Editor: Wolfram da Cunha Ramos



ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
PODER JUDICIÁRIO
7ª VARA CRIMINAL

 
PROCESSO - AP n. 329/024960154896.
AUTORA: A Justiça Pública.
ACUSADO: Joélson Bandeira.
 

S E N T E N Ç A

Vistos etc...
 
O eminente órgão do Ministério Público, em exercício junto a este Juízo, ofertou denúncia em face de JOÉLSON BANDEIRA, brasileiro, maior, casado, vigilante, filho de Josele Bandeira e de Lúcia Maria dos Santos Bandeira, residente na Rua Ideal, n. 113, Planalto da Serra, Município da Serra, ES, atribuindo-lhe a prática do delito previsto no art. 155, caput, c/c. o art. 14, II, ambos do C.P., pelo fato de, em 05.09.95, por volta das 11:50 horas, ter tentado furtar do Supermercado Boa Praça (filial de Jardim Camburi), sito nesta Capital, 03 (três) barrinhas de chocolate, no valor total de R$ 5,00 (cinco reais), tendo sido detido ao deixar as dependências do citado estabelecimento comercial, interrompendo-se, desta forma, o iter criminis, por circunstâncias alheias à sua vontade.
 
A denúncia veio acompanhada dos autos de Inquérito Policial (fls. 04 usque 23) e foi recebida na data de 29.08.97, através do despacho de fls. 24.
 
Determinada a citação pessoal, não foi o mesmo localizado, o que importou em nova citação pela via editalícia.
 
Chegando ao juízo informação (fl. 57) de encontrar-se o réu preso nas dependências do DPJ de Vila Velha/ES, foi ele, a teor do art. 185 do Código de Ritos, interrogado na data de 13 de janeiro do corrente, conforme comprova o "auto" de fls. 66/67. Juntou-se a sua FAC (fl. 53).
 
Defesa prévia às fls. 69/70 onde se protesta pela produção de prova testemunhal.
 
Prova judiciária exclusivamente oral, colhida através do depoimento de uma única testemunha: Adilson Alves da Silva. As partes desistiram dos demais depoimentos, com homologação judicial.
 
Alegações finais, tempestiva e sucessivamente, oferecidas pelas partes (fls. 90/91 e fls. 93/95, respectivamente). A acusação clama pelo veredicto condenatório , sustentando a tipicidade e ilicitude do fato e a ausência de causas de exclusão de ilicitude ou de isenção de pena; a douta defesa reconhece a responsabilidade criminal do acusado e protesta por benignidade na aplicação da sanção e o reconhecimento da forma tentada do ilícito.
 
Em síntese, é o relatório processual. Decido:
 
Do exame formal dos autos, verifico que, quanto ao procedimento, foram obedecidas as normas processuais pertinentes e observados os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5o., LV). O processo encontra-se apto a ser julgado.
 
Sustenta o órgão do Ministério Público estar provado ter o réu subtraído da vítima, Supermercado Boa Praça, 03 (três) barrinhas de chocolate, mas que, ao sair do interior do estabelecimento-vítima, foi detido, interrompendo o iter criminis por circunstâncias alheias à sua vontade, estando pois sujeito às penas pertinentes a tentativa de furto.
 
Afiança também que a materialidade vem devidamente comprovada pelo Auto de Apreensão (fl. 13) conexo com os autos de Entrega (fl. 14) e de Avaliação indireta (fl. 16); a autoria decorre de confissão extrajudicial (fls. 07 e verso) ratificada em juízo (fl. 66/67) e corroborada pela prova testemunhal coletada.
 
Assim, comprovadas a materialidade e a autoria, pede a condenação do réu, mas, com os benefícios ínsitos no § 2.º do art. 155 do C.P.B., por reconhecê-lo primário — fato evidenciado pela respectiva FAC (fl. 53) —; ser de reduzido valor a coisa que tentara furtar — valoração, para efeitos comparativos, consignada no Auto de Avaliação — ; e tratar-se a hipótese de tentativa de crime — a res não saiu da esfera de vigilância do proprietário.
 
