Editor: Wolfram da Cunha
Ramos
ESTADO
DA PARAÍBA
PODER JUDICIÁRIO
JUSTIÇA
COMUM DE 1ª INSTÂNCIA
COMARCA
DE ESPERANÇA
1ª
VARA
SENTENÇA
Ação Penal
nº 20/86 - Esperança
Juiz: Dr. Wolfram da Cunha
Ramos
Autora: A Justiça
Pública
Ré: Maria Solange
da Silva
-
LESÕES CORPORAIS
GRAVÍSSIMAS - Autoria e materialidade comprovadas - Agente que
secciona a bolsa escrotal e o pênis do marido, quando ele dormia
- Ablação do órgão comprovada - Fato delituoso
de suma gravidade - Perversidade da conduta caracterizada - Condenação.
-
-
- A perda dos órgãos
genitais por mutilação provocada pelo agente, configura a
qualificadora prevista no art. 129, § 2º, inc. III, CP.
-
PENA - Ré portadora
de moderada perturbação da saúde mental - Redução
no mínimo legal de 1/3 (um terço) - Aplicação
do art. 26, parágrafo único, CP. - Se laudo médico-psiquiátrico
diagnosticou ser a agente semi-irresponsável, por ter desenvolvido
um quadro de "excitação reativa", impõe-se a redução
a reprimenda nos termos do art. 26, parágrafo único, CP.
Vistos etc.
O representante do Ministério
Público, com apoio no inquérito policial, ofereceu denúncia
contra MARIA SOLANGE DA SILVA, qualificada nos autos, por ter violado
o art. 129, § 2º, inciso III e IV, c/c o art. 61, letra "e",
todos do CP. Aduz que a denunciada seccionou a bolsa escrotal e o pênis
de Dimas Sidronio da Silva, seu marido.
Denúncia, instruída
com o inquérito, recebida em 17-10-86, pelo despacho de fls. 2.
Exame de Sanidade Mental da acusada iniciado em 28-11-86, fls. 02, autos
em apenso. Remetidos ofícios com os respectivos quesitos, fls. 42
e 49. O incidente ficou praticamente paralisado por 06 (seis) anos, embora
conste diversos ofícios solicitando a realização do
exame, fls. 2 e seguintes (autos apensados). Após assumir a 1ª
vara desta Comarca, determinei a condução forçada
da denunciada ao Instituto de Psiquiatria Forense da Paraíba - em
João Pessoa - para que fosse cumprida as determinações
legais, fls. 58 (autos do incidente). Resultado do exame médico-pericial
às fls. 66, (autos em apenso). Nomeado curador, foi a ré
citada e interrogada, fls. 36 e 39. Posteriormente, houve a substituição
do curador, devido a remoção do nomeado para outra Comarca,
fls. 5 (autos apensados) e 35. Apresentada defesa prévia, com rol
de testemunhas, fls. 41. Inquirição de 02 (duas) testemunhas
e 02 (dois) declarantes arrolados na denúncia. Dispensa de uma,
fls. 43/47. Oitiva de 04 (quatro) testemunhas arroladas na defesa prévia,
sendo dispensada 01 (uma), fls. 49/53. Como não constava as respostas
aos quesitos formulados, determinei a remessa deste para complementação,
fls. 40 (autos em apenso). Respostas aos quesitos às fls. 43 (autos
do incidente).
Não foram requeridas
diligências, fls.
Nas alegações
finais (fls. 63), o representante do Parquet sustenta ser incontestável
que as lesões existem. Bem como, que restou completamente inócua
a função reprodutora da vítima. Entende que a "amputação
do pênis constitui deformidade permanente". Expõe que o crime
deve ser agravado. Foi praticado contra o esposo, enquanto ele dormia.
Reconhece que, pelo laudo de fls., Maria Solange não possuía
a plena capacidade de entender o caráter delituoso do fato ou de
determinar-se segundo este entendimento. Requer a condenação
da denunciada, aplicando-se o art. 26, parágrafo único, CP.
