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como é. E uma nova espécie de solidão de não pertencer começou a me invadir como heras num muro." Quanto mais Clarice buscava desvendar o ponto em que a vida se funda - e quantos pontos de interrogação em seus textos! -, mais a hera adensava-se ao seu redor, isolando-a dos demais.

Clarice perseguia o indizível, aquilo que as palavras não podem expressar. E queria expressá-lo com palavras. Com as palavras que já existem e que, portanto, teriam que ganhar um outro significado. Ou melhor, com as palavras que já existem e teriam que abrir seu significado revelando os outros significados que escondem, como a lua esconde um de seus lados. Ela queria iluminar o lado escuro das palavras. E, para isso, era preciso visitá-lo. "O ato criador é perigoso", disse numa entrevista, "porque a gente pode ir e não voltar mais. Todo artista sofre um grande risco. Até de loucura."

Do ato criador, Clarice correu todos os riscos. E cedo se foi. Mas o indizível havia sido dito. E Clarice sempre voltará.

 

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