Sem dúvida, o pleito ministerial encontra-se acorde com a lei. Reconheço que os fatos subsumem-se à Lei. A solução apontada é, inquestionavelmente, a solução LEGAL: veredicto condenatório com reconhecimento dos benefícios advindos da primariedade, do pequeno valor da coisa e da forma não consumada da infração!
 
Nada mais deveria parafrasear e proferir o veredicto condenatório. Ainda mais quando o pedido da acusação recebe o aval e satisfaz plenamente os interesses da defesa que foi exercida por profissional de reconhecida competência: cuidadosa, responsável, técnica, aguerrida...
 
Mas tal solução não me satisfaz. Como juiz e como intérprete da Lei.
 
Rememore-se que o valor da res furtiva foi avaliado em R$ 5,00 (cinco reais); rememore-se também, que à vítima não restou prejuízo algum porque houve a pronta devolução, não deixando o fato qualquer dano material. Mas recorde-se também que quando flagrado com as 03 (três) barrinhas de chocolate que correspondem a 4,61% do salário mínimo, o acusado, levado à presença do Chefe da Segurança do estabelecimento comercial, propôs a pagar o preço das mercadorias, (e deixá-las com a vítima), ou executar qualquer serviço como limpar os banheiros do Supermercado para livrar-se, ali mesmo, da situação embaraçosa, constrangedora, vexatória e humilhante, em que se metera mas não foi atendido. O representante da vítima, peremptoriamente exigiu que as formalidades legais da prisão fossem cumpridas.
 
São excertos da prova:
"... e também não entende porque o chefe de vigilância aceitou, digo, não aceitou ajudar o declarante; Que, além de tentar pagar, também, falou que deixaria as mercadorias lá e limparia o local, os banheiros ou faria qualquer outro tipo de prestação de serviço, mas nada adiantou;" (ACUSADO - fls. 07/08).
"...que quando foi preso quis pagar, porém o dinheiro que tinha era para pagar exame psicotécnico para entrar em uma firma de segurança Seguir em Bairro de Fátima;" (ACUSADO -(fls. 66/67).
"Que com JOELSON foi apreendido a quantia de R$ 21,00 (vinte e um Reais) em dinheiro, mas a Chefia de Segurança não aceitou que JOELSON pagasse as barras e fosse embora, determinando o acionamento da PM;" (FRANCISCO NUNES DE ARAUJO fls. 08-verso).
"Que tentou pagar os chocolates e ofereceu-se até para limpar o local ou prestaria qualquer tipo de serviço, mas nada adiantou."(RELATÓRIO DA AUTORIDADE POLICIAL - fls. 19).
Tais excertos da prova revelam-se importantes porque demonstram de um lado, voluntariedade em se submeter sponte sua a uma punição, ainda que não a formal. Mas, punição porque diminuição de seu status libertatis, como forma de remissão e demonstração de pronto arrependimento. Arrependimento, todavia, ineficaz, ex vi lege, porque, quando de sua manifestação, já exauridas todas as etapas do crime, mas relevante quanto à teleologia do Direito Punitivo.
 
De outra banda não se pode olvidar que a vítima no lídimo exercício de seus direitos de cidadania, e aí incluído o de ver as condutas criminosas processadas e punidas segundo a Lei, não abriu mão desse direito, e fez mais, não permitiu a benevolência policial e através de seu representante exigiu providências.
 
Argumentar-se-á em desfavor do comerciante que não faz parte dos costumes e da tradição brasileiras a intransigência, a busca extremada da aplicação da lei, o radicalismo cego que transmuda-se em ódio. E assim, admitindo que dano material não houve, que o arrependimento fora manifestado, que a conduta circunscreveu ao âmbito restrito de um supermercado, e que não restaria qualquer finalidade em uma sanção penal, deveria até mesmo ser a denúncia rejeitada pela perda total do interesse de agir do Estado. A atitude da vítima seria desarrazoada e recheada de vindita, nada mais.
 
Mas, se uma primeira análise pode levar a esse raciocínio, a avaliação empática pode afirmar o contrário pois, sabemos, são os nossos comerciantes diuturnamente incomodados pelo crescente número de pequenos delitos que, no contexto geral e econômico, deixam seqüelas — a permissividade pode servir de estímulo àqueles tendentes às mesmas práticas e que o cercam, verbi gratia, clientes e até mesmo funcionários — e prejuízos. E mais que isso, não olvidamos que há um clima de permanente intranqüilidade onde a atenção que deveria dirigir-se especificamente à função principal do comércio é obrigada a se desviar para esse ataque crescente da pequena delinqüência.
 
