Este texto faz parte da matéria "O eterno retorno da bruxa genial da introspecção" , sobre a reedição da obra de Clarice Lispector pela editora Rocco ("O Estado de São Paulo" - 19 de setembro de 1998). Segundo a matéria, o texto foi escrito por Lygia Fagundes Telles logo após a morte de Clarice.

 

Acordei em meio do grito, gritei? ... Com os olhos ainda na vaga zona do sono, levantei a cabeça do travesseiro e procurei saber onde estava. E que asas eram aquelas? Essas asas que se debateram tão próximas da minha cabeça que o meu grito teve um tom de pergunta, Quem é?! Respirei fundo e comecei por me localizar, estava sentada na cama do hotel e a cidade era Marília. Tudo escuro, mas se olhasse para o relógio ali na cabeceira ficaria sabendo as horas, pronto, olhei e os ponteiros fosforescentes me pareceram tranqüilos, cinco horas da madrugada. E antes de me perguntar, O que estou fazendo aqui? a resposta veio natural, Você foi convidada para participar de um curso de literatura na Faculdade de Letras neste mês de Dezembro de 1977. Voltei-me para a janela com as frestas das venezianas invadidas por uma tímida luminosidade arroxeada. Por um estreito vão pude entrever o céu roxo, e as asas? Recuei, ah! Já voltaram arfantes naquele vôo baixo e ansioso, em círculos e círculos um pouco acima da minha cabeça, não, não era um morcego que o vôo dos morcegos era manso, aveludado, esse vôo era mesmo de penas assustadas.

Estrelas pálidas - Fiquei ali imóvel, dura, enquanto o pequeno ser alado, do tamanho da mão de uma criança, interrompeu de repente os movimentos e fugiu espavorido para o teto. Acendi o abajur. Estava tão assustada quanto o pequeno pássaro que entrara Deus sabe por onde e agora alcançara o teto continuando o seu movimento em círculos mais largos. Levantei-me no maior silêncio e sem ruído abri as venezianas para o céu que ia saindo do roxo para o azul. A meia-lua transparente. As estrelas pálidas. Voltei para a cama, o frio. E o medo de que no seu vôo encegado (era uma andorinha?) ela não atinasse com a janela aberta. Fiquei quieta, as costas apoiadas no espaldar, o cobertor puxado até o queixo, Vamos, desça logo, eu pedi. Desde a infância eu conhecia esses passarinhos que de repente entravam em casa e lá ficavam voando esbaforidos até tombarem exaustos, o bico sangrando, as asas abertas feito braços interrogando, e a saída? Esperei, o que mais podia fazer senão esperar? Qualquer intervenção seria fatal, disso eu sabia bem. Tinha apenas que continuar ali imóvel, respirando baixinho para não assustar mais a andorinha desgarrada, era uma andorinha. Mas o que fazia aquela andorinha despassarada voando no meio da noite, estava escuro quando ela entrou. Não era hora de andorinha sair e se saiu, com tantos quartos disponíveis na cidade, por quê foi escolher justamente o meu? Para me acordar com seus círculos obsessivos me coroando a cabeça?

Descanso inseguro - Inesperadamente ela escapou da sua rota para pousar no globo do lustre. E ali ficou descansando mas num descanso inseguro, as patinhas trementes escorregando no vidro leitoso, o bico apoiado num dos elos da corrente por onde passava o fio elétrico. Vamos, desça daí, eu pedi. Para meu espanto, ela obedeceu e baixou até a trave de madeira dos pés da minha cama. Desceu e pousou bem de frente, me encarando. Tinha as asas um pouco descoladas do corpo e o bico entreaberto mas ainda assim me pareceu mais calma com seus pequeninos olhos redondos e negros, fixos em mim. A plumagem azul-noite. Se eu me inclinasse, e estendesse o braço poderia tocar na minha visitante inesperada que continuava me olhando. O que fizestes de noite? - perguntei baixinho. Não se lembra, hem?! A andorinha fez um ligeiro movimento num quase balanço ao mudar de uma patinha para outra. Apaguei o abajur, quem sabe assim ela podia enxergar a janela aberta. Concentrei-me na mão do pensamento que procurava fazer agora com que ela voltasse a cabeça para a janela, olha aí, está aberta, pode ir! Adeus! eu disse quando ela abriu as asas e seguiu no seu vôo sereno. Acompanhei-a até vê-la desaparecer traçando círculos - hieróglifos? - no céu de um azul esmaecido, amanhecia.

Cartomante - Fechei a janela. Na véspera dessa minha viagem um amigo telefonou para avisar, a Clarice Lispector está muito mal. Afastei depressa essa lembrança e de repente nos vimos na Colômbia, congresso de escritores, ah! não interessa a data, estávamos tão contentes na cálida Cali. Ficamos juntas no avião e quando ele deu aquele pinote nas nuvens ela me tranqüilizou, Calma, a cartomante já me avisou, não vou morrer em nenhum desastre. Tantas charlas, tantas ponencias. Mas essa gente fala demais! Deviam estar em suas casas, escrevendo, ela queixou-se na tarde em que fugimos de uma daquelas sessões no hotel e fomos para o bar, Vamos gazetear? Para mí la literatura no tiene sexo, como los ángeles, eu disse com solenidade, assim devia começar minha charla. Rimos gostosamente enquanto ela pedia champanhe e eu pedia vinho tinto, ah! e salmão e pão preto. Como as guapas escritoras brasileñas estavam felizes longe daquela falação importantíssima que se armava na sala logo adiante, tínhamos pesetas a beça e tanto assunto, Clarice queria a minha opinião, afinal quem era mais indiscreto nas suas traições, o homem ou a mulher? Lembrei que nos antigamentes (começo do século?) a mulher era um sepulcro, ninguém ficava sabendo de nada, segundo Machado de Assis. Mas agora mudou tudo! rebateu Clarice pedindo cigarro, eram bons os cigarros colombianos?

Pastilha de hortelã - As mulheres eram as primeiras a trombetear, Pulei a cerca! Mais champanhe, mais vinho. Quando saímos coradas e brilhantes, os congressistas já deixavam a sala das reuniões. Olha só como eles têm o ar fatigado e triste, ela cochichou e pediu que eu ficasse séria, tínhamos que fingir que estávamos lá bem no fundo, como podiam nos ver? E ofereceu-me uma pastilha de hortelã, o hálito. Alguns anos depois ela me escreveria naquela letra desgarrada, Desanuvie a testa e vista um vestido branco! Mas espera, ainda estávamos em Cali, a cálida Cali... Quando acordei estava em Marília e tinha que correr porque estava atrasada, a aula. No saguão da Faculdade uma jovem veio ao meu encontro, a voz trêmula, o olhar assustado, Saiu agora mesmo no rádio, a Clarice Lispector morreu essa noite. Abracei a mocinha e entrei na sala, Eu já sabia, fui dizendo em voz baixa. Eu já sabia.

 

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