A defesa alega que a ré
é inimputável. Visto que o laudo atestou que ela, ao tempo
da ação, apresentava um quadro de excitação
reativa, sinal evidente de doença mental. Pleiteia a absolvição
ou imposição de simples tratamento ambulatorial. No caso
de opção por aplicação de medida de segurança,
roga que Maria Solange seja internada por um período de 01 (um)
ano, nos termos do art. art. 97, § 1º, CP.
Consta às fls. 05/09
(autos do incidente) laudo médico de clínica particular.
Contudo, o termo de compromisso está sem a assinatura do MM. Juiz
titular à época.
Feito o relatório,
à decisão.
A materialidade do delito
restou comprovada pelo laudo de exame de corpo de delito, fls. 10.
Irrecusável. Os fatos
delituosos foram de suma gravidade. Ficou plenamente demonstrado a autoria
na pessoa da denunciada. De se observar que, provavelmente, a ré
utilizou-se de uma navalha de fazer barba, como instrumento do crime. Foi
colhido para os autos, que antes da agressão, a denunciada não
demonstrava ter qualquer problema psicológico. A época da
prática delituosa, afirmou, para algumas testemunhas, que tinha
mutilado Dimas devido a "uma tentação". No interrogatório
judicial, disse que não se lembrava de ter seccionado os órgãos
genitais do marido. Mais adiante, já aceitando a autoria, não
soube informar qual o objeto por ela utilizado para cortar os órgãos
genitais da inditosa vítima. Como sói acontecer em fatos
desta natureza, praticado o delito foi internada por um período.
Após a alta hospitalar, nunca mais atacou ninguém. Em liberdade,
comportou-se normalmente. Viveu tranqüilamente com outros homens,
inclusive teve filhos. Tentou, insistentemente, em juízo e diante
das peritas, justificar a sua conduta delitiva. Acusou a vítima
de lhe agredir constantemente. Tal assertiva foi desmentida pela maioria
das testemunhas, fls. 43 e 44.
O ofendido contou que estava
dormindo. Não sentiu quando Solange cortou a sua bolsa escrotal
e o pênis. Não chegou a acordar. Desconfia que foi drogado
pela esposa, fls. 45. Revelou que a sua sogra vivia incentivando a filha
à castra-lo.
Os depoimentos das testemunhas
foram no sentido de confirmar a autoria.
Izaura Benedita chegou logo
depois do fato. Era vizinha do casal. Encontrou a vítima sangrando.
Conversou com Maria Solange. Ela lhe revelou que agiu motivada por "uma
tentação". Contou que o casal não tinha brigado. Ouviu,
da própria genitora da acusada, que a denunciada tinha cortado os
órgãos genitais do esposo. Nunca soube que Dimas agredia
a mulher. Socorreu o ofendido, fls. 43.
As testemunhas da defesa
confirmaram as agressões. Porém, tentaram justificar o ato
extremo da acusada. Disseram que ela tinha anemia, teve sarampo, estava
fraca do juízo, etc. Judith Ângela Euriques andou exagerando
na defesa da ré. Falou que Dimas, mesmo depois de castrado, viveu
com 03 (três) mulheres e teve um filho com uma delas, fls. 50.
Como se percebe, a versão
da ré não encontra amparo nas provas coligidas para os autos.
Diz o laudo de fls., in
verbis: "Paciente deu entrada neste serviço (Hospital Geral
de Esperança) c/ Amputação dos órgãos
genitais, hemorragia e choque hipovolêmico, c/ risco de vida". Como
se lê, a ré seccionou os órgãos genitais externos
de Dimas. Mutilou-o de forma irrecuperável.
Ensina Damásio de
Jesus que "perda é a ablação do membro ou órgão.
Inutilização é a inaptidão do órgão
à sua função específica", Direito Penal,
2º vol., Parte Especial, ed. Saraiva, pág. 134, São
Paulo, 1979. In casu, ocorreu a primeira hipótese. Ofuscante. Desnecessárias
maiores considerações, sobre a configuração
da qualificadora constante do art. 129, § 2º, inciso III, CP
(perda ou inutilização de membro, sentido ou função).