Ao renegar a benevolência e até mesmo a compaixão e optar pela solução legal, fez o comerciante uma opção pela fria lógica do dia-a-dia. Censurá-lo, seria ser indiferente à realidade consuetudinária.
Mas, importa refletir sobre a questão, porque em sua aparente simplicidade contém nuances de alta significação à luz das ciências do comportamento humano. Por isso, afirmei alhures que não me satisfazia com a solução eminentemente legal.
 
Mas, posso, enquanto magistrado e no exercício da judicatura, irresignar-me contra a solução apontada pela lei?
Creio poder. E creio porque estabelece nossa Carta Magna que "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre JUSTA E SOLIDÁRIA" e me aponta, a mesma Carta, como um dos instrumentos para a consecução desse objetivo. Me aponta porque, enuncia o art. 2º que "São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário" e define o art. 92, inciso VII, que "São órgãos do Poder Judiciário: I- (...)(...) VII - Os Tribunais e JUÍZES DOS ESTADOS e do Distrito Federal". (Destaquei por força do argumento).
 
E creio também porque, antes de tudo, meu compromisso de magistrado não é com a lei ou com o direito, mas com a JUSTIÇA. Essa é a regra universal para a magistratura de todos Estados que se almejam DEMOCRÁTICOS DE DIREITO!
 
Mas cumpre destacar ainda, porque verdadeira bússola para o magistrado, o postulado insculpido no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que não descurando a História, abre ensanchas ao Juiz para impedir iniquidade, limitar absurdos, podar excessos, humanizar a Lei:
"Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum"
É, então, com olhos voltados para esses princípios constitucionais e legal que volvo à questão sub judice para registrar e discorrer agora sobre caráter subsidiário e fragmentário do Direito Penal.
É subsidiário, porquanto o seu desiderato é eminentemente jurídico e o seu manto só deve proteger os bens juridicamente tutelados e gravemente lesados ou expostos a perigo (ultima ratio regum). É fragmentário, porque, confinando-o dentro de certos limites e situando-o harmoniosamente no ordenamento jurídico total, deve-se extrair dele as conseqüências lógicas de um dos elementos estruturais do conceito de crime, que é a ilicitude ou a antijuridicidade, vislumbrando no delito a relação de contrariedade entre o fato e o ordenamento jurídico no seu todo.
Oportunos e convenientes são os magistérios dos insignes juristas SÉRGIO SALOMÃO SCHECAIRA e FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, dos quais se extraem os seguintes excertos:
"Dentro desse contexto é que se pode afirmar que a relação de objetiva proteção do bem jurídico com o tipo penal se funda, ao menos, no trinômio intervenção mínima, subsidiariedade e fragmentariedade." (in "Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica", p. 133, Editora Revista dos Tribunais, 1998).
"A tarefa imediata do direito penal é, portanto, de natureza eminentemente jurídica e, como tal, resume-se à proteção de bens jurídicos. Nisso, aliás, está empenhado todo o ordenamento jurídico. E aqui entremostra-se subsidiário do ordenamento penal: onde a proteção de outros ramos do direito possa estar ausente, falhar ou revelar-se insuficiente, se a lesão ou exposição a perigo do bem jurídico tutelado apresentar certa gravidade, até aí deve estender-se o manto da proteção penal, como "ultima ratio regum" (in Princípios Básicos de Direito Penal, 5a. ed. págs. 13/14, Saraiva, 1994).
Questionando, acrescenta o mestre FRANCISCO TOLEDO DE ASSIS:
"Que quer isso dizer? Quer dizer que se, de um lado, nem todo fato ilícito reúne os elementos necessários para subsumir-se a um fato típico penal, de outro, o crime deve ser sempre um fato ilícito para o todo do direito. Eis aí o caráter fragmentário do direito penal: dentre a multidão de fatos ilícitos possíveis, somente alguns - os mais graves - são selecionados para serem alcançados pelas malhas do ordenamento penal." (Ob. cit., pág. 14).
Arrematando, assevera o mestre TOLEDO DE ASSIS, in verbis:
"As lesões insignificantes, inexpressivas, ficarão igualmente excluídas do tipo de injusto, porque, realmente, de minimis non curat pretor. E desse estreito intercâmbio entre o tipo e a ilicitude, no interior do conceito de injusto, que os unifica, surgirá, seguramente, um renovado direito penal." (in Princípios Básicos de Direito Penal, 5.ª edição, pág. 164, Saraiva, 1194).
Todo o cidadão que detiver qualquer parcela de poder, emanada da soberania nacional, integrante de qualquer dos Poderes do Estado — eu sou um deles, como demonstrado acolá —, não deve desconhecer, em amplitude e profundidade, a realidade que o circunda, para, em sintonia com a mesma, realizar seus atos interpretando adequadamente a Lei consoante as dificuldades, as angústias, os sofrimentos dos membros da comunidade em que vive.
 
