31 de Dezembro de 1999



Milénio...

 


Porque carga de água é que se entende que há mudanças transcendentais nos precisos segundos em que muda o ano, maiores do que nos outros 31 milhões que o ano comporta?... Que especificidade apresentam para que se ache que neles muda obrigatoriamente o que não muda nos outros?

E, depois, temos o bug! Foi uma trabalheira explicar que a questão se coloca essencialmente quando as datas são importantes. O chip da minha torradeira está-se nas tintas que os 30 segundos para que a programo a fim de me tostar o pãozinho pertençam a hoje ou ao próximo século! Para o chip do elevador que o obriga a parar no 3�, 5� e 7� andar em função dos botõezinhos que o memorizaram, é inteiramente irrelevante que tal operação se realize às 23.25 de 31 de Dezembro de 1999 ou às 0.05 de 1 de Janeiro de 2000.

Não são irelevantes, já se vê, calendários e horários de transportes, não é irrelevante se o dr. Jardim Gonçalves ficar sem saber exactamente quanto tem a pagar e a receber em dias de juros dos dinheiros do BPI ou se o dr. Pina Moura vir o rendoso IRS dos trabalhadores ficar no caos em que está o IRC do capital (que nem precisou de bug algum para ser o escândalo que é).

Resmungando que o bug foi, isso sim, um grande negócio para a indústria da informática, o crítico mal disposto acrescentará ainda (e com razão!) que não há mudança nenhuma de milénio e que, ao fim e ao cabo, tudo isto são convenções, os calendários nem sequer são iguais para todas as civilizações, há quem mude de milénio e quem o não faça e não faltará mesmo quem ecologicamente recorde que em numerosas e paradisíacas ilhas os respectivos habitantes vivem muito felizes apenas a contar as voltas da Lua...

Pois é.

Entretanto, há sempre um livro para nos reconciliar com a vida e permitir-me-ia sugerir mais um dos luminosos textos de Norbert Elias, Du Temps, concluido no essencial em 1984 (Fayard. Paris, 1996).

"Enquanto instrumento de determinação do tempo servindo de quadro de referência a inúmeras actividades humanas - escreve o sociólogo alemão -, o actual calendário cumpre as suas funções de forma tão tranquila e despreocupada que frequentemente se perde de vista que ele poderia ser diferente. Esquece-se que durante milénios os homens utilizaram calendários que comportavam sucessivas dificuldades."

E conclui: "O desenvolvimento deste calendário constitui em escala reduzida um bom exemplo dessa continuidade a longo prazo que caracteriza o desenvolvimento do conhecimento humano e das dimensões da vida social que lhe estão ligadas. Com as suas vicissitudes de progressos e falhanços, é como um modelo empírico em escala reduzida da corrente de evolução que historicamente atravessa uma sucessão de sociedades (...). É inquestionável que as transformações do saber que foram integradas na elaboração do calendário actualmente em uso apresentam o carácter de um desenvolvimento."

E dado que a festa popular é, nas palavras de Mikhail Bakhtine, a "categoria primeira e indestrutível da civilização humana (...) que o homem instaura no preciso momento em que descobre a sua liberdade e o seu poder de fazer história" - vamos lá então festejar o Ano Novo deste calendário.

Ruben de Carvalho escreve neste espaço às sextas-feiras
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