A segunda qualicadora - deformidade
permanente -, na hipótese, não merece acolhimento. É
lição, ainda, de Damásio de Jesus, que "deformidade
permanente é, segundo a doutrina, o dano estético de certa
monta, permanente visível, irreparável e capaz de causar
impressão vexatória. Assim, são requisitos da deformidade
que qualifica o delito da lesão corporal; "1º) que seja
permanente; 2º) visível; 3º) irreparável; 4º)
que cause um dano estético de certa monta; e 5º) que seja capaz
de causar impressão vexatória. (...) Assim, não obstante
a deformidade, não qualificará o delito quando não
causar aos olhos de terceiro má impressão quanto ao aspecto
estético do ofendido", (grifamos), pág. 134/135, bibliografia
acima. Portanto, exige-se que a deformidade permanente seja facilmente
visível.
A despeito de provada a autoria
da prática dos fatos pela acusada, ela é semi-inimputável.
O laudo médico-psiquiátrico apresentado pelas peritas oficiais
concluiu por sua semi-irresponsabilidade. Diagnosticaram que a ré
desenvolveu um quadro de "excitação reativa", fls. 33.
Os quesitos formulados foram
os "tradicionais". O primeiro menciona "doença mental" e "desenvolvimento
mental incompleto ou retardado". A resposta negativa a este quesito - se
no momento da realização da conduta delituosa, Maria Solange
era INTEIRAMENTE incapaz de entender o caráter ilícito do
fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento - afasta, por
completo, a exclusão da culpabilidade pela inimputabilidade, devido
ao estado mental da ré.
Excluída a possibilidade
de inimputabilidade por incapacidade total de entendimento da ilicitude
do fato ou da autodeterminação, resta examinar a hipótese
prevista no art. 26, parágrafo único, CP. No segundo quesito
(semi-imputabilidade), foi usado o termo "perturbação da
saúde mental". Repetiu-se a locução "desenvolvimento
mental incompleto ou retardado". As perturbações da saúde
mental "não retiram do sujeito a capacidade intelectiva ou volitiva",
apenas diminuem essa capacidade, ou seja, diminuem o entendimento e a vontade.
Não constituem doenças mentais.
In casu, a resposta
positiva ao segundo quesito, estabelece que a denunciada estava PRIVADA
DA PLENA capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento. Portanto, a capacidade,
não sendo plena, estava diminuída. Foi considerada semi-imputável,
para fins penais.
Vejamos a jurisprudência
pátria:
-
"A perturbação
da saúde mental, prevista no parágrafo único do art.
22 do CP (atual art. 26), não constitui causa de isenção
de responsabilidade, uma vez que não suprime totalmente a capacidade
de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo
com esse entendimento. Apenas a considera enfraquecida, subsistindo a responsabilidade,
facultado ao julgador a redução da pena", RT 391/350.
Como é cediço,
o juiz não fica adstrito às conclusões do laudo, art.
182, CPP. Pode aceitá-lo ou recusá-lo, em decisão
fundamentada. "Formará sua convicção pela livre apreciação
da prova", art. 157, CPP.
Acolho a semi-imputabilidade
afirmada no laudo elaborado nos autos do incidente. Entendo que reflete
a realidade carreada para os autos.
É lição
do o saudoso mestre Heleno Fragoso: "se trata de semi-imputável,
que se enquadra no parágrafo único do art. 26 do CP, pode
o juiz: a) aplicar-lhe exclusivamente a pena prevista para o crime, reduzida
de um a dois terços, se o agente não necessita de tratamento
curativo", (grifamos), Lições de Direito Penal, Vol.
1º, pág. 411, 8ª Edição, Ed. Forense.
Forte corrente Jurisprudencial
entende que, reconhecida a semi-irresponsabilidade, a redução
da pena não é obrigatória. Neste sentido foi a decisão
do STF, publicada no DJU de 14-12-79 à página 9.443. Mais:
-
"Sem embargo da existência
de pronunciamentos em contrário, não é obrigatória
a redução da pena do semi-imputável", RT 601/322.