Por oportuno, urge relevar que essa preocupação cresce, avoluma, agiganta-se, quando se trata da missão precípua, sagrada (e ímpar) de julgar os nossos semelhantes: é exatamente essa situação delicada e sensível que ora se me oferece o exercício da jurisdição!
 
Emerge então, que a magistratura deve ser exercida, não prenhe de meras teorias abstratas, mas sobretudo pejada da realidade vivenciada pelo povo, pela sofrida massa humana. Aliás, porque pertinente, urge aludir-se, aqui, a fragmento de lição que nos legou o sempre lembrado jurista HANS KELSEN que, a respeito, asseverou:
"Por vezes, exige-se a livre descoberta do Direito, que garante a flexibilidade do mesmo, em nome da justiça, de uma justiça que se pressupõe absoluta. Justa, neste sentido, seria a decisão de um caso concreto, somente quando tomasse em consideração todas as particularidades do mesmo caso." (in Teoria Pura do Direito, 2a. Edição, pág. 280, Martins Fontes, 1998).
Acrescente-se à respeitável lição supra o ensinamento do também insigne jurista americano, LON L. FULLER, ao sustentar ser a questão simplesmente de:
"... sabedoria prática a ser exercitada em um contexto, não de teorias abstratas, mas de realidades humanas." ("O Caso dos Exploradores de Caverna", de Lon. L. Fuller, pág. 55, Sérgio Antônio Fábris Editor, 1993).
Releve-se, ademais, que prevê o Código Penal pátrio (art. 59) que na decisão condenatória o juiz estabelecerá a pena "conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime".
 
Duas são, então as finalidades da pena, e por conseqüência, do édito condenatório: reprovação e prevenção.
São os princípios da necessidade e da suficiência. Aliás, a respeito, invocam-se os posicionamentos do mestre DAMÁSIO E. DE JESUS abroquelado por decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
"Assim, impõe-se a pena "necessária" para atender às circunstâncias judiciais "conforme seja necessário e suficiente" para atender o grau de reprovação da conduta. E ela deve ser "suficiente" para prevenir o crime (prevenção genérica e específica)." (Código Penal Anotado, 7a. edição, pág. 157, Saraiva, 1997).
"Nenhuma pena deverá ser quantitativamente superior àquela necessária à reprovação e prevenção criminais nem ser executada de forma mais aflitiva do que exige a situação" (Acrim 28.701.369, JTARS, 65:38)." (Código Penal Anotado, de Damásio E. de Jesus, 7a. edição, pág. 157, Saraiva, 1997).
Daí então, volvendo a quaestio sub judice, importa indagar: ante os fatos típicos comprovados, haveria em uma decisão condenatória pretendida pela acusação, compatibilidade com os princípios da subsidiariedade e fragmentariedade do Direito Penal?
Frise-se que há uma solução legal tecnicamente irrepreensível, qual seja, a condenação do réu nos termos do § 2.º do art. 155 do C. P. conforme apontado pelo Ministério Público. Mas tal solução não esbarraria na advertência do brocardo latino summum ius summa injuria? Não, dir-se-á, haveria Justiça porque a Lei foi atendida e o fato é certamente criminoso. Mas haveria TODA A JUSTIÇA DEVIDA da qual nos fala DOSTOIEVSKI?
"Uma justiça que é só justiça é uma injustiça".
CARLOS MAXIMILIANO, o saudoso, por sua vez, também nos deixou a seguinte admoestação: "faça-se justiça, porém, de modo mais humano possível, de sorte que o mundo progrida e jamais pereça" (Hermenêutica e aplicação do direito, pág. 181, 1965), ou seja, "a suma legalidade pode resultar na suprema injustiça."
 
