Por uma revolta do Parlamento

 

PARA sinalizar as obras nas estradas inventaram agora um boneco articulado, vestidinho como um operário, de capacete e tudo o que se impõe, bem visível, a erguer e baixar o braço mecanicamente durante a função, até alguém o desligar. É assim que o primeiro-ministro entende a sua presença nas interpelações ao Governo requeridas pelos partidos da oposição. Entra sorrateiro, vestidinho como um primeiro-ministro, bem visível pelas televisões a menear a cabeça para um lado e para o outro, até o presidente da Assembleia, anunciando que vão começar os pedidos de esclarecimento e o debate mais quente, dar o mote, que Guterres aproveita para se escapulir.

O primeiro-ministro, que tanto se gaba de ir muito ao Parlamento ao contrário do professor Cavaco Silva, faz afinal o mesmo que o seu antecessor. Só vai ao Parlamento falar e sujeitar-se à crítica directa quando ele próprio escolhe a forma, o momento, a oportunidade e o tema. Esta semana lá esteve, não a valorizar e respeitar o Parlamento, mas a fazer dele o palco para a sua manobra política. Foi ao Parlamento como foi à «Grande Entrevista» da RTP, não para responder mas para tentar dar a volta ao texto.

Este comportamento do primeiro-ministro de desvalorização da Assembleia da República é friamente desenhado para incentivar o descrédito da instituição parlamentar. «Cherchez la femme!» é o que os entendidos aconselham para se descobrir a causa de comportamentos. Este segredo sobre a desvalorização do Parlamento está bastante mais documentado do que o terceiro segredo de Fátima. Sempre em Portugal, desde o Estado Novo, os governos menorizam o Parlamento para aumentarem o seu espaço de crédito público e para fazerem gorar a eficácia da função fiscalizadora. As bancadas parlamentares de apoio ao Governo têm neste apagão do Parlamento mais responsabilidades que a EDP no apagão da cegonha. É que não se limitam a descurar as medidas preventivas, portam-se como câmara de eco. O PSD, que agora se queixa, pôs a Assembleia a reboque do seu primeiro-ministro. E o PS, que na altura protestava, agora faz o mesmo e até critica quem, como Helena Roseta, não se sujeita cegamente.

Dizer mal do Parlamento está tão na moda como dizer mal do trânsito na Grande Lisboa. Se um cidadão carente de protagonismo anda anos com uma causa qualquer e nunca consegue atenção de nenhum responsável, se quiser ter foto e entrevista basta começar a dizer que a culpa é do Parlamento.

O Parlamento está feito o bombo da charanga política. O Governo desafina, os ministros zangam-se e amuam, o descontrolo é evidente, mas é no Parlamento que se bate. Nunca percebi a reacção ao artigo do director do EXPRESSO quando disse que o Parlamento estava morto. A questão não era discutir se estava realmente morto ou ainda mexia, a questão era saber quem o queria matar e o que fazer para o salvar.

O apagão do Parlamento significa que a democracia está em crise. Mas, não fiquem dúvidas: só os deputados podem alterar esta situação. Não têm alternativa. Se querem credibilizar o Parlamento, têm que desenvolver altos padrões éticos de conduta. Têm que falar das formas de se dedicarem mais à sua função e não discutirem a forma de exercer funções privadas em simultâneo. Têm de desenvolver uma relação mais intensa com o eleitorado. E têm de ganhar independência em relação ao Governo.

Mais do que uma reforma, é preciso uma revolta no Parlamento que devolva aos deputados o poder que os Governos lhes apropriaram.



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