No caso sub judice,
a periculosidade da acusada não mais subsiste. Como dito acima,
desde a data do fato ela não teve mais qualquer sintoma agressivo,
decorrente de perturbação mental. Está completamente
recuperada. Por estes motivos, deixo de substituir adiante, na aplicação
da reprimenda, a pena privativa de liberdade pela internação
ou tratamento ambulatorial.
-
-
É bom lembrar que:
-
-
"A semi-responsabilidade
não exclui a capacidade de dolo e não é, portanto,
incompatível com o reconhecimento da imputabilidade do acusado e
de qualquer agravante, qualificadora ou não do delito", RT 451/370.
Neste sentido: RT 437/330.
-
Diante do quadro fático,
JULGO PROCEDENTE, EM PARTE, a pretensão punitiva do Estado
para CONDENAR MARIA SOLANGE DA SILVA, antes qualificada, por haver infringido
as normas do art. 129, §§ 2º, inciso III, c/c o art. 61,
alínea "c", ambos do CP, tudo com respaldo nas provas carreadas
para os autos.
Passo a aplicar a pena base,
com fulcro no art. 59 e 68, CP.
Dolo diminuído, diante
da conclusão do laudo. Os antecedentes são normais. Não
existem notícias sobre sua conduta social. A personalidade revela-se
fria e perversa. Não existiram motivos aparentes para o delito.
As circunstancias do crime lhe são desfavoráveis. Usou uma
navalha. O acusado estava em sua cama repousando. Não houve qualquer
discussão do casal. As conseqüências foram de suma gravidade.
A vítima correu risco de vida. Ficou impossibilitada para o trabalho.
Atualmente vive de caridade. É uma pessoa amargurada e traumatizada.
É obrigado a tomar remédio controlado e hormônio masculino,
para o resto da vida. Foi motivo de chacota na região. O comportamento
de Dimas não influenciou o âmago criminoso da ré. Pelo
contrário, retornava de cansativo dia de trabalho, por toda a madrugada.
Estribado nas circunstâncias
judiciais acima, aplico uma pena-base de 06 (SEIS) ANOS E 06 (SEIS) MESES
DE RECLUSÃO. Deixo de impor a agravante do art. 61, inciso II, letra
"e", CP, (contra o cônjuge), por inexistir prova documental hábil
de casamento nos autos (JUTACRIM 52/251; 47/345; 40/260). Acrescento à
reprimenda mais 01 (um) ano de reclusão, por reconhecer ter sido
o delito praticado de forma que tornou impossível a defesa do ofendido.
Sabido que Dimas foi lesionado quando dormia profundamente. Estabeleço,
portanto, a pena em 07 (SETE) ANOS E 06 (SEIS) MESES DE RECLUSÃO.
Embora seja facultativo, reduzo a reprimenda em 1/3 (um terço).
No mínimo, por considerar moderada a alienação mental
da acusada, no momento da prática delituosa. Como resultado, fica
estabelecida uma PENA TOTAL DE 5 (CINCO) ANOS DE RECLUSÃO.
À míngua de outras circunstâncias a considerar, transformo
a pena em definitivo.
Determino o regime fechado,
consoante o art. 33 c/c o art. 59, ambos do CP, retro analisado, para início
de cumprimento da pena em presídio feminino na Capital do Estado,
ou em outro que o juízo da execução estabelecer.
Concedo o direito de apelar
em liberdade (art. 594, CPP). O fato ocorreu em 1986. A ré respondeu
toda a instrução em liberdade. Não fugiu do distrito
da culpa. Reside no mesmo local. Não praticou qualquer ato delitivo
de lá para cá ou dificultou a instrução criminal.
Transitada em julgado, remeta-se
boletim individual à SSP-PB (art. 809, CPP), anote-se no rol dos
culpados e expeça-se mandado de prisão. Capturada a sentenciada,
remeta-se guia de recolhimento em triplicata.
Sem custas.
P.R.I.
Esperança, 10 de março
de 1994.
WOLFRAM DA CUNHA
RAMOS
Juiz de Direito
Volta
para as sentenças
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