Atentos pois a esses ensinamentos é que prospera entre nós o PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA, que a cada dia ganha mais adeptos e seguidores, humanizando o direito e aplicando a sanção penal somente quando impõe-se REPROVAR E PREVENIR o crime.
Registre-se, para ilustrar, que vigeu, entre os romanos, a regra
"de minimis non curat praetor"
e, tomando-a por empréstimo para servir-lhe de ponto de apoio intelectual e operacional, que CLAUS ROXIN formulou, pela primeira vez (1964) o decantado PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA (ou crime de bagatela), que se incorporou ao ordenamento jurídico alemão em 1984.
 
Tal princípio ainda alheio à nossa legislação, tem na doutrina e na jurisprudência pátrias posicionamentos majoritariamente contrários. Indiscutível é, no entanto, que as soluções por ele apontadas grassam, ganham corpo, avolumam-se de modo exuberante em ambas as sedes (doutrina e jurisprudência), sustentando que, nas condutas que impliquem danos de pequena monta ao bem jurídico protegido, encontra-se excluída a tipicidade. Há, hoje, nesse sentido, agasalho inclusive pelos nossos Tribunais Superiores (STJ e STF).
 
É o que se procurará demonstrar em seguida:
 
I. - NA DOUTRINA:
 
1. - DIOMAR ACKEL FILHO:
 
"... no tocante à origem, não se pode negar que o princípio já vigorava no Direito romano, onde o pretor não cuidava, de modo geral, de causas ou delitos de bagatela, consoante a máxima contida no brocardo minima non curat praetor. De lá para cá, o princípio substituiu, embora sem que lhe tivesse sido dado o merecido destaque, o que só agora vem acontecendo, a partir de seu moderno enfoque dado por inúmeros juristas."
 

Registra, em outra passagem, o citado autor que:
 
"O princípio da insignificância se ajusta à eqüidade e correta interpretação do Direito. Por aquela acolhe-se um sentimento de justiça, inspirado nos valores vigentes em uma sociedade, liberando-se o agente, cuja ação, por sua inexpressividade, não chega a atentar contra os valores tutelados pelo Direito Penal." (Princípio da Insignificância no Direito Penal, in Rev. Jurisp. Trib. ACrim-SP, v. 94, p. 72-7, abril/junho/88).
 
2. - MAURÍCIO ANTÔNIO RIBEIRO:
 
"Essa construção doutrinária busca seus fundamentos em dados não contestáveis da estrutura do Direito Penal, como seu caráter subsidiário e fragmentário. Nesse sentido, poder-se-ia mesmo afirmar que o princípio da insignificância, menos do que uma construção, é uma decorrência do próprio modelo do Direito Penal, sem perder de vista também que se funda no princípio da proporcionalidade que deve guiar a intervenção penal no Estado Democrático de Direito." (in Princípio da Insignificância no Direito Penal, pág. 167, Editora Revista dos Tribunais., 1997).
3. - CARLOS VICO MAÑAS:
 
"... o princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático e político-criminal de expressão da regra constitucional do nullum crimen sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal" (Idem, ibidem, pág. 56).
4. - FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO:
 
"Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas." (in Princípios Básicos de Direito Penal, 5a. edição, p. 133, Saraiva, 1994).
5. - MÁRCIO BÁRTOLI:
 
"Essa postura doutrinária harmoniza-se com a finalidade do Direito Penal, distinta do Direito Civil. Aquele só cuida das ofensas intoleráveis socialmente. O segundo, ao contrário, preocupa-se com as ofensas à pessoa. O dano insignificante é irrelevante para o Direito Penal. Relevante, porém, para o Direito Civil, dado impor-se a reparação de qualquer dano. A insignificância, insista-se, exclui a tipicidade". (Juiz da 10a. Cam. do TACrim-SP, Relator na apelação n. 988.073-2, Proc. n. 1.517/94, julgada em 03.01.96, in Princípio da Insignificância no Direito Penal, de Maurício Antônio Ribeiro Lopes, 5a. edição, 215, Saraiva, 1994).
6. - JÚLIO FABBRINI MIRABETE:
 
"Princípio da insignificância. Sendo o crime uma ofensa a um interesse dirigido a um bem jurídico relevante, preocupa-se a doutrina em estabelecer um princípio para excluir do direito penal certas lesões insignificantes. Claus Roxin propôs o chamado princípio da insignificância, que permite na maioria dos tipos excluir, em princípio, os danos de pouca importância. Não há crime de dano ou de furto quando a coisa alheia não tem qualquer significação para o proprietário, não existe contrabando na posse de pequena quantidade de produto estrangeiro (...), grifei". (in Manual de Direito Penal, 5a. edição, vol. 1, pág. 119, Atlas, 1990).
7. - LUIZ FLÁVIO GOMES:
 
"Pela via judicial ou interpretativa (introdogmática ou sistemática) também é possível uma fértil e extensa construção descriminadora, apoiada em princípios como o da insignificância (insignificantes lesões patrimoniais não configuram o delito de furto, insignificantes doações não configuram corrupção ativa, insignificantes lesões não configuram crime de lesão corporal, insignificantes ofensas não configuram crime contra a honra, insignificantes lesões não configuram o crime de maus-tratos etc.); sobre tal princípio v. Carlos Vico Mañas;" (in Suspensão Condicional do Processo Penal, p. 94, Editora Revista dos Tribunais, 1995).
II. - NA JURISPRUDÊNCIA:
 
1. - Decisão unânime da 9.ª Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo:
 
"FURTO MÍNIMO - Escassa lesividade, sem qualquer repercussão representativa no patrimônio do lesado - Absolvição decretada.

"Apesar da manifestação em contrário da maioria da doutrina brasileira, não se pode atribuir ao conceito de antijuridicidade uma conotação exclusivamente formal, quaisquer que sejam os riscos que se insiram nesse posicionamento (TACrim, Apel. 316.681, Rel. Mário Vitiritto, 29.11.1982)." (in Princípio da Insignificância no Direito Penal, de Maurício Antônio Ribeiro Lopes, pág. 251, Editora Revista dos Tribunais, 1997)

2. - Decisão unânime da 3.ª Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul:
 
"AÇÃO ATÍPICA - Furto de bagatela - Rejeição da denúncia.
 
"Em caso de subtração de coisa insignificante, como de algumas melancias da lavoura, o dano é tão párvulo que o tipo não se integra, e a rejeição da denúncia impõe-se. "Recurso improvido. (TARS, RSE 28423298, Rel. Celeste Vicente Rovani, 28.08.1984)." (in Princ. Insig. no Direito Penal, de Maurício A. R. Lopes, pág. 284, Editora Revista dos Tribunais, 1997).
3. - Decisão unânime da 3.ª Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo:
 
"PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - Necessidade dos critérios de qualidade e quantidade de lesão para justificar o crime.

"A lesão patrimonial deve conceber-se na sua concreta repercussão no âmbito da vida de uma pessoa e não como uma diminuição abstrata de valor de seu potencial econômico. O crime não tem apenas um modo de ser objetivo que o caracteriza, mas também um limite de suficiência, por qualidade e quantidade da empresa criminosa. Aquém desse limite quantitativo-qualitativo não há racional consistência de crime nem justificação da pena (TACrim, Apel. 262.549, Rel. Silva Franco, 09.11.1982)." (in Princípio da Insignificância no Direito Penal, de Maurício Antônio Ribeiro Lopes, pág. 225, Editora Revista dos Tribunais, 1997).

 
4. - Decisão da Corte Especial do STJ, que, por maioria, julgou improcedente a acusação, nos termos do voto médio:
 
"LESÕES CORPORAIS CULPOSAS - Princípio da irrelevância. Ação penal regida pela Lei 8.038/90 - Improcedência da acusação.   "Somando-se à insignificância das lesões sobre a culpa da autora, vem ao caso julgar-se liminarmente improcedente a acusação, na forma do art. 6o. da Lei 8.038/90 (STJ, Inquérito 57-0/DF, Rel. Min. José Dantas, 23.06.1992)." (in Princípio da Insignificância no Direito Penal, de Maurício Antônio Ribeiro Lopes, pág. 266, Editora Saraiva, 1997).
5. - Decisão da 5.ª Turma do STJ, que, por votação, unânime, deu provimento a recurso de Habeas Corpus para efeito de trancamento de ação penal:
 
"ACIDENTE DE TRÂNSITO - Lesão corporal culposa - Delito atribuído à mãe da vítima - Inexistência da lesão - Aplicação do princípio da insignificância -Falta de justa causa para a ação penal - Trancamento determinado - Recurso de Habeas Corpus provido.

Ementa Oficial: Falta de justa causa. Indiscutível a insignificância da lesão corporal conseqüente de acidente de trânsito atribuído a culpa da mãe da pequena vítima, cabe trancar-se a ação por falta de justa causa. Precedentes do Tribunal (STJ, RHC 3.557-9/PE, Rel. Min. José Dantas, 20.04.1994)." (in Princípio da Insignificância no Direito Penal, de Maurício Antônio Ribeiro Lopes, pág. 260, Editora Revista dos Tribunais, 1997).

6. - Decisão unânime da 2.ª Turma do STF, que deu provimento a recurso de Habeas Corpus objetivando o trancamento de ação penal:
 
"ACIDENTE DE TRÂNSITO - Lesão corporal - Inexpressividade da lesão - Princípio da insignificância - Crime não configurado.

"Se a lesão corporal (pequena equimose) decorrente de acidente de trânsito é de absoluta insignificância, como resulta dos elementos dos autos - e outra prova não seria possível fazer-se tempos depois -, há de impedir-se que se instaure ação penal que a nada chegaria, inutilmente sobrecarregando as varas criminais, geralmente tão oneradas (STF, RHC 66.869/PR, Rel. Min. Aldir Passarinho, 06.12.1988)." (in Princípio da Insignificância no Direito Penal, de Maurício Antônio Ribeiro Lopes, pág. 257, Editora Revista dos Tribunais, 1997).

Certo é que se poderia argumentar que, no caso sub examine, em que se evidencia a ilicitude exclusivamente lógico-formal, a absolvição do acusado acarretaria riscos diversificados, como, por exemplo, o da segurança jurídica, visto que inexiste, no nosso ordenamento, previsão legislativa.
 
Porém, objetivando afastar, neste particular, possível preocupação, invocam-se, por oportunos e convenientes, os posicionamentos dos juristas seguintes:
 
1. - MAURÍCIO ANTÔNIO RIBEIRO LOPES:
 
"Conquanto não positivado na lei escrita, o princípio da insignificância surge como recurso teleológico para integração semântica e política do Direito Penal. É sabido que a norma escrita não contém todo o Direito Penal e que a construção teórica de princípios, como o da insignificância, não fere o mandamento constitucional da legalidade ou da reserva legal." (in Princípio da Insignificância no Direito Penal, p. 170, Ed. Revista dos Tribunais, 1997).
2. - LEO AFONSO EINLOFT PEREIRA:
 
"Não se trata de decidir com frouxidão, benevolência ou condescendência, incentivando a desonestidade, como foi consignado, mas de construir responsavelmente, de molde a ajustar a lei e a realidade nacional de tal forma que o Judiciário, auto-aparelhando-se, enfrente, com eficiência, o que de positivamente grave existe, relegando às pequenas infrações os efeitos compatíveis ao mal que proporcionam, como aliás já o fazem a generalidade dos Promotores de Justiça ao postularem o arquivamento dos inquéritos policiais quando irrelevantes as infrações objeto da indagação."
Acrescenta, ainda, este festejado jurista que:
 
"Descriminando-se juridicamente a bagatela não se estará desestimulando a honestidade, pois ninguém tornar-se-á desonesto porque o Judiciário adstringiu o efeito do ilícito insignificante ao antecedente policial. A desonestidade surge pela dramaticidade da situação sócio-econômica do agente. Não será a impunidade que fomentará o crime, mas a pobreza do povo. É a miséria a inimiga da aflita sociedade brasileira, não o jovem delinqüente que dela é fruto. Portanto, para combater os delitos patrimoniais, urge que o País empenhe-se na erradicação de questões como a natalidade descontrolada, a fome, a infância abandonada, o desemprego e a pobreza em geral, e não que o Poder Judiciário reprima gravemente as infrações patrimoniais, pois estará combatendo os efeitos ao revés de atacar as causas da criminalidade. (TARS, RSE, 191.063.840, Relator, julgado em 14.08.1991, in Princípio da Insignificância no Direito Penal, de Maurício Antônio Ribeiro Lopes, págs. 277/278, Editora Revista dos Tribunais, 1997).
3 - VLADIMIR GIACOMUZZI:
 
"Por derradeiro, deve-se consignar que não há que temer os reflexos decorrentes da presente decisão, posto que, sob determinado ângulo, ela importa em descriminalização judicial. Cuida-se, no entanto, de descriminalização própria, e inevitável, da função judicial. (L. H. Hulsman; "Descriminalização" in RDP, 9-10, p. 7-26; e Min. Clóvis Ramalhete, in RHC 59.l91, publicado na RTJ 100/175).Por estas razões, sem voto discrepante, nega-se provimento à apelação." (TARAS, Rel.. da Apel. 289.014.029, julgada em 11.04.1989, (Idem, ibidem, pág. 283).
4. - JOSÉ AFONSO DA SILVA:
 
"Procuraremos ter sempre em mente a lição segundo a qual "a regra de Direito deve viger para atualizar efetivamente este ou aquele valor." (in Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 3a. edição, pág. 16, Malheiros Editores, 1998).
Na hipótese sub judice, posso, então, com supedâneo na doutrina e na jurisprudência, reconhecer estar diante de uma bagatela e, adotando os princípios que alicerçam a TEORIA DA INSIGNIFICÂNCIA, dar ao fato veredicto diverso daquele pretendido pela acusação, pois:
 
1) - no caso sub examine, trata-se de tentativa de furto;
 
2) - nenhuma repercussão (lesão) houve no patrimônio da vítima, visto que pronta e integral fora a recuperação da res furtiva;
 
3) - embora presentes os contornos da culpabilidade, ausente se faz a tipicidade material, porquanto, frise-se, não houve efetiva e relevante lesão ao patrimônio da pretensa vítima.
 
Mas, se uso tais argumentos doutrinários e jurisprudenciais para decidir, devo, todavia, registrar, que não o faço sob o entendimento simplista de que bagatelas não devem ser punidas. Sim, condutas criminosas típicas devem receber a contrapartida da Lei!... sem "excesso" de Justiça, dentro dos limites do Direito Justo.
 
Outrossim, repito, a verdadeira razão do veredicto que ora proclamarei não se junge ao fato de encontrar-me diante de uma bagatela mas porque a FINALIDADE da sanção penal foi plenamente atingida. Não pela via formal, mas pelo pronto arrependimento e pretensão do acusado de submeter-se sponte sua à uma "pena" (pagar a res, ainda que devolvida ao dono, num arremedo de sanção pecuniária; ou, prestar serviços, numa informal reparação da afronta à Lei). Desse modo, ele próprio, o acusado, se encarregou de punir-se, pois submeteu-se a uma situação constrangedora, vexatória e humilhante para reprovar-se e resgatar-se como quer a JUSTIÇA JUSTA, perdendo o Estado qualquer interesse de agir. Se o condenasse, estaria, permitindo um bis in idem reprovado pela lei, pela moral e pela ética.
 
FACE AO EXPOSTO, com âncoras no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil JULGO IMPROCEDENTE A PRETENSÃO PUNITIVA DO ESTADO e ABSOLVO JOÉLSON BANDEIRA, nos autos qualificado, da imputação delituosa que lhe foi assacada na denúncia.
 
Transitada esta em julgado, dê-se baixa nos registros e oficiem-se os competentes órgãos do Estado.
P. R. I-se.
Vitória, ES, 16 de setembro de 1998.
 
 

Nelson Darby de Assis.
Juiz de Direito.


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